QUEM AMA O FEIO...

Espirilo, rapagão de trinta anos, alto, forte e vigoroso, era muito conhecido na pequena cidade em que nascera. Mas vivia com sua mãe num casebre afastado de tudo e de todos, moravam no centro, mas por força das circunstancias, tiveram que se mudar para uma pequena chácara e lá se isolaram.

Dona Espenina, amava seu filho, o mesmo não acontecia com os moradores da comunidade, por isto, toda vez que ela precisava ir à cidade, ia só, pois Espirilo estava terminantemente proibido de lá entrar. Em companhia da mãe, ia de carroça até a entrada do perímetro urbano, sua mãe caminhava até o centro onde comprava seus víveres para o mês, alugava uma carroça para transportar as compras até o ponto onde seu filho a aguardava, pois ninguém ousava ir até a chácara, o próprio cocheiro se encarregava de baldear as compras para a carroça de D. Espenina, enquanto Espirilo aguardava atrás de frondosas árvores o final da operação. Há muito tempo que Espirilo não pisava na cidade, pois da última vez que lá estivera, por pouco não foi linchado. Tudo aconteceu quando duas meninas foram estupradas e estranguladas, e todos foram unânimes em afirmar que fora ele o autor do delito. Mas nada foi provado, e o crime ficou impune, sua mãe o conhecia bem, sabia que o filho jamais faria algo semelhante, mas a partir deste dia, tudo de ruim que acontecia na cidade, Espirilo levava a culpa, por conta disso, conversara com sua mãe e juntos decidiram que ele nunca mais colocaria os pés naquelas terras.

Já se foram quinze anos, ele agora tem trinta, sabia que mais cedo ou mais tarde ficaria sozinho neste mundo, os poucos parentes sumiram, seu pai falecera quando ele tinha dois anos, amigos nunca tivera, só lhe restava sua velha mãe, que o amava de verdade, por ela daria sua vida se preciso fosse, toda noite, deitado em sua velha cama, pensava em sua vida, em sua mãe, que estava muito velhinha e cansada, e ele ficaria sozinho, não tinha amigos, nunca namorou, não conhecera mulher, mas tinha muitos desejos de ser pai, ter uma esposa, de ter alguém ao seu lado. Durante a noite, em suas insônias, pensava seriamente em sua situação: A genética fora malvada com ele, pois nascera feio, e isto o aborrecia bastante, gostaria de ser normal, ou menos horrível, mas ali estava sua verdadeira condição humana, era muito feio, mas ser feio não é defeito, afinal cada qual tem sua beleza, mas ele se sentia uma aberração da natureza, por isto ele se auto-isolava. Com repugnância alisava seu nariz disforme, suas orelhas eram incrivelmente enormes, dentes acima do tamanho normais e irregulares, que pareciam querer saltar de sua boca, pois seus lábios eram finos, ou não tinha lábios, era o que diziam. Nascera sem um fio sequer de cabelo, e permanece sem cabelos até hoje. Seu pescoço era grosso como de um quadrúpede, olhos esbugalhados, suas manoplas seguravam um porco como se fossem garras, quando andava com suas pernas longas, a sombra de seu corpanzil aterrorizava o mais destemido mortal, era conhecido por todos como um verdadeiro desvio da natureza ou um mutante, outros diziam que ele viera à luz antes da hora.

Numa madrugada fria, Espirilo despertou sentindo arrepios pelo corpo, tremia como uma vara verde, caminhou pelo quarto esbarrando nos poucos móveis existentes, acendeu a luz fraca, olhou-se no espelho e viu refletido seu rosto horrível, passou os dedos nas protuberâncias que sempre o acompanhou, alguns caroços doíam, e vez ou outra até sangravam, com pensamentos revoltos povoando sua mente, caminhou até a sala, sempre se abaixando para não bater a cabeçorra nos portais, olhou para o quarto da mãe, viu a luz da lamparina tremulando, num velho catre estava D. Espenina, dormia com as canelas descobertas, Espirilo não vacilou, aproximou-se da mãe e num gesto carinhoso puxou as cobertas para cobri-la, após este gesto, encostou sua carótida no rosto de sua velha mãe, depositou um beijo cheio de amor, e bondade, mas sentiu algo estranho, o rosto de sua mãe estava gelado, tentou sentir sua respiração, mas foi em vão, e numa fração de segundos, Espirilo a tudo percebeu: Sua querida mamãe estava morta a única pessoa neste mundo que o amara, se fora para sempre. Sentia-se como um menino desprotegido, e ao mesmo tempo, um inútil, em toda sua longa e miserável vida, nada fizera por ela. Saiu correndo pelo quintal, não se importando com o vento cortante, e ali, sozinho na escuridão da noite, começou a esbravejar e urrar literalmente, se alguém ouvisse, diria que um animal estava ferido, ou preso em alguma armadilha,. Gritava, urrava, dava socos em sua própria cara, chutava tudo que encontrava pela frente. O dia amanheceu e o encontrou alí sentado num monte de madeira velha, a claridade o trouxe para sua realidade. Um pouco mais calmo, decidiu enterrar o corpo de sua mãe, tremendo de frio e com olhos injetados de sangue, começou a cavar. Foi então que teve um vislumbre de inteligência, e percebeu que sua mãe merece algo melhor que uma simples cova rasa num quintal imundo. Atrelou o cavalo

