Matrioska (uma história de bonecas)

"Matrioska – Brinquedo tradicional russo constituído por uma série de

bonecas que se encaixam sucessivamente umas dentro das outras"

Fim de tarde mas não fim de pressas, tarde de final de mundo. Calor insuportável. As sinusóides dos passeios da avenida atlântica são percorridas e calcadas pelos mais variados transeuntes. Os guarda-sol da esplanada estão agora estratégicamente colocados, protegem os muitos turistas que aproveitam para sentar e descansar, beber um chopp “brahma” ou “skol”, comer algo e desfrutar de ambas as paisagens, a natural e a humana. Ali mesmo ao virar da esquina, um pouco após a tabanca de venda de sucos, na sombra, o díptero efectua vôo rasante e os seus inúmeros olhos trabalham incansáveis de forma coordenada e automática para avaliar o alvo apetecível que é resto de homem, despojado de quase tudo, roupa suja e gasta, uns quantos dias de barba por fazer. Que dorme.

Que dor! Estremunhado e surpreso, Diego (rasurado) Miguel Lopez acorda com aquela picada repentina, inesperada, inoportuna. E a vista é presenteada com uma paisagem enublada, que lhe entra assim num repente, os contornos ainda pouco nítidos deixam perceber ao longe o Filho de Deus Pedra, que, indiferente a tudo e todos (como aliás, ficará bem a qualquer divindade que se preze) abre os braços para uns e outros, lindos e feios, ricos e pobres, boa gente de trabalho, traficantes, malandragem, sacanagem, turista fino, turista grosso, turista de meia tigela. E as pernas trémulas quase se recusam a obedecer. E a cabeça lateja. E é ignorado por quem passa, que hoje é dia de só se reparar no que é invulgar ou interessante ou as duas coisas e ele não possue de momento nenhuma destas qualidades. É com algum custo que se levanta, por valer a pena, por faltar pouco, que para o número sessenta e três de rua sem nome que para aqui interesse, são só mais umas quantas travessas.

Batem uma e outra vez. Irene apressa-se a abrir. O barulho precede as faces que assomam, uma barbada e descuidada, outra, de porteiro, emitindo um sotaque engraçado, nordestino.

- Sinhá, está qui um cara, ele tá procurando quem de porquê

- Tá bom, deixa ele entrar prá qui Ezequias

O que se seguiu não foi bem como uma entrevista para emprego com todas as suas formalidades e qui pró quos em que ambas as partes se observam e estudam.

- Hola, tienes algo para mi, verdad?

- Si senorita – disse Diego de dentro de sua voz cansada. Procurou em

fundo de bolso de calção o papel amarrotado que prontamente

entregou. No papel estava escrita uma única palavra.

A senorita parecia simpática, era até bonita e interessante. Os seus prováveis quarenta e tais não tinham apagado o encanto feminino e conferiam-lhe uma sensualidade muito própria. Mas o sorriso que surgiu ao de leve no semblante ao ler ... era estranho, nada tinha de descontracção ou bonomia.

- Viene! Hombre... Sigue-me pronto. Por aqui.

Irene não era grande especialista em castelhano, mas o pouco que conhecia era suficiente para fazer-se entender e seguir. Alguns minutos decorridos e o homem de parca sorte entra. E há uma porta se fecha de imediato atrás dele, e há dois olhos plenos de espanto que observam por um segundo antes de cair a escuridão.

*

É inicio de noite no apartamento de quatro assoalhadas situado algures num subúrbio qualquer da grande metrópole. Arredores. Zona periférica! Sobre o aparador de linhas modernas, junto à extremidade da sala principal o pequeno rectângulo bombardea tudo e todos sem dó nem piedade, mil e umas imagens coloridas mostrando sequências de cenários e acções cujos intervenientes são cuidadosamente dobrados ou legendados. Na plateia o cão, a pré-adolescente, o saco, a lata de cola.

Um, outro e mais outro som. Chave girando na fechadura. Inês levanta-se rápidamente com um único impulso. Na acrobacia deixa para trás conteúdo de lata derramado e um milhão de pipocas caindo e espalhando-se, cada qual reclamando seu próprio território em toda a extensão do tapete de arraiolos.

- Está alguém em casa? - Sala vazia de pré-adolescentes. Da

audiência resta agora apenas o canídeo espantado, estúpido.

Resposta silêncio. Nem um pio.

- Essas míudas de hoje ... Onde estás Inês?

- Aqui no quarto pai. Terminando trabalho de grupo. Está quase! Por

falar nisso, tenho de ir um pouco ao emeesseene discuti-lo com a

Andreia.

- Hmmm...E a mãe? Já chegou? - Silêncio outra vez. A pequena estava

já muito atarefada ligando o computador.

