Noctívaga

A agulha tremelicou um pouquinho sobre a plataforma lustrosa do long play até que o som rouco, depois do chiado, emanou dos alto falantes: “Good Morning Heartache”. Era isso que Daniela precisava para entrar no mood. Não demorou nada para que Seu Guimarães esmurrasse a parede: “abaixa essa merda, vagabunda!”.

“Cortiço é assim mesmo”. – Disse Dna. Ofélia, a esposa.

Sem se importar, Daniela senta-se no seu bordoir e começa a maquiar-se.

Sob o balcão vermelho e desbotado, um anão passava um pano com álcool, quando gritou: “acende o luminoso!” Em segundos... O som da eletricidade: bzzz... Srs e Sras: o néon roxo começa a piscar na sua vigésima noite, do sexto mês, do décimo ano! E nele, as gloriosas palavras: “come in to the cool”. As letras “o” de “come” e “t” de “the” já não acendem mais, mas pouco importa! Não é difícil imaginar que lá na Augusta, o nome do jazz bar, com simpáticos coqueirinhos na porta (para relembrar nossa latinidade), fora adaptado para o português de uma forma bem, digamos, intuitiva, mais apropriada e chula.

O pianista Eduardo de Oliveira, ou melhor, Duke, como gostava de ser chamado, pois afirmava que isso lhe emprestava um certo ar yankee, estava em seu camarote mofado, sentado em sua poltrona toda rasgada de couro vinho em capitonê, com aquela cara de Adrien Brody desenxabido. Ajeitou a gravata borboleta, cuspiu nas mãos e alisou o cabelo, depois riu para o espelho, arreganhando aqueles dentes mais parecidos com grãos de feijões, colocou um chapéu panamá, e disse com a voz fanhosa: “eu poderia... Tomar umas pílulas verdes...”

As sirenes das fábricas, símbolos de nossa virilidade econômica; os sinos das igrejas que, de tão obscuras nessas horas cinzas e irrespiráveis mais nos levam a pensar no demônio do que em Deus; os berros dos moralistas daqueles programas policiais que, se não fosse a intrépida criminalidade vigente em nossa polis, estariam passando fome e quiçá, roubando também! As vozes messiânicas dos pastores televisivos a convocar suas ovelhas; as vinhetas das instrutivas novelas anunciando a próxima traição; os tétricos comentaristas de futebol discutindo com o mesmo tom grave e solene que Anthony Eden discutia a guerra com Churchill. “Mandamos homens para a zona de ataque e a defesa fica descoberta?”. Tudo isso, em uníssono, unido ao buzinar dos carros, ao ruído dos aviões, conclama, assim como o solitário muezim do alto de um minarete no deserto, os pobres trabalhadores a irem para casa descansar o sono dos justos ao mesmo tempo em que conclama os ímpios... A viver!

Foi no exato momento que um cachorro pulguento depositou na calçada um montinho de bosta e coçou a orelha esquerda que Marilyn levantou o braço da vitrola pousando-o sob o suporte, desligando-a; retocou o batom, escondeu a navalha na meia e abaixou o decote. Hesitou um pouco a atravessar a movimentada Rua da Mooca, onde, todo dia, tomava um táxi e seguia para o mesmo destino. A menina rica que tencionava pós graduar-se em filosofia e acabou se perdendo nas questões morais... Literalmente, jamais se acostumara com o ritmo frenético e desorganizado das ruas de São Paulo, essa cidade que, não importa qual seja o dia da semana, sempre terá cara de segunda-feira e voz de trompete com surdina; que, para ela, traz um exemplo concreto do que é uma sociedade vivendo a vanguarda putrefágica.

Apesar de ter crescido no Jardins, sentia-se maravilhada com esse lugar exótico chamado Mooca. Essa pequena província de língua italianada que sofre sérios problema com os plural, onde a proporção de pizzarias por metro quadrado é a maior do mundo. E tem mais: depois de ouvir o filho de Dna. Canô dizer que Rita Lee era a mais perfeita tradução de São Paulo, Marilyn passou a delicadamente chamar esse glorioso bairro de... Little Bronx. A vidinha dela era mais tragável quando assim pensava. Perdoemos.