e envolveu o corpo de sua mãe com alguns lençóis velhos e partiu rumo a cidade.

Percorreu os seis quilômetros com muita ansiedade e incertezas, fustigava o velho animal com violência, queria chegar logo, pois sabia que todos ainda dormiam, e não perceberiam sua presença. Castigava o animal com fortes golpes e urrava, sentia-se aliviado ouvindo seus próprios gritos, de quando em vez, olhava o corpo miúdo da mãe que sacolejava sem parar. Sua vida desfilava em sua mente como um filme, pensava no amor que sua mãe lhe dedicara, nos cuidados que tinha quando se adoentava, na educação que ela lhe dera.

Deu um soco em sua cabeçorra, seus olhos adquiriram um brilho estranho, doravante estaria sozinho, não tinha mais sua mãe para lhe proteger, não tinha mais a quem amar, ninguém o tolerava, somente sua querida mamãe o suportava, apenas ela se preocupou com ele em toda sua vida medíocre.

Desde que saíra de casa, uma idéia o acompanhava, que agora se agigantava em sua mente, daria um enterro digno para sua mãe, voltaria para a chácara e colocaria um termo em sua vida, pois havia perdido a pouca motivação que tinha para viver.

O dia já estava bem claro, e o sol despontava iluminando a vegetação quando ele entrou na cidade, olhava receoso para os lados, não queria ser visto, pois da última vez que lá estivera, teve que sair correndo, pois tudo de mal que acontecia, era atribuído a ele, ou pela sua presença, até mesmo a chuva que era escassa, diziam que quando ele ia à cidade, podia-se esperar uma grande estiagem, que durava meses. Respirou aliviado, não encontrou ninguém em seu caminho, estacionou sua velha carroça em frente à funerária, sempre olhando para os lados com receio, bateu com força na porta do estabelecimento e aguardou. Alguns minutos depois um homenzinho, de barbas brancas e com cara fúnebre apareceu no vão da porta, quando percebeu de quem se tratava, tentou fechar, mas foi contido pelo enorme pé de Espirilo. O Agente funerário não teve como resistir e perguntou com voz sumida:

---O que deseja aqui?

Espirilo com os olhos rasos dágua, respondeu com voz entrecortada por soluços:

--Minha mãezinha faleceu, eu trouxe o corpo para ser enterrado com dignidade.

O agente apavorado e com o rosto lívido, balbuciou:

---Voce a matou seu verme.

--Não senhor, eu fui cobri-la pois estava muito frio, daí percebi que não respirava.

--Voce é um demônio, assassinou sua própria mãe.

Duas mulheres apareceram colocando suas cabeças pela porta entreaberta, e ao verem o monstro, começaram a gritar. Janelas se abriram, e como num passe de mágica, as pessoas surgiram de todos os lados, armadas de paus, pedras e toda espécie de ferramentas e gritavam em uníssono: ASSASSINO.

Em poucos minutos Espirilo se viu cercado por uma multidão ululante e enfurecida, brandindo suas armas, o círculo ia aumentando, pedras voavam em sua direção, uma pedra acertou em cheio sua cabeça pelada, o monstro já sentia os efeitos do furor dos munícipes, o sangue espesso escorria deixando sua carótida mais horripilante do que nunca, e alí no meio da multidão enlouquecida, com o sangue embebendo seus trajes, o monstro chorou, não tanto pelas dores causadas pelos objetos que o alvejava, mas sim por indignação e pela perda da única pessoa que o amara, e que jamais o discriminara. Paus e pedras, continuavam voando em sua direção como lanças flamejantes, suas pernas já não estavam suportando seu corpanzil, estava preste a cair, tinha consciência que se desabasse, seria seu fim, mesmo assim, em nenhum momento esboçou reação, pois em seu pensamento acreditava que seria melhor morrer. Cambaleando e urrando, deu um passo em direção á carroça, lançou o que seria para ele um último olhar para o corpo de sua mãe que jazia esquecido no fundo do veículo. Tentava se manter em pé com grande esforço, a cada movimento seu, a multidão recuava, depois retornava brandindo suas armas. O monstro caiu de joelhos, o círculo se fechou em torno dele, e levantando os braços para o céu, gritou com toda sua força:

-- Não matei minha mãe, eu a amava.

