O Diário

OBS: tudo que está escrito entre as chaves é o que está no diário.

Feita a bservação anterior, comece a ler agora!

O Diário

Abro meus olhos e o sol brilha intensamente, as nuvens se movimentam, os céus se azulam, as rosas aumentam seus perfumes. Levanto de uma cama, e acredito que talvez tudo aquilo tivesse sido um sonho. A sensação transcendental do movimento e do espaço, a mulher etérea,... Parece muito estranho e simples, como se fosse real, mas sendo real como poderia eu estar em espírito e de repente em carne de novo? Lembro bem que andava mas não sentia os pés, e agora, eu os posso sentir totalmente. Lembro bem que não estava perto de nada, mas fazia parte de tudo; o casal deitado ao longe e eu os sentindo parte de mim, a porta fechada que estava aberta, tudo muito paradoxal e longe de minha compreensão.

Estou definitivamente sentado na cama, que não sei de onde é. Nunca vi este quarto e muito menos este leito. Noto que é adornado com jacarandá. Há também outro tipo de madeira que não consigo reconhecer, mas levanto-me e estando de pé vejo que estou vestido com roupas antigas: uma camisa vermelha-clara de linho por dentro da calça preta de tecido aveludado, um cinto também preto eu estou usando, além de um sobretudo preto. A camisa tem um babado que da gola vem descendo até o meio do peito. A calça está bem vestida, parece ser exatamente o meu tamanho, além de estar um centímetro acima do umbigo. Há um chapéu em cima do criado-mudo, todo preto que eu nem penso duas vezes antes de usar. Um armário em mogno, pintado de branco e grande, muito grande, se recosta na parede ao lado da porta. O abro e vejo um diário de couro e páginas amareladas. É notável que a cor não é característica de tempo, mas sim de alguma estranha preferência. Abri:

{Eu choro e a chuva cai. Eu odeio e os mares se agitam. Eu amo e de meus olhos caem mil gotas de sangue. Quem será eu afinal? O que será eu afinal?}

Muito estranho ler algo de tamanho vigor. Parece estar criando um cenário no qual se misturam o estado psicológico e o estado físico. As páginas não estão numeradas e isto que acabei de ler foi uma parte do início, não exatamente a primeira linha, acho que passei umas sete páginas antes de ler tal confusão. Passo mais algumas páginas à frente e então estou pronto para continuar:

{Caminho por um lugar estranho: árvores negras, um lago azul escuro, sombras por toda parte, capim ao chão. Tenho um pressentimento estranho mas não o compreendo. As nuvens se movem rápido com a brisa fria que me arrepia...

Ao longe posso ver um homem deitado. Agonizante ele olha para o céu, e ao lado de uma mulher, mas parece que não sabe disto. Ela está deitada ao lado dele e também imóvel. Estou a muitos metros deles, mas posso vê-los claramente, como se estivesse mesmo a poucos centímetros, talvez como se eu fosse parte dele... e dela também.

Caminhando pela linha limítrofe do lago, em madeira podre encontro uma ponte bem firme, contraditoriamente com sua aparência: atravesso-a. Vou seguindo o caminho de pedras de mármore, no chão que me levarão até um casarão. Nele há duas torres horizontalmente alinhadas com a porta adornada. Ao chegar bem próximo vejo a porta aberta para mim, mas não para todos, e não sei como isso pode acontecer. Entro e dentro posso ver o quarto dela. Ela está nua, seus seios, seus lábios, seu queixo, seus olhos, seu perfume... Tudo muito belo, muito suave, muito amável por mim, mas não para todos, e sei como isso pode acontecer: as linhas de expressão, três mal definidas ao lado dos olhos, e o notável rego abaixo da boca. Deitada, seus olhos abertos não piscam. Morta? Talvez...

Andando pelo casarão, vejo quadros de Monet, Manet, Da Vinci, Michelangelo, Rembrandt. Há uma visível, para mim, mensagem na ordem da disposição, e na escolha das obras, mas sei que ninguém pode o perceber. Corredores, escadas, salas, corredores, escadas, passo por muitas delas e deles, mas não me canso ou sinto os pés se tocarem ao chão. Nem sinto os pés. E sinto que não preciso deles de forma nenhuma, talvez como se eu planasse pelo chão.Depois de andar, de muito andar enfim estou no quarto. Sinto claramente que ela está agonizando, sua alma pulsa diante do verdadeiro futuro dela, e de todos: morrer. A morte lhe abraça, ela levanta em linhas que não contornam nada, são formas sem solidez, são espaços tomados sem se tomar o espaço de alguém. O sentimento dela é vivo, é ódio por alguém. Ela passa por mim e nem ao menos me vê. Ela é translúcida. Serei eu também um espírito? Será esta a verdade do universo? O espiritualismo é mesmo verdade latente?}

