O conto do sem-coração

Três meses já se passaram desde que o infortúnio implacável furtara ao triste homem todo o sentido da vida: depois de uma doença súbita e pungente, poucos instantes antes do matrimônio, foi-lhe a noiva ter com a Morte. Este golpe devastou-o, levou-o além do ponto de rebentamento completo, aquele instante em que todas as estruturas chegam ao limite das forças e além, entrando em colapso irremediável.

A dor era tão profunda que o homem se viu perdido, vagando como uma sombra catatônica pelas ruas no smoking judiado de três meses. Comia quando alguma alma caridosa lhe dava de comer, bebia quando alguém mais atento se lembrava de que ao homem não basta apenas comer o pão, mas que as funções do corpo também necessitam de fluidos, dormia quando se lhe apagavam as vistas num tipo de eclipse da exaustão. Nas ruas, toda a cidade, repleta de uma piedade passiva, já o conhecia:

- Lá se vai o pobre diabo... Está acabado... - diziam aos cochichos – pobre diabo...

Nas ruas por onde vagava o Homem-Sombra tudo se calava de um silêncio constrangido; parecia que toda aquela dor incomodava aos presentes, os quais, de fato, sentiam pena do homem magro e pálido, mas que também sentiam, de forma evidente, certo alívio por não serem eles os coitados, vítimas do infortúnio. Quando o homem, com seus passos de sonâmbulo e olhar disperso seguia adiante em seu caminhar desnorteado, era como se as nuvens negras se afastassem e toda a gente, em questão de segundos, sacolejava dos ombros uma tristeza acanhada, para depois retornar às conversas e aos afazeres mundanos.

Neste dia, quando já se aproximava a noite, o homem perambulou até uma praça poeirenta, de poucas árvores, poucos bancos e deserta. Não se sabe se a praça estava deserta pela presença do Homem-Sombra, do Pobre-Diabo, que espantara as pessoas, acabrunhadas pela sua dor ou se a praça em questão, pobre e feia, era simplesmente um pedaço abandonado de terra com o qual ninguém se importava. De qualquer forma, para ele, tanto faz: havia três meses que já não mais se apercebia das pessoas em redor. Estava metido num limbo estranho onde cada segundo, no seu cérebro febril, apenas fazia lembrar das perdas, do vazio.

Quem o visse sentar-se no banco não deixaria de se lembrar, imediatamente, de uma dessas decorações do Dia das Bruxas: um esqueleto de smoking preto, braços caídos, olhar triste e faces pálidas, olhando desinteressado para o nada enquanto a noite chegava indiferente a tudo, tal e qual uma vaga que chega com as marés.

Foi sem que o homem percebesse que alguém sentou-se a seu lado. Se lhe funcionassem os sentidos teria visto a velha macérrima, de lenço na cabeça, grandes brincos em argola e um protuberante queixo, exacerbado pela boca sem dentes, observando-o sem o mínimo pudor, bem dentro da cara.

A velha tocou-o no ombro com a mão ossuda e, pela primeira vez em três meses, o homem se apercebeu da presença de outro ser humano. Piscou como se tivesse acabado de acordar de um sono prolongado e olhou lentamente para a velha que ainda o observava muito de perto.

- Não deixei de notar tanta dor, meu filho, ao longe avistei vossa cara deformada de agonia! - Disse a velha, que sorriu com a boca murcha e escura.

Quando se sofre muito e de forma muito intensa, alguns comparam o sentimento ao ato de afogar-se: pode se passar um segundo em que, botando a cabeça para fora da água, vem o alívio momentâneo do oxigênio, para, logo depois, retornar à agonia da sufocação. O homem viu a velha e, por um segundo, tomando ciência de sua estranha figura, se esqueceu de que sofria, mas, no instante seguinte, lembrou-se e sentiu o peito apertado e frio, com um choro bolorento preso à garganta.

A velha espalmou a mão direita sobre o peito do homem:

– Há tanto aqui que já não lhe cabe mais no peito, percebe-se logo. Vê? Este coração já mal se sustenta.

O homem não respondeu.

Ainda com a mão espalmada a velha prosseguiu:

- É por isso que venho lhe oferecer um presente… - E, num gesto brusco, que desafia a lógica e a nossa concepção racional, cravou com destreza as cinco pontas dos dedos ao peito do homem, que emitiu um grito de agonia enquanto a velha, no mesmo gesto de quem puxa um animal arredio pelo rabo, puxou-lhe o coração para fora.

É interessante notar que agora, assustado, com dores se lhe irradiando do peito para o restante do corpo e a respiração sôfrega, os instintos selvagens de preservação do homem fizeram-no despertar do torpor por completo, mas o choque o paralisara, contraditoriamente.

- Aqui o tem! - disse a velha, mostrando na mão o músculo palpitante e vermelho que o homem, ainda há menos de um minuto, trazia dentro do peito.

- Meu coração! - sussurrou o homem, com a mão ao peito.

Abriu depressa a camisa em busca das feridas, cinco buracos profundos ou uma grande abertura nas costelas, por onde vazasse o sangue em profusão, mas não havia nada, apenas o peito magro e branco, ainda dolorido.

- Eis aqui… cuida-o bem. - Disse a velha, tomando as mãos do homem e depositando sobre elas o coração pulsante. O homem, fazendo com as palmas duas conchas, como quem protege um pássaro delicado e frágil, fechou entre elas o próprio coração, sem perceber que a velha sumira.

Ergueu-se e olhou ao redor: já era noite, mas ainda no horizonte se percebia o rastro vermelho da tarde que morrera. Respirou fundo e sentiu o ar fresco que a escuridão crescente trouxe enquanto o coração, guardado nas pequenas conchas das mãos, tremia em rápidas convulsões. Apurou os ouvidos e escutou, ao longe, os risos das crianças e as conversas altas e animadas dos homens. Seu próprio sofrimento, a noiva morta e todas as dores perderam o sentido como se uma epifania se lhe tivesse descortinado diante dos olhos a incontestável certeza de que todo sofrimento é vão.

Com mais uma convulsão, esta mais espasmódica que as anteriores, o coração fora do peito dava sinais de que morria e, por fim, calou-se.

O homem, agora sem coração, deu um suspiro seguido de um sorriso que podemos interpretar como enfadonho e pôs-se a caminhar, deixando para trás, no pó, aquele pedaço oco de si mesmo:

- Agora tudo vai ficar bem…

Henrique de Castro Silva Junior
Enviado por Henrique de Castro Silva Junior em 17/01/2016
Código do texto: T5514427
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