Trajando seu casaco de pele sintética já um tanto ruço e segurando um guarda-chuva que tinha a face de Madonna estampada, caminhava se equilibrando nas altas plataformas enquanto pisava em profundas poças no meio de todo esse férvido, hostil e bulímico caos. Parou num bar ensebado, onde, a primeiro momento, por incrível que pareça, não foi notada. Lá estava, com olhos atentos e maravilhados voltados para aquele monitor sagrado, parte de nossa exímia classe laboral, semi-analfabeta, os nossos adoráveis cockneys. Pobres, porém limpinhos. Exalando o sabonete barato e o desodorante 90% etílico. O único que finalmente a notou foi um cheirosão sentado lá perto do caixa. A olhava como uma criança olha para o doce desejado. O brilho de seus olhos combinava perfeitamente com a aliança que ostentava na mão esquerda. Esbanjava aos quatro ventos uma imitação de Polo cuja validade da fixação expira a cada cinco fungadas da sua amada e frutífera esposa que o espera ansiosamente lá no reduto dos bravos, conhecido como... Guaianazes. Marilyn, sempre indiferente (só tinha olhos para os novos ricos do Tatuapé), comia uma coxinha mortífera, regada com aquele líquido infernal, quase incolor, que convencionaram chamar de pimenta, quando então alguém que passava na frente daquele estabelecimento chamou-lhe muito a atenção. “Não é a primeira vez que vejo andando por aí esse homem todo de preto, com a camisa abotoada até o colarinho. Parece um padre”. – Pensou enquanto dava a última dentada em sua pequena refeição... Proporcional ao que podia pagar, afinal tinha que economizar para, na volta da noitada, comprar o churro de roda que vende lá no Brás. Logo tomou o táxi e seguiu seu caminho.

Naquela noite chuvosa, enquanto perpassava lentamente pela alça de saída da 23 de Maio e o taxista driblava os moto-boys, o vai e vem do pára-brisa parecia hipnotiza-la. Enxergava através da garoa intensa e sentia-se como se estivesse com os olhos rasos d’água, coisa que não acontecia há muito tempo. Vinham-lhe a mente, flashes de sua adolescência no Colégio Sacre Coeur, com suas rígidas mestras, suas colegas (mais interessadas em aulas de boas maneiras e puericultura do que nas geografias e matemáticas lá ensinadas, diga-se, pois precisavam se preparar para seus débuts na seleta sociedade paulistana). “Tão hipócritas, essas menininhas...” – Pensava enquanto tais flashes de memória confundiam-se com os intermitentes e intensos lampejares das antenas, com o colorido dos semáforos, com as lanternas e faróis automotivos, que agora cambaleavam pelas duas pistas da mais paulista de todas as avenidas. Nisso, um mendigo trajando uma camisa do Corinthians, com as pernas apresentando feridas purulentas, bate na janela do táxi estendendo a mão, desviando-a de seus pensamentos. “Vai a merda!” – Ela responde extremamente arisca.

Já no club, as primeiras horas são marcadas pelo tédio, pelo torpor. Silêncio. Horas mortas. Existências fragmentadas. Almas mortas, cada uma delas, possuindo três, quatro, cinco, vidas... Igualmente mortas, num lugar morto. Silêncio. Até que a noite densa abre seus véus e então a fauna urbana com suas mais raras estirpes ressurge! Ao piano de bordas carcomidas, teclas amareladas: Duke com toda sua magreza, enfadado, tendo um cigarro amarrotado pendurado na boca, dedilhava “Sophisticated Lady” pretendendo-se Ellington. Se havia algo mais fake do que sua sonoridade naquele club, que não chegava nem perto do Cotton, claro, embora era assim que ele o encarava, era o whisky que se pretendia Grant’s suando deitado sobre o piano, gelando de levinho, vez ou outra, os seios de Marilyn que lá se derramava enquanto soltava beijinhos com sua boquinha acerejada pretendendo-se Monroe... que, na verdade, nunca foi Monroe, mas, sim, Norma Jean... É claro que não fazia isso por estar envolvida com a música, mas só para exibir as magras ancas que, mesmo estando longe de ser preferência nacional, tanto agradava aqueles cavalheiros de olhos afogueados, gostos duvidosos e bolsos furados. Todos eles, oriundos de quatrocentões, embalados nas brumas golfadas de suas próprias bocas que exalavam o cheiro das ruas de Assumpción (origem de seus cigarros).

