A Língua, O Homem

Entre os murmúrios da floresta, um canto solitário de bem-te-vi.

Cheguei ali faziam... a quanto tempo eu havia chegado?

Estava a um tempo indeterminado auscultando tal recitar notório de majestosas frases, palavras cantadas e vocalizações harmônicas de modo que, enquanto aquele ser desconhecido saído de algum lugar na floresta à minha volta, vestido de roupas simples e estranhas como se pertencessem a um tempo a muito passado me falava, muito ereto e de postura altiva, algo em sua bela, bela língua, me parecia um canto, natural e belo, como pássaros ao nascer o dia.

Esta é a ocasião de meu primeiro contato com “O Canto”, nome que tomei a liberdade de dar à língua mágica do “Homem”, como o chamei. De olhar ferino e lábios finos, cabelos longos e muito sujos, com pedaços de galhos e folhas e sabe-se lá o que mais presos por toda parte, era muito magro e, com exceção aos olhos e dentes – alvos de tudo -, extremamente preto. Sua pele era de um negro puro, sem tom de cinza a lhe desbotar.

Veio a mim, começou seu canto e quedei ouvindo, admirado de tal acontecimento, de tal figura diante de mim e, sobretudo, do som selvagem e belo de sua língua com a qual me dizia algo decerto muito importante.

Finado o monólogo, virou as costas e saiu a caminhar calmamente em direção ao coração da floresta. Abismado com tal experiência excepcional, segui os passos do Homem. Caminhando alguns passos a minha frente, parecia imperturbável até que resolvi apresentar-me, como se houvesse valor em meu nome; ou importância houvesse, em situação como aquela, de amenidades como troca de credenciais.

Parou imediatamente. Virou-se diretamente a mim e, olhando profundamente em meus olhos cantou mais uma vez.

Mais uma vez também este que vos fala foi capturado pela beleza e pelos detalhes harmônicos daquela língua magnífica. E dessa vez surgiu em mim a impressão de que, afinal, tal declamar melodioso parecia fazer algum sentido.

De fato, enquanto mergulhava na natureza ao mesmo tempo selvagem e calma da língua utilizada por meu novo e singular companheiro de viagem, pareciam chegar a mim imagens confusas e padrões de luzes que ao primeiro momento não traziam sentido específico mas que, conforme sua fala adentrava meus ouvidos e roçava, como que carinhosamente, as portas de minha percepção, vinha carregada de cada vez mais sentido até que por fim eu entendia – não através de significados e verbos e adjetivos, mas através de uma percepção misteriosa e sensorial, ou psíquica, não saberia explicar – o sentido, a gravidade e a profundidade da mensagem a mim destinada.

Seria natural neste ponto ter à mente pensamentos indagativos sobre meu destino anterior e, além disso, sobre os motivos que levaram a mim, sabe-se lá a quanto tempo, a estar em uma floresta e encontrar com tal criatura singular. Mas a importância dessa questão é sensivelmente diminuída face a força do acontecimento objeto desta narrativa, de modo que me permitirei negligenciar os detalhes anteriores ao encontro narrado nesta história.

Não poderia dizer por quanto tempo acompanhei O Homem, pois não faço ideia da quantidade de horas, dias, meses ou anos que posso ter passado escutando aquilo que ele tinha a me dizer – quando ele tinha algo a me dizer – em sua língua sobre-humana.

Era como se as palavras me fossem servidas de refeição. Como se me dessem de beber vírgulas e exclamações. Era eu então refém, por conta própria, do som originado da aliança de sua língua inumana com sua voz que careço de adjetivos em meu limitado vocabulário de meu humilde Português para descrever.

Não lembro, ao reviver a história nos recônditos de minha mente, do gosto do alimento em minha boca, do frescor da água em minha garganta e nem mesmo de quaisquer sonhos que possam ter me visitado durante o sono. Talvez sorver a Língua fosse suficiente para aplacar tudo o que possa surgir de necessidades humanas e sendo assim, a água e o alimento sequer tenham chegado a minha boca afinal, e nem os sonhos tenham vindo me visitar porque dormir era desnecessário.

Arremedo de poeta que sou, cheguei a sonhar – acordado, é claro – com as joias que poderiam ser escritas naquela Língua singular. Em um arroubo de audácia fui pedir inclusive que me escrevesse algo, qualquer coisa que fosse, em seu dialeto peculiar, mas a resposta não foi mais do que um olhar mudo e demorado ao fundo de meus olhos, que me fez envergonhado e escoou-se toda coragem.

