O PASSAPORTE EUROPEU

"Não posso oferecer-lhe nada que

não exista em você mesmo.

Não posso abrir-lhe outro mundo

a não ser aquele que há

em sua própria alma.

Nada posso lhe dar

a não ser a oportunidade,

o impulso e a chave.

Eu o ajudarei apenas para tornar

visível o seu próprio mundo,

e isso é tudo."

"Sidartha" de Hermann Hesse)

_____ Como vai se chamar a criança?

_____ General Sinzentá.

_____ General? General não é nome.

_____ Sei disso. Veja, porém, senhor escrivão, sou brasileiro, pobre, meu filho com certeza também será pobre. É um menino, quero que se chame General, porque assim, quando crescer, será pelo menos respeitado.

_____ General? Nem pensar, proibido pela lei de nomenclatura e assistência à criança. Pense em outro nome.

_____ Qual?

_____ Vou eu saber? Isso é com o senhor. Torno a dizer que General, Brigadeiro..., não pode.

_____ Não, não. Brigadeiro é doce de chocolate. Nem eu quero que meu filho tenha nome de sobremesa.

_____ Chocolate ou militar, não pode! General, Coronel, Cabo, Sargento e Marechal também. Diga um nome para o menino, já comecei o registro e tenho que terminar o assentamento agora.

_____ Que tal Contra-Almirante Caldas?

E o escrivão exasperado:

_____ Nem Almirante, nem Contra-Almirante! E por que Caldas? De onde, cacete, o senhor tirou esse Caldas?

Como a água de um rio que no transcurso absorve as boas e más qualidades dos leitos por onde percorre, a criança tornou-se o homem, fruto e imagem das experiências vivenciadas.

Aprendeu que cada um deve cuidar do desfecho das suas coisas, da própria vida, o que alguns chamam de destino.

Em conseqüência, se perdeu a primeira oportunidade ao nascer pobre, aproveitou bem a segunda, casando-se com mulher rica.

Fato que já é uma grande vitória, porque a conquistada riqueza, além de fazê-lo pessoa sem preocupações materiais, colocou-o acima da grande maioria das pessoas.

Não demorou a perceber, no entanto, que no meio social onde fora acolhido pelo casamento, teria que se contentar em ser sempre o segundo entre os primeiros.

Para driblar essa inconveniência, arquitetou alguma forma de pelo menos ser o primeiro entre os segundos.

Não que tivesse sapiência para construir este desejo. Ele concretizou-se por acaso, como uma pena de pássaro que voando ao sabor da brisa houvesse pousado em seu colo.

Viajou, foi ver a copa do mundo, contou as peripécias para os conhecidos, deu até uma entrevista numa emissora de rádio, e gostou.

Como tinha tempo, e tempo é a verdadeira fortuna na vida, projetou o futuro para viajar pelo planeta, conhecer lugares novos, culturas interessantes e assistir a todas as copas de futebol, colecionando histórias para contar na volta.

Descobriu o inusitado prazer de narrar, à plebe embasbacada, as conquistas futebolísticas que viu de corpo presente.

Em especial, as do time canarinho.

Durante anos deliciou-se com a exclusividade, que fazia dele pessoa reconhecida na sociedade.

Sabia que era invejado, porque o que é restrito é saboreado em dobro.

E como diz o homem do campo em Araçatuba, o capim do vizinho, mesmo ressecado, aparenta ser mais verde.

O torneio mundial era como as montanhas.

Distantes eram azuis e agradáveis.

De perto, terrenos ásperos, traiçoeiros e desagradáveis.

Por essas razões irritou-se com a copa de futebol no Brasil.

E mais, que graça teria vê-la aqui, quando estaria ao alcance de qualquer pessoa.