Estou confuso quanto a isso que li. Parece que sonhei a mesma coisa. Não lembro de meu sonho, mas será que sonhei isto mesmo... Apenas sei que sonhei algo parecido, algo fora do comum, mas dentro deste estranho diário. Lerei mais:

{Falácias e mais falácias... como poderia acontecer algo tão redondamente fora do comum? Estarei eu louco? Estarei vivendo um sonho? Ou um pesadelo? Preciso saber se isto é real, mas o que afinal é real? A realidade, no ponto de vista mais cético é exatamente aquilo que acontece, ou que se está acontecendo com uma pessoa, ou animal. Mas se isto estiver acontecendo comigo, isto é real. Está dentro de minha realidade. Oh, mais falácias...

Devo olhar-me novamente ao espelho? Será que verei eu mesmo? Sinto-me o narciso arrependido e desacreditado de mim, sou um narciso caído ao chão.

Dormi. Pensei tanto que adormeci mas agora estou acordado. O sol brilha lá fora tenho certeza, mesmo não podendo o ver, tenho certeza. Meu quarto é longe de qualquer tipo de luz, a escuridão é a mais confortadora numa situação desta. A escuridão é minha amante...

Levanto-me enfim e vou até o salão das horas musicais, nome este dado por mim obviamente, visto que sou o dono deste casarão. Lá há um espelho, um espelho há lá. Hei eu de ver-me ao espelho? Ou há do espelho de ver-me? Não sei, oh, dúvida cruel que alentas meus dias, me mate mas não me torture!

Oh! Mas que poética enfim vivo na vida! Eis que há uma hora atrás fui olhar-me ao espelho, para ter certeza de que nada que penso ser sonho é realidade, mas ao olhar para mim, senti-me definitivamente o único narciso, e fui enamorado por uma deusa. Ela beijava-me os lábios, excitava-me o falo, os olhos dela eu queria muito ver, e não conseguia. Estranho inclusive agora pensando no momento, pois me apercebo de que não há ninguém aqui, neste mausoléu, e portanto como poderia ter sentido e visto através do espelho uma mulher que afogava em amor nem um pouco pueril? Talvez fosse mais um sonho! Oh maldito lugar! ...}

Estranho ele citar salão das horas musicais, pois tenho certeza de que há neste castelo onde estou um salão chamado Salão das Horas Musicais. Realmente não sei onde estou, mas pareço ter a mesma loucura que o escritor deste diário. Como posso não reconhecer o lugar onde estou e saber, ao mesmo tempo, que há um salão das horas musicais? Preciso sair deste quarto e preciso o fazer rápido, mas tenho preguiça e curiosidade... Calho a ler a continuação do trecho que li anteriormente:

{Mais que maldito, este lugar é amaldiçoado! Foi uma armadilha! ...}

Armadilha?

{Sim! Uma armadilha! Foi por isto que aquele homem que agonizava ao lado da mulher, quando eu me aproximei deles, disse aquelas palavras: "leia o diário e faça tudo o que ele diz"!}

Num impulso de susto e horror, Juan Lê Brusiér joga o diário para longe. De repente caem gotas de sangue de seus olhos. Ele sai do quarto e corre pelo castelo desesperado. De repente chega em um salão grande, oval, com cadeiras próximas a um palanque pequeno. Em cima do palanque existem tripés, daqueles que seguram partituras musicais. Envolvendo toda a parede oval há um espelho, e Juan se olha: ele vê apenas uma substância inexplicavelmente vibratória onde ele mesmo deveria estar, e de repente ela some, e nada mais reflete em Juan. Ao não se ver no espelho, corre para fora do castelo, e saindo viu um caminho de pedras de mármore. Seguiu este e chegou até uma ponte de madeira podre mas resistente. Atravessou e correu na linha limítrofe que havia entre o capim e o lago. Era noite e sua sombra se movimentava rapidamente, junto com ele até que os dois pararam e ele encontrou uma mulher. Ela estava com uma faca e pouco tempo foi de contemplação mútua. Ela o feriu e ele se fingiu de morto. Pensando que sua missão estava completa, tratou de cometer suicídio. No castelo, no quarto principal, havia uma mulher nua, bela, deitada. Foi traída e ao ter tal conhecimento, fez questão de se matar. A amante não sabia que o homem era casado, e quando o soube decidiu matá-lo e suicidar-se, mas mal sabia ela, a nobre Elzablith Fürner que Lê Brusiér, o Conde sabia perfeitamente forjar a morte, como nenhum outro habitante de Maradinéia.