De repente, algo estranho aconteceu: Um forte clarão desceu do céu iluminando aquela cena trágica, seguida de ruídos sibilantes, tal qual um enxame de abelhas, a multidão, antes furiosa, calada olhava para cima com olhos esbugalhados, sem saber exatamente o que sucedia, mas todos puderam ver um objeto voador de forma oval flutuando sobre suas cabeças.

A multidão silenciosa e paralisada, percebeu que algo anormal estava acontecendo e não era coisa deste mundo. O objeto silenciou e todos puderam ver uma espécie de porta se abrir, e logo em seguida um potente facho de luz esverdeada, deu outro colorido naquelas faces esfogueadas. O clarão verde se posicionou exatamente sobre o corpanzil de Espirilo, que também se encontrava estarrecido, e como num passe de mágica a luz se apagou e a nave desapareceu no espaço, levando a bordo, um passageiro a mais.

Passado os momentos de terror e agora mais calmo, Espirilo se encontrava à frente de várias pessoas, entre homens e mulheres, olhava para seus rostos com incredulidade, estava sentado confortavelmente numa poltrona giratória, e trajava apenas uma espécie de sunga cor de pele, sentia-se intrigado e sem compreender exatamente o que estava ocorrendo, a expressão dos semblantes de seus anfitriões parecia amável, a cada segundo que passava, mais estranho ele achava tudo aquilo, as pessoas ao seu redor eram seres perfeitos, em toda sua vida, nada vira igual e olhavam para ele com simpatia e amabilidade, seus olhos eram brilhantes e expressivos, dentes perfeitos, seios de médios para grandes, pernas bem torneadas, ele percebeu tudo isto porque seus trajes eram sumários, deixando à mostra corpos esculturais.

Os pensamentos povoavam sua mente e a todo instante se perguntava onde estaria. Seria o paraíso? Porque me olham com admiração? Porque não fogem, como normalmente todos fazem? Porque eles não tentam me agredir?

Não teve tempo para continuar em suas conjecturas, pois uma jovem aproximou-se dele e colocando as mãos em seus ombros, falou com voz jovial e amável:

---Não se assuste, o senhor já vem sendo observado por nosso povo há algum tempo, e tomamos a liberdade de arrebata-lo, porque temos uma proposta para lhe fazer, se aceitar, viverá conosco por toda vida, se recusar, levaremos o senhor de volta imediatamente.

Espirilo estava extasiado, balançava a cabeçorra de um lado a outro, estava sem fala, com grande esforço conseguiu se recuperar e disse com voz estridente:

--Estou pronto para ouvir.

A moça que parecia ser a líder e a única que falara até então, fez um sinal e uma enorme porta se abriu, segurou a mão do monstro que a acompanhou sem titubear, chegaram numa ante-sala e uma escada surgiu na frente deles, antes de descerem a jovem de voz suave apontou para uma imensa multidão que parecia aguarda-los com olhos ávidos, e a moça voltou a falar:

-Veja este povo, olhe bem para eles, suas faces lhes diz algo ?

Foi então que o monstro percebeu a diferença, aliás, não havia diferença, todas as pessoas eram exatamente iguais nos mínimos detalhes, inclusive os homens.

A moça voltou seu rosto para espirilo e falou com voz esperançosa:

--Somos todos iguais e decidimos mudar esta situação, nós o escolhemos para nos ajudar neste processo, por ser uma criatura linda e diferente, se aceitar fará meu povo muito feliz, nossa única exigência é que o senhor engravide uma mulher por dia, ou quantas agüentar e eu desejo ser a primeira.

Espirilo escancarando sua bocarra respondeu quase gritando:

---Eu aceito.

Como diz o velho ditado : Quem ama o feio, bonito se lhe apresenta.

daniel de castro
Enviado por daniel de castro em 02/06/2007
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