A chegada de Desejo

O calor era abraçado por uma leve brisa úmida que visitava minha varanda. Meu licor ia-se esgotando, malditas avelãs amargas. Meu peito já não estalava em vontade, apenas em cansaço e ansiedade pelo trabalho. Obrigatoriedades do cotidiano.

Eu sabia que ele chegaria. Cedo ou tarde, me trazendo encomendas de Dionísio. Tanto que eu pedi, quase implorando que me abandonasse, que seus préstimos me eram tentadores, sim, mas eu necessitava de paz naquele momento, eu precisava estar sóbria.

Desejo ria-se, achava engraçado como minha estupidez humana acreditava ser possível impedi-lo. Na verdade Desejo divertia-se comigo, já que os demais sequer percebiam sua chegada, jamais previam sua presença ou notavam seus presentes deixados na porta de casa, na esquina do trabalho, no olhar da moça da biblioteca ou na fala açucarada dos seus amigos do passado.

Eu sabia que ele chegaria. Senti o seu perfume nos dias, tateei sua textura nas palavras alheias e percebi todos os rastros que Desejo deixou em meu dia-a-dia.

O amargo das avelãs em minha garganta fora substituído pela baunilha que anunciava sua chegada. Lentamente virei-me na direção da porta de minha casa, abandonei os resíduos do meu copo, e como que numa hipnose ou na maresia de um olhar apaixonado, eu segui até ele. Não tocou a campanhia, se seu chamado não era à minha porta, mas em meu coração.

Estava lindo. A doçura e singeleza de sua pele adentravam minha casa, meus olhos e minha alma, violentando minha sobriedade e roubando-me o direito de dizer não. Não era um privilégio só meu, decerto que não. A visita de Desejo é semelhante para todos nós, feitos dessa carne-triste-quase-feliz.

Seu olhar trazia o emaranhado de vontades de tecemos e no qual nos enforcamos. Assim ele nos aprisiona em sua teia indecente e injusta, não por querer. Desejo nos enlouquece por que é de sua natureza fazê-lo, e é da nossa, permiti-lo.

Aproximou-se com a violência de sua lentidão e a agressividade de sua delicadeza. Estendeu sua mão para tirar-me os cabelos negros de cima do colo, jogou-os para trás de meus ombros, e com um beijo impossivelmente íntimo tocou-me o rosto, na profundeza de meu maxilar, sua respiração cumprimentando minha orelha e todos os meus poros respondendo.

- Boa noite, Desejo.

Fernanda Gadêlha
Enviado por Fernanda Gadêlha em 29/04/2007
Reeditado em 16/11/2008
Código do texto: T468961
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