O Álbum

Meu nome é Tobias Mattos e sou escritor. Para ser exato – e me considero exato -, fui escritor. Embora conserve o título, como quem guarda uma relíquia desgastada, não escrevo mais. Anoto tudo com teimosia. Coleciono verbos e metáforas de valor controverso; guardo adjetivos como quem alimenta um estoque desativado.

Estou apto a reorganizar palavras, com eficiência técnica. Embaralho expressões para obter trechos originais. Mas embora inéditas na forma, as patéticas narrativas reproduzem o sentido de algo que já escrevi. São aberrações que imitam a si mesmas, incapazes de se transmutar.

Monto textos; já não conto histórias. Minha obra diminui de valor à medida que aumenta meu empenho para torná-la verossímil. Há muito perdi a capacidade de imaginar e de conceber personagens. A doença me acometeu de repente e – hoje sei - está relacionada a um evento extraordinário.

Desde menino, guardava comigo um álbum de fotografias. Nunca conheci sua origem: se era produto de herança ou se já habitava o casarão antigo quando para lá me mudei. O fato é que o objeto – uma peça retangular de papel cartão azulado e folhas puídas de seda – acompanhava-me sempre. Nele figuravam desconhecidos - ou antepassados que, de tão distantes, não se deixavam identificar.

Daqueles vultos tristes em tonalidades impossíveis fiz nascer ainda na infância o esboço de minhas escrituras iniciais. Eram homens, mulheres e crianças em trajes grotescos que batizei com nomes excêntricos, insuflando neles, como um Gepetto aplicado, a vida dos meus primeiros personagens: meus únicos personagens.

Procurei criar outros, desvinculados do álbum, mas todos se pareciam comigo. Anódinos, repetiam minha rotina tediosa, espelhando a vizinhança rasa que habito. Exalavam o cheiro azedo dos meus objetos, embaraçados no tédio recorrente, no desacontecimento dos meus dias.

Tentei reagir, libertar-me da influência das criaturas de papel, buscar outras histórias, mas acabei por me lançar num carrossel de aventuras malsucedidas. Minhas noites de excesso não só não me devolveram a fantasia como abateram as economias obtidas com meu primeiro e único livro – O Prestígio. A novela, que contava a saga dos meus personagens de fotografia, foi um sucesso editorial. A causa da minha fama, entretanto, era desconhecida de todos. Ninguém imaginava que minhas histórias nasciam das confissões sussurradas por aquelas criaturas. Era o álbum a fonte da minha literatura, a origem dos meus relatos. Como um mágico, eu podia sentir o pulso de seus habitantes e transformar em palavras sua imobilidade silenciosa.

O episódio que mudou minha sorte aconteceu numa tarde de primavera. Como autor de renome, era constantemente assediado a tutelar escritores iniciantes. Quase sempre recusava a tarefa, mas aceitei um deles – Nelo Manfred - como meu discípulo permanente.

Manfred, como preferia ser chamado, era um parente distante, filho de uma das primas de minha mãe. Não fui capaz de negar seu pedido.

Desde o início, senti compaixão por aquele jovem esquálido e quase transparente. Tinha uma pele esbranquiçada da qual brotavam sinais de algum sarampo mal curado, o que lhe dava o aspecto conflitante de um menino em corpo de homem. Era alto, mas não o bastante para abrigar em seu porte a timidez evidente. E acima de todas as outras sobrevinha uma característica: a avidez por livros - uma curiosidade desesperada por autores e suas obras. Era como se quisesse devorar as palavras que lia. Mas além de seus intermináveis questionamentos, de sua vontade de aprender mais e mais, não identificava nele nenhum talento. Talvez – e disso só me dou conta agora – subestimasse seus textos por julgá-los simples e desprovidos de narrativas heróicas. Eram apenas histórias de pessoas comuns, sem qualquer qualidade inusitada.

Transmiti a este homem minha prática e minha técnica. Fui seu pai e seu guia por labirintos de contos e fábulas, atiçando ainda mais seu apetite literário. Manfred tornou-se presença constante em minha vida. Nunca, entretanto, revelei a ele o segredo. E como não recebia visitas, nunca me ocorreu esconder o álbum. Era deixado em meio a papéis, na primeira gaveta da minha mesa de trabalho.

Na tarde em que tudo aconteceu, cheguei em casa atrasado para o encontro semanal com Manfred. Ele tinha sido recebido pela empregada e esperava-me no escritório. Ao me aproximar da porta vi, aterrorizado, que folheava com fascínio minhas figuras de papel, admirando as imagens como se tentasse absorver seus espíritos. Não pude conter um grito bárbaro. Sem entender minha reação violenta, Manfred largou o álbum, deixando cair no tapete algumas fotos soltas. Descontrolado, expulsei-o de casa.

Saiu correndo sem levar nada. Respirei com alívio, mas meu consolo não durou: ouvi um crescente farfalhar, um sussurro de sombras à espreita. Pela janela constatei petrificado que as criaturas do álbum tinham abandonado, uma a uma, suas poses estáticas e o seguiam, rua abaixo, como quem acompanha um ícone numa procissão.

Carla Franco
Enviado por Carla Franco em 19/05/2007
Reeditado em 27/07/2007
Código do texto: T493254
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