O homem pai estava cansado. Aquele não tinha sido um dia muito simples e já chegava na sucessão de outros tantos dias não fáceis. Pesquisou as entranhas do frigorífico até conseguir de lá extrair a cerveja. Fresquinha. Gostosa. Sentou. Despojou-se de sapatos, desapertou botões da camisa e desfez o nó da gravata, estendeu a mão para o comando. Olhou.

- Inêeeeees – O tom de voz indicava irritação, não estava para

brincadeiras! Chega cá imediatamente!

Inês tinha aquela sensibilidade própria de filho a qual é adquirida após muito testar e arreliar os progenitores. Sabia exactamente quais eram os limites e sua avaliação neste momento indicava que passara muito para além deles. Por isso veio, calma e docemente, rabo entre as pernas para chegar e ouvir raspanete de pai irado que isso de estar a ver tevê tinha de ter regras, que já tinha dito mil e uma vezes que certos programas não eram para a sua idade.

Alheio a tudo, o pequeno rectângulo continuava a vomitar a série - história de um pobre coitado paraguaio, Diego (rasurado) Miguel Lopez, recém chegado à cidade maravilhosa e logo caído nas mãos de criminosos após efectuar um recado simples – entrega de carta com uma única palavra... misteriosa.

*

O escritor estava aborrecido. Era assim que ficava sempre que a história lhe fugia entre os dedos avançando a passos largos, emancipada, dona de seu próprio destino, para logo ali um pouco mais à frente estacar e se limitar ao mais fechado dos autismos. Como agora! Há duas horas que lutava com o pequeno laptop. Cada nova frase, cada nova ideia nascia e logo morria, vítima da censura de um rigor estético a que não pretendia se furtar.

Aprendera a conhecer-se um pouco e já lograra saber algo sobre os caminhos que a inspiração talhava em si. Sempre que ocorriam estas situações, após um tempo de luta inicial, aplicava uma solução padronizada, "standard"... sempre a mesma! Iria sair. Conviver, ver as caras, os corpos, as almas. Beber um copo talvez. Pelo sim pelo não levaria o laptop. Nunca se sabe.

Gabardine e guarda-chuva eram utensílios essenciais. Laptop ao ombro, eis que sai para percorrer os escassos quatrocentos metros que o separam do Pub mais próximo. Passo apressado que isto de andar na chuva, a maldita sempre consegue calcular uma trajectória e frustrar as mais bem organizadas protecções, molha até aos mais precavidos. Já vislumbra as luzes, o néon. Está aberto. É logo ali.

Da mesa onde estava sentado pode ver fácilmente toda a sala e seus ocupantes. Após o segundo “scotch” até os vê em dobro! Vai observando e pensando, observando e mais pensando. Que raio! Aquele texto parecia tão promissor, tão fértil... início no Rio de Janeiro, um desgraçado, um drama, mas afinal tudo não passando de série de televisão, corriqueira, daquelas que passam e não deixam lembrança... e agora?

Bem ... alguma coisa haveria de pintar, surgir! Era sempre uma questão de tempo. Enquanto cogita, pede mais um “scotch”. O bar anima-se ... uns rapazes latinos. Qual seria o país? Ah...Brasil, esse mesmo. Vozes, violão, pandeiro e outros instrumentos afins, todos juntos conspiram e acordam a noite, dão um chute bem dado, jogando a monotonia para longe. Outro “scotch” ainda. Como está boa a música! De repente porém a vista turva-se, a mesa sobe, sobe, sobe rápidamente e vem embater com força na face já adormecida. Passam duas horas.

- Hei amigo, está bem? Hmmm .... Vamos, toca a levantar e andar. Já

passa da hora.

A vista turva observa o espaço súbitamente quase vazio. Levanta-se, veste a velha gabardine, empunha o chapéu de chuva e, laptop no ombro sai cambaleante para a rua. De repente estava claro, sabia bem como fazer. Algumas (pequenas) modificações. Uma das primeiras seria alterar o nome do personagem de Diego para Miguel!

*

O areal da praia estende-se um quilómetro e meio para sul. E outros dois para norte. O homem de meia idade, Miguel Diego Lopez, paraguaio de nascença encontra-se recostado, dormitando, a face gorda e a bigodaça escondidas debaixo do chapéu de palha, desfrutando a tarde, que está amena!

Enquanto isso, Alice passeia o pé na beira-mar com o casal de crianças, correndo e fugindo das ondas, colectando pequenas conchinhas, atirando pedras para conseguir "três saltinhos" e pedir um desejo, desenhando na areia branca, brincando.

Mais tarde irão chegar até ele, acordá-lo leve, levezinho, com uma carícia e uma cócega. Chamá-lo ão de pai dorminhoco. E ele dará graças a Deus por afinal de contas tudo não ter passado de um sonho, dentro de um sonho, dentro de um sonho. Como se fosse uma Matrioska...