Suas ruminações despertaram-lhe sentimento de aborrecimento, como quando conheceu a sua mulher:

_____ Aimoré? Que diabo de nome é esse?

_____ Coisa do meu pai e culpa do escrivão do cartório. Eu iria me chamar Contra-Almirante Caldas. Nem era para ser Aimoré; seria Aimorés, mas o dono do cartório não aceitou porque considerou que era palavra no plural. E eu sou apenas um...

Sua futura consorte torceu a boca em desprezo:

_____ Teria sido muito pior!

Ela nunca ficara sabendo que o sogro retirara o nome Almirante Caldas de um livro.

E que o velho tivera, talvez, uma espécie de premonição quanto ao rebento, pois, Caldas era aquele que seria e quem quase foi, sem que nunca tivesse existido a mais remota possibilidade de que poderia ser:

"O contra-almirante era interessantíssimo, ... Nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. ... Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado "Lima Barroso". Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha, teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio." (extraído do livro "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto; leitura obrigatória.)

O anúncio da copa do mundo no Brasil, inesperado golpe do destino, havia lhe subtraído a superioridade patética que lhe granjeara admiração.

Mas que ideia ?

Esses descabidos gastos seriam melhores aplicados na saúde, na educação, em coisas de importâncias.

E o jogo de abertura? Que horror!

A se realizar numa favela: Itaquerão!

Ainda que fosse o Morumbi e os jogos em condomínios fechados!

_____ Aimoré Sinzentá Chiquitis! Nome doido! Indígena ?

O funcionário da embaixada italiana sorria, estava achando graça naquilo que para Aimoré não tinha graça alguma.

_____ O senhor trouxe toda a documentação necessária para requerer a cidadania e o passaporte italiano?

_____ Sim, sim. - Respondeu servil, para logo recuperar a excelência - Tudo organizado corretamente e em detalhes pelo meu advogado.

A ideia da cidadania fora da sua mulher, Coleoni de nascimento, que já tinha o seu passaporte europeu e considerava-o documento de facilidades.

_____ Olga – disse ele a esposa – vamos fugir da copa que vai transformar o país numa bagunça. Vamos viajar para a Europa. Está na hora de você conhecer os seus parentes do primeiro mundo.

No aeroporto de Roma, esperou na fila para apresentar o passaporte, absolto nos agradáveis pensamentos que lhe assomavam nesta hora, “um carimbo para o paraíso”.

Tão distraído que foi necessário o alfandegário perguntar-lhe:

_____ Senza identidá?

_____ Yeah, yeah,... Sinzentá, tu mi conosci? – respondeu atrapalhado com o trocadilho.

_____ Che cosa? – Espantou-se o “fiscale”.

_____ Mi scusi. Mi confuse... - Apressou-se a apresentar o passaporte.

Foi carimbado com indiferença.

Num “emporio” de Piazza Biffi comprou alguns doces para levá-los de presente aos parentes da esposa.

Zuccotto, amaretti e zeppole, este último, ele comeu alguns antes que fossem embalados.

Como a distância era curta, o casal foi a pé até Via Cuniberti, antegozando o prazer de encontrar alguns primos por parte dos avós.

A casa era antiga, como tudo em Roma, térrea, modesta, bem conservada, no entanto, com floreiras mal cuidadas e muros pichados.

Havia algumas crianças na frente, no quintal.

Perguntou a maior delas:

_____ Qui abitano i Coleones?

E o menino gritou para que a mãe dentro da casa ouvisse:

_____ Mamma há visite.

_____ Chi é? Respondeu ela, também num grito.

E a mulher de Aimoré, impaciente, gritou de volta:

_____ Alcuni parenti. Del Brasile!

Alguns vizinhos já tinham colocado as cabeças nas janelas para ouvirem melhor a gritaria na rua.

_____ Brasile?! - Gritou de volta a espantada mulher dentro da casa.

E saiu de avental e lenço na cabeça, assustada, ralhando para as crianças:

_____ Into bambini... into bambini... Brasile! Tutti ladri... tutti ladri!

Arrebanhou os pivetes, levou-os para dentro e bateu a porta com força.

