O ritual das calcinhas
 
No prédio, todo mundo comentava. Empregadas, patroas, porteiro. Quase sempre à mesma hora, ele na área de serviço do apartamento. Dos outros, da mesma ala do edifício, era possível contemplar o espetáculo de dedicação e veneração que se passava na unidade do segundo andar.
 
Desde que fechara o consultório e se aposentara de vez, o Dr. Alberto, dentista renomado do bairro, dedicava-se a uma tarefa diária como quem exerce o ritual de um sacerdócio. Mesmo aos domingos, feriados ou dias santos.
 
Os comentários deixaram os domínios do prédio e pela propagação de boca em boca alastravam-se pelas ruas como fogo em campo seco. Os mais curiosos convidavam-se para apreciar o ritual. Moradores mais complacentes atendiam os desejos e ainda brindavam o convidado com um cafezinho e alguns dedos de prosa e fofocas em geral.
 
No tanque de lavar, primeiro ele cheirara em êxtase as calcinhas da esposa. Depois, uma a uma, umedecia sob a torneira, cheirava novamente, passava sabonete com carinho. Enxaguava delicadamente, cheirava, voltava a ensaboar. Repetia o enxague várias vezes. A cada uma, cheirava o fundilho da peça, fechando os olhos e aspirando profundamente.
 
Duas, três, até quatro calcinhas por dia. Gastava na operação dois ou três quartos de hora. Depois, pendurava todas no varal preso ao teto. Cheirava-as novamente e recolhia-se satisfeito ao interior do apartamento.
 
Dona Gertrudes, abandonando o recato habitual, um dia não se conteve e confessou às convidadas que presenciar a cena dava-lhe enorme tesão e saudade imensa do falecido marido. Acrescentou que se aparecesse homem que a quisesse, não pensaria duas vezes e largaria a prática da autossatisfação nas madrugadas solitárias. Belinha, solteirona e virgem encruada, disse que faria o mesmo sem pestanejar.
 
Na manhã mais quente da temporada de praia daquele ano, o Dr. Alberto e senhora refrescavam-se felizes como crianças nas ondas do mar de Caiobá. Um buraco traiçoeiro fez desequilibrar a pobre mulher que, assustada ao perder o pé na água rasa, foi acometida por um inclemente e fatal mal súbito. Morreu nos braços do incrédulo marido, que desesperadamente gritava para ela parar com a brincadeira, até que um prestativo guarda-vidas acudiu, tomou-a dele e a deitou na areia cálida, apesar de levemente úmida. Sinto muito, meu senhor, ela está morta, ele lamentou informar, após tomar o pulso e procurar sentir a respiração e o coração da vítima.
 
O dentista aposentado foi tomado por intensa prostração. Durante semanas, não foi visto em lugar nenhum. Imaginavam que estivesse viajando, procurando amenizar a dor da separação violenta da companheira de cinco décadas.
 
Dona Gertrudes, habituada ao exercício da bisbilhotice, não deixava de observar diariamente a área de serviço do apartamento do segundo andar. Fazia isso mecanicamente, pois tinha certeza que o ritual das calcinhas, com a dona falecida, jamais iria se repetir. Acumulava então dois motivos para ter saudade. A do marido que partira cedo para o outro lado, e, agora, do ato do homem que cheirava as calcinhas da mulher e que, sem saber, provocava-lhe incontrolável comichão nas partes.
 
Mas o mundo é cheio de surpresas. Eis que o Dr. Alberto ressurge no mesmo ritual. Claro que dona Gertrudes não conteve um sorriso de satisfação, ao vê-lo cheirar e lavar novamente as calcinhas.
 
Todo dia, na mesma hora, lá estava o homem. Cheirava, lavava, dependurava, cheirava outra vez cada peça e se recolhia.
 
A repetição do ritual diário, entretanto, foi se intensificando e afetando o comportamento do viúvo, mesmo fora dos limites do apartamento. Várias vezes ele foi surpreendido na rua, na feira, no supermercado e até na igreja, sacando uma calcinha do bolso do paletó e cheirando-a profundamente como se aspirasse o melhor e mais raro perfume do mundo. O mal o lançou de vez no universo da loucura. Já era visto andando sempre com uma calcinha na mão e levando-a constantemente ao nariz.
 
Constatada a suspeita de demência senil ou de amor, ninguém sabia ao certo, trataram os amigos de alertar seu filho único, morador de cidade distante.
 
O homem chegou de surpresa em visita ao pai. Contam que demorou a acreditar no que viu ao introduzir-se no apartamento. Cordinhas de varal esticadas de parede a parede nas salas de jantar e social. Todas repletas de calcinhas, cuidadosamente presas com grampos de plástico coloridos. Cores e modelos variados. Certamente nem todas pertenceram à sua mãe e foram adquiridas pelo pai à medida que a demência ganhava força.
 
O porteiro conta que, penalizado, viu o Dr. Alberto deixando o prédio lentamente com o antebraço esquerdo enganchado no braço direito do filho. E que este, com a mão canhota, puxava mala de volume suficiente para comportar mudas de roupas de quem saia para uma longa viagem. A mão direita do ancião, disse ele, o tempo todo estava sob o nariz e, nela, embolada, via-se uma calcinha de um azul bem próximo da cor do céu naquela hora.


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N. do A. – Na ilustração, close de um detalhe da obra Noite Estrelada de Vincent Van Gogh (Holanda, 1853 - França, 1890).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 04/02/2015
Reeditado em 28/06/2021
Código do texto: T5125555
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