A Cidade Habitada por Rinocerontes

Labaredas de cores quentes pincelavam o amanhecer.Ele havia acordado com o canto dos pássaros.Levantou-se,com preguiça.Esticou a cervical,ficando até na ponta dos pés.Bocejou alto. O cabelo em desalinho, a barba por fazer. Estava nu. O pau duro balançava a cada passo dado. Urinou com dificuldade,aguardando a ereção passar.Circulou pela sala do pequeno ap.A sala,outrora,sempre limpa estava um fuzuê.Cinzeiros espalhados pelo carpete,cadeiras,mesa e no centro de tampo de vidro colorido.Birras de cigarros de diversas marcas,cigarrilhas e até um charuto estava pelo piso.Talvez, fosse um sujeito popular,de amigos fumantes inveterados. Não encontrou as birras de maconha.Fumaram até o talo,talvez.Foi à cozinha.Dois pratos sujos,duas xícaras.Garfos e colheres.Muitos copos sujos com resíduo de bebida alcoólica.”Não comeram,com exceção do casal.Todos beberam,e muito.”Pensou com os seus botões.Uma barata solitária escalava os azulejos frios da pia. Abriu a porta do quarto.O corpo inerte de uma mulher repousava em sua cama de solteiro.Estava quase descoberta. O lençol lhe cobria as costas.As pernas estavam abertas,usava uma calcinha prateada.Pernas grossas, roliças e compridas,bronzeadas. Miau,a sua gata negra estava ao lado da mulher.Parecia mais uma bola preta com a coluna enrolada.A cabeça repousava nas patas dianteiras.

Enquanto aguardava que a cidade acordasse,com exceção dos jornaleiros e leiteiros,foi até uma das janelas e observou a abóboda celestial. Conferiu mais uma vez a natureza ensaiar a orquestra de cores,luzes-onde a estrela máxima já dava o ar de sua graça,num espetáculo formidável.Os pardais já comiam o lixo nas ruas, os velhos aposentados pisavam o chão da praça.Voltou ao quarto.Beijou o rosto inerte da bela mulher,esta não esboçou qualquer reação. Parecia não respirar. A gata miou e roçou o seu corpo numa de suas canelas-queria carinho,ou leite morno. Trocou-se,após um banho rápido,frio.Desceu para dar um passeio matinal.Desejava tomar um belo banho de sol naquela manhã. Havia recolhido no chão do quarto as embalagens e algumas cápsulas de medicamentos à base de curticóides,como a Prednisona-que tem a função anti-inflamatória e anti-alérgica.As garrafas de vinho,cerveja e uma de vodca foram recolhidas.

Na Avenida Couto Aguiar com a Rua dos Doidos estranhou a presença de 5 rinocerontes.”O que 5 rinocerontes estariam fazendo ali,parados junto à sinaleira,depois atravessaram a rua,de forma inteligente andando na zebra?” Perguntava-se.Pensou na possibilidade da chegada de um circo para tirar um pouco as pessoas diante da TV, ou do notebook-a internet era a nova praga social fazendo idiotas e imbecis,em potencial junto com os jogos eletrônicos.O povo idiota que não conversa mais,esteja onde estiver é com os dedos no teclado virtual do celular e o olhar no monitor.Pior que tem alguns,que entopem os ouvidos com fone,ouvindo música. Parece coisa de filme-a formação dos anti-sociais que a tudo e todos ignoram.Distraído,quase foi atropelado por um caminhão.Xingou o motorista,de olhos esbugalhados,a boca aberta.O sangue fervendo nas veias,gaguejando,de ódio-podia estar morto,agora e da forma que mais temia morrer:atropelado.A cada 10 atropelos,o pedestre é o culpado em 9-são verdadeiros suicidas.Lembra-me dos eleitores do país, a cada 10 eleições,no mínimo erram em 9-sempre escolhem os piores candidatos-,os que mais mentem se elegem.Depois serão os que mais roubam e mentem.

Custou a creditar no que viu.O motorista usava uma boina incolor e furada,de gasta.Fumava um tosco charuto-e era um rinoceronte,como os que viu na sinaleira.”Mas,como pode ser o motorista um bicho pré-histórico?” Perguntava-se,atônito.Foi quase atropelado por um segundo carro.O motorista pôs a cara para fora e gritou:” homem besta,quer morrer filho da puta?”

No volante estava mais um rinoceronte.Pelo uso do chapéu rosa,argolas e o batom vermelho nos lábios na boca,abaixo de um dos chifres,viu que era uma fêmea. Quando deu por si,pôde ver que estavam por toda as partes.Nas calçadas,praças,ruas e avenidas.Subindo e descendo pelos bares,pizzarias,restaurantes e lojas.Assustado saiu correndo.Agora, tudo o que desejava era encontrar alguém como ele,de carne e osso,e humano.Ja de pulmões esfolados e queimando chegou numa outra quadra.Suava frio,o coração em descabelada carreira.Sentou num banco do jardim.Quando resolveu ali se deitar,no cimento frio,foi acossado por um guarda municipal. Ele disse: - vocês estão em toda parte,o que está acontecendo?A Terra foi invadida por alieniginas?Quem são os rinocerontes? O que querem?

- Você está bêbado,drogado?Ou os dois?