Terminou desse modo desastroso o breve encontro de gerações, separadas pelo tempo e pelo oceano.

Olga e Aimoré voltaram à Piazza Biffi, sentaram em um banco de jardim e não falaram um com outro.

Queriam esquecer; fazer de conta que não tinha acontecido.

No “emporio” onde compraram os doces a televisão estava ligada e transmitia o jogo Argentina e Alemanha, direto do Maracanã.

Aimoré levou o pacote de zeppole e sentou-se em uma mesa em frente da televisão.

No intervalo do primeiro tempo já estava chorando sem se dar conta.

Era a primeira copa do mundo que não via ao vivo.

Um zeppole, mordido pela metade, jazia na mesa.

Olga, sua mulher, sumira pelo comércio em busca de quinquilharia européia que levaria de presente às amigas.

Compras recuperavam-lhe a auto-estima.

Para não ser expulso do “emporio” pediu um bom vinho, e depois outro.

Terminado o jogo entregou o cartão de crédito para pagar a conta.

O proprietário ficou a ler o seu nome no dinheiro de plástico e perguntou com certa malícia:

____ Aimoré?

____ Yeah!

O homem olhou-o com sorriso de simpatia, lembrando-se da comemoração final dos alemães em homenagens aos índios que lhes acolheram:

____ Pataxó?

Ele olhou ao redor para se precaver da presença da mulher:

____ No. Brasiliano, molto orgoglioso!

E para consigo, pensou: "Pataxó é índio do ramo da tribo dos Aimorés; tem mesmo um pouco a ver comigo...".

E o comerciante, num português inseguro:

___ Morei no Brasil. Lindo país. Tenho saudades...

___ Vero ? - perguntou Aimoré.

___ Sim. Para matar a saudade um pouco ouço as músicas de Antonio Carlos Gomes. Adoro o "Guarani", "Fosca", "Maria de Tudor", "Joana de Flandres", "Lo Schiavo" ....

Aimoré não respondeu.

Do "Guarani" conhecia somente a abertura triunfal executada via rádio na "Voz do Brasil".

Sentiu-se envergonhado de expressar a sua ignorância.

___ Sabia... - retornou o comerciante italiano - sabia que Carlos Gomes morou na Itália? Perto de Milão, em Maggionico, província de Lecco. No auge da carreira construiu uma mansão em quatro hectares de bosques, ao qual deu o nome de "VILA BRASÍLIA". Brasília... foi um visionário, foi ele quem nominou a capital do Brasil quase cem anos antes !

Ainda hoje a casa existe e está preservada. Nela, no jardim frontal, estão as estátuas de Ceci e Peri, personagens de José de Alencar e da ópera "O Guarani". Na entrada está o busto de Carlos Gomes em bronze e alguns utensílios que utilizava. A casa hoje possui também um auditório com 400 lugares onde são executados peças musicais e festejado o nascimento do compositor. Já estive lá uma vez. Adorável...

Olga, mulher de Aimoré, chegou com os braços carregados de bugigangas italianas fabricadas na China.

Aimoré apresentou-lhe o comerciante satisfação:

____ Olga, esse senhor morou no Brasil e adora nosso país.

Olga olhou o italiano com indiferença.

Jogou os badulaques na mesa, deu um tapa na orelha de Aimoré e disse:

____ Pegue essas coisas e vamos embora. Era só o que me faltava, um italiano que ama o Brasil. A Moóca está cheio deles !! Que me interessa encontrá-los aqui ...

A alegria momentânea do marido desapareceu, ele pagou a conta, catou as coisas da mulher, abaixou a cabeça e a seguiu... como um cãozinho amestrado.

.......................................................

Os diálogos em italianos são necessários, mas de fácil entendimento.

Obrigado pela leitura.

Sajob – 15/julho/2014.