Sátiros, Faunos, Ninfas, Sílfides e Outros Bichos Parte II

Parte II

Ainda para meu velho amigo, psiquiatra, escritor de hai kais, homeopata e romancista Marco Teixera.

Encontro o tal “terreno baldio”. Não me pergunte como. Intuição? Vá sonhando. E realmente vejo tudo como no bilhete. E ainda tem contrarregra! Uma luz difusa. A luz da Lua Cheia vermelha em sangue! Uma salva de palmas avassaladora de faunos, ninfas, sílfides, sinto-me como John Lennon! Vou caminhando como um lutador rumo ao ringue. Os sapos coaxam como um refrão de “hooligans”. Das janelas dos prédios vizinhos são jogados papéis picados, listas telefônicas e cinzeiros! Nossa! Meus amigos tem um senso de humor bem interessante. Todo esse aparato quase cinematográfico para me pregar uma peça? Pra pagar uma rodada ou um apresentar um baseadinho é uma choradeira! Será que hoje é dia do meu aniversário e esqueci? Não pode ser! Se não me engano estamos no fim de março e eu só completo anos em setembro como bom virginiano que sou? Saco a meia garrafa de Jack Daniel’s que encontrei jazida num canto qualquer do meu apartamento, tiro a tampa e dou um gole. O contrarregra me pega pelo braço e me diz em tom melífluo e cordial: “Por aqui, Senhor Töpera, tenha a bondade, me acompanhe, por obséquio. O Senhor não gostaria de um copo para seu precioso Bourbon?” Aceito o copo e ele me coloca sentado em um caixote daqueles de frutas, daqueles que você vê na feira. Do meu lado um cinzeiro. Tomo mais um trago direto da garrafa a então o “terreno baldio” explode em aplausos como no “Alive” do Kiss. Quase me sinto um Paul Stanley e tenho um élan de acarinhar a mim mesmo, bater no meu próprio traseiro rebolativo, enfiar o dedo na minha própria boca e balançar os cabelos mas me contenho que preciso manter minha reputação de mau menino. O contrarregra chega com um copo e o balde de gelo com meia dúzia de cervejas de casco verde da melhor qualidade e coloca ao lado. Abra uma garrafa e virou até final. Mais aplausos. A coruja dá um pio digno do melhor Allan Poe borracho até o tutano dos ossos. Os batráquios continuam seu refrão até que ouço um voz de lentidão bovina vinda de algum canto e dizendo “—Modos, hein, modos!” Aquele insólita audiência se cala abruptamente como uma orquestra. Ouvi o silêncio.

De repente, a luz brilha mais. “Sanguínea e fresca”. Um ser espectral vestido um terno “Ducal” dos anos de 1960, creio eu, sentou-se em um caixote idêntico ao que estou sentado e puxa um “mata ratos” sem filtro e acende com fósforos devolvendo o palito à caixa. Fita-me de cima abaixo. Estou vestido com minha calça preta de jeans, um cinto de pirâmides prateadas com larga fivela, uma camisa preta de poliéster e um lenço branco à guisa de gravata e de botas de camurça marrom para quebrar um pouco. No pulso direito minha tatuagem de elefantes negros. No esquerdo uma corrente. No anelar da mão direita um anel de prata com o símbolo do OM e no da mão esquerda a caveira que uso mais para alertar o próximo do que a mim mesmo sobre a finitude e a mutabilidade das coisas. Porque estou vestido desse jeito se não vou tocar e ainda estou bancando o palhaço? Nem eu sei dizer. Aliás, agora nem sei direito o que está acontecendo. Resolvo abrir a boca:

—O Senhor é o Senhor Nélson?

—Perfeitamente, meu jovem, perfeitamente. Diz-me aquele senhor estranho de voz bovina porém agradável. —Fume um cigarro. Obedeço de pronto.

Começa então a “entrevista imaginária” O distinto senhor quer saber o que acho da poesia e dos poetas e desando como o tagarela nato e hereditário que sou a discorrer sobre a vida e a obra do Marcos Prado nosso príncipe que se esvaiu tão cedo desta para melhor em virtude dos excessos de nossa vida cheia de palavras e tristeza. Sobre como o “Polaco” era um chato de galochas, bêbado, fumeiro, que não curtia banho e não tinha dentes virou nome de escola e de pedreira depois de morto. Do crime do semi-inedismo do Edson de Vulcanís e do Edilson Del Grossi o “campeão mundial do sarcasmo”. De como a esclerose múltipla do Dalton que a vinte e cinco anos escreve o mesmo livro e de como ele ainda vai revolucionar o mercado editorial e vender um livro sem palavras e ainda por cima ganhar um “Jabuti” & um “Empreendedor do Ano”. Antes de tomar fôlego e mais um trago no Bourbon estaco. Engulo em seco. Com um fio de voz faço a pergunta que não quer calar.

—Então, o Senhor é Nélson de quê?

—Nélson Rodrigues, ao seu dispor.