Fürner caiu por sobre o capim e Juan ainda deitado sangrando, levantou-se, ainda sentindo a dor do golpe e lembrou-se de tudo: sua mulher, sua riqueza, seu castelo. Lembrou-se também que havia tomado um elixir que lhe daria vida eterna, para amar sempre à sua mulher, mas teria também que dá-lo a ela. E o homem vestido em trajes muito grossos, sujos e roto, que lhe deu o elixir, dissera que antes que sua mulher amada tomasse a bebida, ele poderia ter algumas ilusões, ou amnésias. Mesmo não sabendo bem que poderia ser uma amnésia, preferiu correr o risco. Levantou-se e a ferida estranhamente se abria, se aprofundava cada vez mais, como se fosse alguma maldição. Foi andando de volta a seu castelo, e ao entrar viu muitas paredes arranhadas, taças quebradas, cortinas rasgadas e algo vermelho pelo chão. Não entendeu porque aquilo estava desse jeito, mas não imaginou que poderia ser algo grave. Mas eis que dos raios e torrencial chuva que lá fora caía, ardia sua ferida, e seus pés se arrastavam pelo chão enquanto era o homem sem medo. Os quadros de Monet e de Rembrandt estavam todos destruídos e manchados em vermelho, e lembrou-se do diário. Se o que antes fosse uma ilusão, talvez o diário não existisse. Foi até um dos quartos de hospedes e lá encontrou o armário grande, a cama e o diário ao chão. Pegou, abriu e lendo foi lembrando de um ocorrido com ele:

{E enfurecido com minha mulher, aquela a quem sempre dei amor...}

Que droga! Tenho que voltar algumas páginas...

{Ardeu em meu peito a culpa. Sabia que mesmo depois de tantos olhares malditos ela ainda me amava. Mesmo que não acreditasse em mim, mesmo que dando ouvidos ao andarilho sobre o que diz sobre mim, tenho certeza que ela nunca me desejaria mal, ou ainda pudesse trair-me a confiança. Isto é algo em meu sentimento, é uma certeza minha. Correto dizer que já não sei exatamente meu estado atual, pois continuo me sentindo parte de tudo, e além de todos. Continuo sentindo-me assim e vendo-me assim. E não acho que tenha tido uma ilusão ao olhar no espelho e me ver como um espírito, e sim vi a verdade. Pude ver além da carne, pois sou eu aquele que pode fazer isto. Como? Não sei explicar. Só sei que estou me acostumando a esse estado estranho de ser. Como disse antes, sinto-me parte de tudo e todo o ambiente a meu redor é eu. Sim, pois quando meus sentimentos se são sentidos por mim, acontecem coisas a meu redor. Sinto tesão e o sol brilha mais forte, sinto medo e as árvores se balançam com violência, sinto dor física e as estrelas brilham. Eu choro e a chuva cai. Eu odeio e os mares se agitam. Eu amo e de meus olhos caem mil gotas de sangue. Quem será eu afinal? O que será eu afinal?}

Oh, este finalzinho eu já li antes!

{Agora se passaram algumas horas depois que escrevi sobre meu estado confuso, e só continuo a escrever mais porque espero que alguém venha a ler. E também o faço para jogar meus sentimentos para o papel. Mas não importa o que me faz escrever, mas sim o que eu quero escrever. Sinto ódio. Sinto medo. Minha mulher, a amada mulher de meus sonhos, loira, olhos verdes... Ela se fez calada de minha presença e deitou-se na luxúria com o andarilho, o mesmo que me deu o elixir do eterno amor. É até irônico, pois só o quis para reafirmar a eternidade de nosso amor, e no entanto ele se desfez. Agora tenho a eternidade em meus pés, e muito menos a quero. Sinto-me traído, e as rosas vermelhas de meu jardim zombam de minha cara. Empunho minha espada agora, visto-me com as roupas de gala vermelha e preta, uso meu sobretudo, meu chapéu e essa noite molharei minha espada no sangue dela. Minha dor será vingada por mim. A justiça se fará pela mão do injustiçado.

