Um Sonho Vívido

Numa manhã triste, Isac viu a chuva através da janela do antigo quarto. Um gato sentado sobre a cômoda o espiava. A última vez que esteve ali foi cerca de trinta anos atrás, na noite que foi embora e deixou a esposa e a filha recém-nascida. Como todo caixeiro viajante, obrigava-se a se ausentar, porém não retornou. Depois de tanto tempo, nem lembrava qual a desculpa que justificou sua partida. Agora, desejava saber como estavam, talvez remediar a sua ausência.

De uns tempos para cá, seus pesadelos frequentes foram substituídos por sonhos, onde se via junto a uma moça que cantarolava docemente. Teve uma forte intuição que seria a filha, já adulta, sozinha, de frente para uma janela iluminada. De certo, o inconsciente havia adotado essa nova estratégia para ele lidar com a culpa. Esse sonho vívido e repetido, recentemente lhe causava mais apreensão, pois culminava com um homem a entrar no quarto da moça e a expressar espanto. O sonho terminava com a visão daquele mesmo gato, do lado de fora da janela, a balbuciar algo inaudível. Ele pergunta ao gato:

“Gato, quantas vezes eu já te contei esse sonho?”

“Dezenove.”

“Agora são vinte. Não sei porque não consigo te ouvir, no sonho.”

“Isso é o de menos. O que mais percebeu?”

“Tenho forte certeza que era a minha filha. O homem, talvez o marido que se assustou ao encontrar um outro homem inesperado dentro de casa.”

“Certamente.”

“E a canção… Acho que era Frère Jacques.”

“É uma bela canção.”

“Gato, eu preciso encontrar minha filha.”

“Calma, tudo a seu tempo.”

Os dias passavam. Pela aparência da casa, deduziu que estava abandonada. Ninguém aparecia. Talvez a tivessem vendido e estivesse prestes a ser demolida, com a construção de um edifício no local. E Rosa, sua esposa, por onde andaria? Passou a rondar pelas ruas, a pedir informações. Não obteve respostas, a maioria estava tão ocupada que nem lhe dava ouvidos. Um ou outro, quando o atendiam, pareciam desnorteados. O progresso havia realmente chegado naquele vilarejo, ninguém mais a contemplar o movimento das ruas, os garotos a conduzir aros com arames, meninas a brincar de amarelinha, jovens a frequentar as docerias e lanchonetes. Isac apenas testemunhava a correria desenfreada de veículos e pessoas entretidas com pequenas máquinas, em suas mãos. O dia acabava sempre do mesmo jeito. Ele voltava à casa e se deitava em sua cama, com o gato a lhe desejar bons sonhos.

Certo tempo depois, acordou a sentir algo diferente. Chegou ao banheiro e quase derrubou o copo com a dentadura. Tinha dentes novamente. Como não havia mais espelhos na casa, teve que procurar seu reflexo no vidro da janela. Sim, aparentava mais novo.

“Gato, vem aqui.”

“Olá, meu amigo.”

“Percebeu algo diferente?”

“Ah, agora temos dentes em comum, hein?”

“Não vou reclamar. Mas o que é isso?”

“As coisas sempre mudam, velho.”

A cada dia, Isac sentia-se mais novo. Os sonhos, cada vez mais nítidos, com canções e sensações que o impactavam. Seguia-se novo despertar, sempre com algo mais novo. Seu corpo mais forte, a despertar desejos esmaecidos. Por outro lado, sentia-se solitário. Tinha os olhos a percorrer as belezas joviais, a se empolgar com uma risada alheia, o burburinho dos jovens, dos adolescentes, as festas em que facilmente ingressava de penetra. O dia a terminar, a cama vazia, toda para ele. Tinha saudades da esposa, de seus carinhos e carícias quando se conheceram, ainda muito jovens, antes mesmo do casamento. Dormia e sonhava com a filha que um dia haveria de ter, uma promessa de família que haveria de encontrar. Desta vez, percebeu algo mais. O quarto da moça com decorações infantis. Era um quarto de criança. Que bom, alguém para brincar com ele. Acordou.

“Gatinho? Cadê o meu gato?”

“Olá, menino! Estou aqui!”

“Vamos brincar! Eu vi uma moça bonita no sonho. Vai nascer o meu amiguinho.”

“Que legal, Isac.”

E saíram a correr pelos corredores. O gato a se esconder e Isac a se perder por aquela casa imensa. Brincaram no jardim, lá encontrou um balanço. Depois, desceu de barriga pelos degraus da escada, subiu em mesas, bisbilhotou armários e gavetas. Para sua surpresa, achou brinquedos escondidos. Nesse mesmo armário, encontrou fotos antigas: um homem mais velho, uma mulher e um bebê. Devia ser a família que morava naquela casa: Isac, Rosa e Maria. “Era uma menina!” gritou para o gato. Terminado mais um dia, a casa ficou revirada. O menino teve dificuldade em subir na cama, estava muito alta. O gato saltou sobre o colchão.

“Gato, conta uma história.”

“Tá certo. Fecha os olhinhos.”

“Tá bom, gatinho.”

“Era uma vez, um papai que saiu de casa. Ele não voltou porque papai do céu o chamou. A filhinha e a mamãe ficaram muito tristes, mas ele vai voltar logo.”

“Eu quero que o papai volte.”

“Então, fecha os olhinhos. Vamos chamar o papai com uma canção.”

“Tá.”

“Frère Jacques, Frère Jacques.

Dormez-vous? Dormez-vous?

Sonnez les matines, sonnez les matines.

Ding ding dong, ding ding dong.”

Isac tentou acompanhar a música até certo ponto, o sono havia chegado. Ainda assim, de olhos entreabertos, viu os olhos do gato ficarem estáticos, como de um bicho de pelúcia na estante. A penumbra da noite se dissipou calmamente, o quarto era aquele do sonho, a figura da moça surgiu em sua frente, a balançar o berço e a cantar suavemente. O homem não estava mais assustado. Era o pai que se aproximava a sorrir. Enfim, acordará novamente em família.

Antonio M A Menezes
Enviado por Antonio M A Menezes em 11/06/2016
Reeditado em 22/06/2016
Código do texto: T5663917
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