Quase caiu das nuvens. Ou melhor. Cai num sonho? Num delírio? Numa badtrip? Onde estou, cara? O que está acontecendo? Espera aí! Caralho, Mané! Aconteceu! Pirei de vez! Agora, veja aí no seu script ,contrarregra, que hora que entra os homens de branco com a camisa de força e “sossega leão” pra me encaminhar pro hospício mais próximo e me trancar na cela acolchoada babando Thorazine na gravata? Tento argumentar com aquele simpático e solicito senhor em suas calças de tergal largas e frouxas que deve estar havendo algum engano dos maiores e lhe informo que o autor de “Bonitinha, mas Ordinária”, “Os Sete Gatinhos”, “O Anjo Negro”, “O Vestido de Noiva” & outras tantas obras primas que no século XXI ainda escandalizam a “família brasileira” teve seu passamento dessa para a melhor no longínquo ano de 1980. Ele concorda comigo. Realmente estou num estado alucinatório visual e auditivo e que lá do além escutara falar de mim. Mas logo eu? , tento ponderar, meu livro ainda não foi editado, meus textos contém palavrões, o disco foi gravado e ninguém ainda sabe o que fazer direito com aquele “elefante branco”, não consigo entender tal deferência. Posso até concordar com as suas opiniões, Senhor Nélson Rodrigues, o Senhor é realmente e do fundo de minh’alma meu eterno escritor preferido, vivo ou morto. Admiro sua desenvoltura nas letras e seu desapego por fórmulas e esquemas pré-fabricados e com sua capacidade criativa de transitar seja por crônica de jornal ou intrincados roteiros teatrais contudo não consigo compreender o seu interesse além-túmulo nesse pobre diabo aqui. E me estarrece deveras a forma como ele me responde a tudo isso:

—Você é jovem, Töpera. Esse é meu interesse. Você é jovem e pensa! Você é gente e se expressa. Você é jovem e tem idéias. Você é jovem e muito a frente de seu tempo. Venho tomando notas sobre você há muito tempo e desde muito cedo vi em você alma marcada a amadurecer cedo. A se deparar com as circunstâncias cruéis desse mundo insano. E não perder a ternura.

Tomo mais um trago longo do gargalo estupefato. Minha ilusão veio aconselhar-me? Á queima roupa outra pergunta do meu “entrevistador imaginário” foi a minha opinião sobre o Amor. Tive de parafrasear Hendrix e Roberto Freire, o psicanalista dramaturgo. Qual foi minha surpresa ao ver a reação do meu Mestre trêmulo de emoção porque articulei meia dúzia de frases com alguma coerência. Perguntou-me minha idade e informei-lhe. Elogiou-me então. “—Mas tu és um broto, meu rapaz, um broto!” “És até posterior à geração que promoveu as bacanais nos Estados Unidos e na Inglaterra!” “És uma alma pura, rapaz, aproveita, aproveita”! “Dou graças por isso”, balbuciei, “ e ainda levanto da cama todas as manhã para combater esses pulhas desgastados do velho ‘paz & amor’ e essa porra do ‘amor livre’, e de pronto me desculpei do palavreado chulo. Quando a platéia ouviu o “me desculpe” o “terreno baldio” entrou no mais puro êxtase. Faunos cavalgavam as cadeiras assoviando como no futebol ou no show do AC/DC, ninfas tocavam cornetas, sílfides haviam se transformado em “derviçes rodopiantes”, os sapos voltaram aos coros “hooligans”, os grilos e cigarras eram a própria Cameratta Antiqua, a coruja desmaiou de emoção feito uma colegial, as pulgas pareciam estar numa competição olímpica salto em altura, “lagartixas profissionais” em contrações ferozes. Fiquei constrangido e confesso que corei. Pelo menos senti meu rosto em chamas. O ectoplasma de Nélson Rodrigues então , como que encerrando a entrevista, deu-me um tapinha carinhoso da avó no joelho esquerdo enquanto ambos amassam no cinzeiro com o polegar a última bituca dos inúmeros cigarros fumados na nossa conversa e me fala com a voz cheia de ternura:

—Se não fez filhos, faça palavras. Não economize nas palavras, rapaz. Não se preocupe com a imortalidade. Continue sendo o Rimbaud de si mesmo que nunca se ajoelhou para nada e que escreveu sua obra imortal quando ainda era pueril. Seja o Rimbaud na África. Seja o que você sempre foi. O fruto de suas metáforas e obsessões. Seja sempre a “Fina Flor”. Deus lhe abençoe, meu rapaz...

—Nunca me importei com o que os vizinhos iriam pensar. Essa foi a última coisa que eu disse. E assim vi o fantasma do dramaturgo afastar-se na névoa e sumir diante dos meus olhos com a bruma da madrugada que anunciava o novo dia. Levantei e todo o cenário desapareceu como que por encanto ou vaga ilusão. Algumas horas depois, quando o sol já ia alto deparo-me comigo mesmo sentado em minha cama. O computador ligado. Meu apartamento de solteiro. Uma carteira de cigarros fumados no cinzeiro. A garrafa de Bourbon abatida na mesa de cabeceira. Latas de cerveja na mesinha. Uma “beata” caída no chão. Será que enlouqueci de vez na minha solitude? Ou será que certo estava aquele santo que rezava que a loucura é nada além do raio de sol que não permite o bolor proliferar? Se buscas respostas procure você. Pras suas perguntas imaturas já lhe respondi. Mas ninguém entendeu. Só uma afirmação posso fazer. Foi um caso sério.

Curitiba, 28 de março de 2014, 21 graus Celsius – Outono.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 28/03/2014
Código do texto: T4747284
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