E enfurecido com minha mulher, aquela a quem sempre dei amor, mas me traiu como se eu fosse um reflexo dela no espelho e ela um narciso que não se gosta mais. E tudo por causa do elixir, ele que me deu a ilusão de estar amando minha mulher, e na verdade acabei amando Elzablith Füner, a nobre que está morando em meu castelo porque seus familiares foram assassinados.}

Espere! Mas essa é minha história! Ou não? É... esses flashes de reconhecimento paisagístico da leitura não são apenas frutos de uma boa criatividade. É fruto também da verdade! Estou lendo minha vida!

{A noite é densa, são provavelmente algumas tardes horas da madrugada, e agora contemplo a beleza dos cadáveres cortados, e alguns decapitados, todos empilhados em um canto da sala principal do castelo. Matei minhas cinqüenta criadas, meus dois mordomos, minhas sete irmãs, meus nove irmãos, meus amigos, alguns hospedes que desfrutavam de meu espaço... enfim, matei a todos que tentaram me impedir de assassinar minha esposa, a condessa Thuzare Du Mansher.

Estou sujo de sangue. Minha espada? Também... Como é gostoso matar, senti prazer em tirar a vida dessas infelizes pessoas que se propuseram a evitar a decorrência do destino. E agora tenho que parar de escrever, pois a noite não acabou, assim como a vida de minha amada, minha eterna amada.}

Será que matei minha esposa? Será? Infelizmente só consigo lembrar do ocorrido enquanto leio, como se fosse apenas verossímil, mas de alguma forma, eu sei que é verdade.

{Foi tão saboroso o último coito. A despi e penetrei em todos os esfíncteres possíveis daquele monumento de beleza. Fui violento, e admito que não havia amor ou vontade, mas o fiz para ter uma ultima memória boa daquele Judas de saia. Ela nada falou, em nenhum momento, apenas gritava de dor, e em algumas vezes clamava para que eu parasse, mas eu não obedeci. Foram uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes! Sete vezes que estuprei aquela linda mulher, que se estava sedenta por amor, o teve até desmaiar. E realmente desmaiou. Peguei uma taça, e enchi do melhor vinho. Enquanto esperava ela acordar, eu bebia, e a cada gole, uma onda de tesão e de amor pelo presente me subia dos pés à cabeça e depois voltava. Quando acordou Enfiei minhas mãos em seu pescoço e disse: "de vossa vingança surgiu a maldade, e da vossa maldade surge vossa morte".

A enforquei até ficar azulada, e de seus olhos saírem toda água possível. Seus movimentos ficaram fracos e acabaram, mas seu corpo lindo continuava ali. Perfeito...}

Eu matei minha esposa! Mas será que o corpo dela continua no quarto?

Juan Lê Brusiér então com o diário vai andando pelo castelo. Agora entende bem porque aquelas manchas vermelhas por todo canto. Todas aquelas mortes e nenhum tipo de lembrança até ler aquilo. Porque será que isto houve?

Sem respostas, ele chega até o quarto de sua amada mulher, a condessa morta chamada Thuzare Du Mansher. Lá está o corpo dela, estuprado e com um hematoma no pescoço. Voltou a ler:

{Perfeito... Inerte, mudo, lindo. Após contemplar por alguns minutos enterrei o corpo no meu jardim, exatamente no quarto jardim, aquele que tem apenas rosas vermelhas.}

Vendo que o corpo estava ali, e que toda a escrita era verdade, ele foi enterrar a mulher. Após isso, já era de manhã, e a curiosidade de abrir o diário mais uma vez, para ver a continuação era simplesmente grande. Mas sabia que sem dúvida obedeceria ao que ali estava escrito. Decidiu não o fazer, ou pelo menos fazer depois de averiguar sobre o casal que no diário, estava deitado sobre o capim, e que homem lhe falou para obedecer ao que dizia o diário.

Chegando no lugar reconheceu como sendo um de seus irmãos, e a mulher ao lado era uma das criadas, também estava perto da morte. Ele disse a Juan Lê Brusiér: "Leia o diário". E morreu.

Juan Lê Brusiér então abriu o diário:

{E então estando no jardim...}

Desesperadamente fechou o diário e correu para o castelo. Uma vez no jardim ele abriu:

{E então estando no jardim eu, após acabar com a vida da única pessoa a quem realmente amei, eu vejo e sinto meu futuro, e meu futuro me vê e me sente. E então a morte desta eternidade maldita acaba, ao passo que meus pés falecem e minhas veias secam. Meu coração pára de bater, meus olhos se fecham e este é meu fim.}

E assim o foi: ele caiu ao chão e morreu.

Mister Eric
Enviado por Mister Eric em 09/05/2007
Código do texto: T480900