Da floresta ao meu redor, pouco ou nada sei. Lembro de reconhecer plantas e animais que sabia fazerem parte de regiões diferentes, o que me deixou confuso mas não particularmente interessado porque, então, tudo o que interessava era o som da Língua. Não sei da Lua, pois o pouco que me era revelado do céu acima das copas das árvores a muitos metros do chão só trazia ocasionalmente o brilho de alguma estrela qualquer.

O fato é que minha viagem chegou ao fim em um dia qualquer, sem nada de especial que pudesse ser dito a seu respeito ou que pudesse torná-lo digno de nota, a não ser pelo fato de que nesse dia esquecido de um mês qualquer, em algum momento de minha vida, me despedi sem pronunciar palavra – pois havia eu mesmo abolido o som por mim produzido, na ânsia de sorver cada som desabrochado da Língua, até mesmo o mais íntimo murmúrio. Parou de costas pra mim, cantou uma longa e triste história, e o mundo parecia ter prendido a respiração a escutá-la.

Prostrado, vi imagens de alegria e felicidade; de amor e amizade; o sorriso de um amor passado (ou presente); o sorriso de minha filha; ah, minha filha! Vi meu pai, vi minha mãe; vi as grandes e pequenas coisas boas.

Vi o futuro!

Sentei e as imagens agora eram do trabalho e de responsabilidades; aqueles que dependem de mim, aqueles que admiro; todos que já se foram e os que estão por vir; e vi o Homem (a raça).

Vi miséria e solidão; vi a ignorância e a intolerância; e vi a solidão. Sem que eu houvesse percebido, algo havia mudado naquilo que era dito a mim. Como se uma música diferente estivesse tocando. Quando chorei pela solidão humana, vi a ganância e a mentira; vi o presente e então vi o futuro novamente, e eram outros os olhos meus. E chorei pelo futuro.

Então vi a mim, sentado em uma clareira qualquer de uma floresta desconhecida, e me enxerguei completamente. Vi meu amor, e não vi seu fim; vi meus sonhos, minha sinceridade de sentimentos; vi honestidade e vi meus ideais. Vi em mim juventude e velhice; não pude ver o início do caminho, mas vislumbrei seu fim. Na linha do horizonte, o precipício?

Vi que era bom, e senti certo orgulho. Então divisei meu egoísmo, minha própria intolerância; vi minha ignorância e ingenuidade; vi fraqueza e medo, e minha própria solidão. Tentavam se esconder dentro de mim mas então tudo me era revelado.

Uma sombra cobriu minha face e vi o olhar de minha filha a ir embora. Vi a mim, pequeno e tímido, atormentado e insone. Senti pena de mim.

Num instante de silêncio a pena se esvaiu, e enquanto a música pareceu mudar mais uma vez vi que, somando tudo, me sentia satisfeito pelo resultado. Sabia o que me motivava e afinal, o caminho tinha uma vista excepcional. E seguiria infinitamente após eu me cansar da caminhada.

Toda a sabedoria simples que as pessoas costumam ignorar me foi mostrada durante sua fala, e então silêncio. O mais puro silêncio que já se ouviu, toda a criação se manteve muda, e até as pedras se abstiveram de rolar.

Foi então que O homem, no último instante em que seus olhos ainda olhavam os meus, deixou perpassa-lhes certa tristeza que julgo jamais será compreendida. Então virou à esquerda, deu o primeiro passo e eu sabia então que havia chegado a hora de voltar pra casa.

Virei à direita e depois de cerca de uns bons quinze passos me deparei subitamente com... a porta de minha casa! O que num instante era uma castanheira enorme, após um fugaz piscar de olhos havia dado lugar à porta de trás de minha casa. Com o pequeno pé de limão que plantei ali perto com a minha filha em um de seus aniversários remotos, sempre do mesmo tamanho, lembrança viva e perene da criança que um dia foi minha filha, a vista parecia a mesma de sempre mas colorida com outras cores, como se fossem outros os olhos que me a mostrassem.

Esse é só mais um dos detalhes extraordinários e incompreensíveis que permeiam o meu estranho encontro com A Língua, mais bela que qualquer língua já falada pelo homem, e o triste ser que cantou suas mensagens endereçadas a mim.

Ao abrir a porta de casa, toda a saudade do universo mora em mim, e clama por Alice.