Indagou o guarda,como homem da Lei-aqueles que zelam da boa ordem da cidade.Deu um coice no pobre coitado,jogando-o longe.Depois soltou uma gargalhada bizarra,animal.Levantou-se a muito custo.Estava bem dolorido,um rinoceronte tem bastante força física.Esgueirou-se por um beco escuro,ali viu prostitutas,e elas eram rinocerontes.Todas iguais.Dois chifres,caras largas,de corpo encouraçado,e de bundas fartas. Havia passado o dia inteiro na rua.Custava a acreditar naquela realidade cruel,abstrata.Fosse noite,fosse dia a cidade estava habitada por rinocerontes. Viu sketistas,patricinhas,estudantes,executivos,velhas e gordas senhoras.Todos com dois chifres sobre o nariz,encouraçados,pesados e fortes.Ele era o único ser humano na cidade.Fosse noite,fosse dia.Ele era o bizarro,o diferente.O humano.Faziam deboche dele.Riam.Ele corria,de medo e de vergonha de si.Corria,corria feito um atleta dos rinocerontes,escondia-se pelos becos e ruas escuras. Vivia feito um marginal,esgueirando-se pelos cantos.Não queria ser mais visto.Para as crianças não passava de um ser curioso,assustador.Dizia uma criança: -olha,mãe uma coisa estranha...

-Não olhe para ele filho,é tão feio e assustador.Muito diferente da gente.Será que é inteligente?

Entrou num bar,de ambiente fétido,escuro e esfumaçado.O zumzumzum vazava de cada mesa.Um balconista rinoceronte servia doses cavalares de bebidas aos rinocerontes.Travou a respiração,encheu-se de coragem e foi ao balcão.

-Uma dose de vodca,por favor...

“Sujeitinho estranho.”

Comentou o balconista,para si.-Escute-me eu sou um homem,e você...

Tentou clarear aquele seu delírio urbanóide. O balconista lhe respondeu: - eu sou um rinoceronte,homem não está vendo?

Gargalhadas farfalharam de todos os cantos do bar.Ele saiu apressado,se quer tocou na dose cavalar de vodca.Saiu sem pagar,também.Não tinha dinheiro,mesmo.Tomou o primeiro ônibus que passava.O motorista o olhou estranho. Era um rinoceronte.O cobrador era outro rinoceronte.Todos os passageiros eram rinocerontes.O trânsito era caótico:rinoceronte.

Estava vencido.Havia um consolo.Voltar para casa e ficar sitiado no seu mundo particular.Ficar em casa,encher a cara,fumar um baseado,talvez.Pôr um Aerosmith na vitrola antiga,e talvez ler Confabulário do Delírio Cotidiano,do amigo Charles Bukowsky,o velho Burka. Talvez, a sua amante estivesse na cama-morta,ou viva,quem sabe. Aos sábados muitos acordam mais tarde.

Viu suas roupas ainda no chão da sala,mais as roupas dela-a calcinha vermelha,a saia e o sutien branco.Um par de sapatos de salto alto.O silêncio,ali não mais reinava.Panelas se chocavam na cozinha,mais o som da água escorrendo da torneira da pia.Era um bom sinal.Sentou-se no sofá e falou:

- Querida,tenho algo horroroso para lhe falar.

Tirava os sapatos,as meias e falava à distância com a amante,esta certamente o ouvia bem,pois,ele tinha boa entonação de voz,boa dicção.A gata negra miou e sentou-se no seu colo.

- A cidade está a cada dia pior.Está habitada por rinocerontes.Rinocerontes,mesmo,de chifres no nariz,corpo gordo e encouraçado,coisa pré-histórica,de verdade.

Ouviu os passos dela se aproximando.Ela nada lhe disse.Um móvel caiu ao ser tocado pelo seu corpo.Ela returgiu:

- Você fica sempre em casa,quando sai,volta com histórias absurdas.Na semana passada chegou dizendo que a cidade estava habitada por burros que eram eleitores dos comunistas do Pt e do PSDB,depois por cães vestidos de policiais,e teve a vez que eram os ratos que eram políticos.Depois foi a cidade habitada por galinhas novinhas que eram patricinhas e dançavam pagode ralando a tcheca no chão-e,ainda teve o dia em que a sua cidade estava habitada por bois que assistiam à tv.Agora,vem com essa história de rinocerontes.Lembra-se do dia em que disse que a cidade estava habitada por viados que desejam casar e ter filhos?-Falou assim, gargalhando.

Ele quase desmaiou de susto, quando deu por falta daquele corpinho cheio de curvas fatais,sinuosas e do rosto belo,de amante da fim de semana.Antes do estômago embrulhar viu os dois chifres no longo nariz,logo acima dos lábios de batom vermelho.Ela retarguiu,brava:

- Precisa deixar de se auto-medicar e ir ao médico.Não adianta querer me enganar,sei que é hipocondríaco e deixe de tomar medicamentos à base de Bupropiona,que pode provocar irritabilidade,agitação.E já descobri que você é bipolar.Talvez,seja é doido de verdade,e nem sabe disso. Como consegue sair andando pelas ruas da cidade,nu, por dias?Ja vi que de perto, ninguém é normal.Ninguém é normal,mesmo...ainda bem que na cama você é um verdadeiro cavalo,ou já teria lhe deixado.Além do mais,adoro o tamanho do seu pinto e amo a sua gatinha negra.

Ele nada disse,havia se dado por vencido. Enquanto um rinoceronte dava passadas pesadas pela cozinha,derrubando os móveis,la embaixo a cidade parecia já um pasto de homens irracionais,geradores de caos,de toda ordem.Ele se quer se lembrou de usar a máscara no rosto que a tv recomendava-pelos "especialistas" -para poder se proteger de uma gripe.

LG

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 05/01/2014
Reeditado em 17/08/2020
Código do texto: T4637263
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