Acabada a dança, Marilyn sentou-se, ajeitou os seios, acendeu um cigarro, e, antes que algum daqueles homens avançasse, desferiu aquele olhar blasé para cada um deles. Mesmo assim, um dentre eles ousou sentar-se a seu lado, e, para sua surpresa... Era o homem vestido de preto que vira várias vezes vagando por aí, inclusive no começo daquela noite. Confusa, meneando a cabeça, ela pergunta: “Por que? Por que me segue?”.

“Porque é assim que deve ser. É o destino”. – Ela soergue os beiços, meneia a cabeça novamente e franze a testa. Não está entendendo nada, nem a si mesma... Talvez por estar já bem alterada.

“E você? Por quê?” – Ele diz com tom intimidador.

“Por quê o quê? Por que sou puta?” – O silencio impera por alguns segundos. Ela põe a mão na boca, o encara com desdém, e prossegue gesticulando abruptamente: “Eu sou puta por puro diletantismo. Sou hedonista no grau mais elevado do termo. Sou viciada na noite, esta que guia nossas cabeças, como tochas bruxuleantes, pelas sendas de seu labirinto; nos indica cada esquina, onde as esperanças de prazer são renovadas. Porém, jamais nos indica a saída”. - Conclui dando uma tragada no cigarro ao mesmo tempo em que um garçom lhe oferece um cuba libre.

“Puxa. Você tem algo... de poético no falar”.

“Todos nós somos um pouco poeta, um pouco puta... E você, o que faz?”

“Sou escritor”. - Diz ele gaguejando um pouco.

“Veio aqui para buscar inspiração na minha miséria? Se você espera de mim um daqueles dramas já gastos, esquece.”

“Não. Tenho propósitos mais nobres, na verdade”. – Diz ele rindo timidamente.

“Já sei. Você quer me comer!” – Diz ela sem rodeios. Ambos riem e, em seguida, novamente o silêncio impera. Cipós de fumaça descem de suas narinas. Volta seu olhar para os homens do balcão. Todos agora parecem zumbis olhando em sua direção. Ela pensa: “São como personagens de uma Avalon nefária e, ainda sim, instigante. É melhor que seja assim. É melhor que estas figuras caricatas da noite apresentem-se ante mim como um quadro impressionista, com um toque noir...”

“O que você chama de noir em São Paulo, eu costumo chamar de insalubre, Daniela. Mas há poesia até no lodo. Não é?” – O homem vestido de preto sussurra em seu ouvido com uma voz rouca e profunda, causando-lhe arrepios e temor.

“Puta que pariu, meu! Não fala assim comigo! O que você tá falando? Leu meu pensamento, é? Por que você me chamou de Daniela?”. – Disse Marilyn com a mão trêmula no peito enquanto o copo de cuba libre espatifava no chão colorido fazendo assim um pequeno show pirotécnico.

“Desculpe, srta... Marilyn. Não foi minha intenção”.

“Quem te disse que meu nome é Daniela, caralho? Será que essa porra de bar não é mais seguro?” – Disse enquanto toda atabalhoada pegava o casaco de pele, a bolsa, e dirigia-se desesperada a saída. Ninguém a conteve, nem mesmo o anão, que durante a madrugada... Servia como segurança.

Na manhã seguinte, enquanto o lugar ainda recendia a cigarro barato, sexo, bebida e então alguns raios de sol envoltos numa nuvem de pó iluminavam as mesas vazias, um policial batendo na porta, acordou Eduardo, Duke... O dono do jazz bar, pedindo para que este o acompanhasse até o IML a fim de reconhecer um corpo de uma garota que havia sido encontrada morta numa esquina após uma luta de navalha por ter entrado, sem querer, num ponto de outro cafetão na região da Vila Madalena. Duke, desesperado, acordou seu namorado... O anão. E seguiram para lá.

Naquela noite, o néon roxo não acendeu. Duke, sem brilhantina no cabelo, atacou “St. James Infirmary Blues” ao piano com espantosa verdade enquanto todas aquelas figuras encontravam em algum lugar ermo e árido de suas almas algum motivo para chorar.

Dia seguinte. Dez horas da manhã...

Assentado na borda de um dos mais altos mausoléus daquela necrópole da Consolação, ele, o homem vestido de preto, com as pernas balançando no ar, assiste o sepultamento de Daniela Carvalho Azevedo quando então alguém mansamente assenta-se a seu lado e, ostentando um sorriso angelical, pergunta:

“Por quê?”

Otto M
Enviado por Otto M em 21/06/2007
Reeditado em 29/04/2010
Código do texto: T536028
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