Juliana

Suponho que ela passou a vida inteira dando à vida o que era da vida. Digo suponho, pois a incerteza “dela” é mais extensa do que eu irei contar.

Num quartinho modesto há teias de aranha nos cantos das paredes. E há a poeira que o chão carrega. E há ela. Ela está lá, jogada, estirada na cama, os olhos vidrados no espaço vazio. Não sei dizer nem ao menos o que ela pensava, se ela pensava algo naquele instante... Mas a sua existência e o fato de que estava viva estavam claramente à mostra. Eu só me confio no movimento de encher e esvaziar dos seus pulmões. Uma respiração de leve, desinteressada, que lhe atribui um ar de coisa solta. Um outro fato que me vem e que posso supor – apenas supor – é que ela estava pensando pensamentos soltos.

O que posso fazer desta aí, senão invadir-lhe e assaltar a vida com os poderes que tenho atados às minhas mãos? Que posso fazer senão dizer que seu nome é Juliana? Que Juliana era sempre triste e recolhida? Que ela dormia num colchão mole demais e que mantinha folhas de papelão por baixo desse colchão? Que não dormia se não fosse embrulhada até a cabeça, mesmo que durante o sono se desembrulhasse? Que posso fazer senão contar que ela quebrara a cabeça por duas vezes? Que uma vez ficara girando, girando, e que acabara tonta e caindo no chão, dando com a cabeça numa pedra? E que da outra vez caíra da escada? Que posso eu fazer senão te fazer ouvir as músicas que faziam Juliana chorar, que a faziam sofrer? Tu chorarias também, por ela? Posso ainda dizer que ela nunca fora chamada de benzinho? Que nunca fora muito estimada? Que nunca tivera animal de estimação? Que não comia certas coisas, e outras comia? Que tomava apenas um banho por dia, com medo de que, por alguma razão que desconheço, deixasse de ser o que tinha conseguido ser até então, e que aos feriados não tomava nem banho? Que não trabalhava? Que se sustentava com uma pensãozinha do Estado? Que seus lábios nunca encontraram os de outra pessoa, nem suas mãos? Que beijava a parede e, de olhos abertos, a ficava admirando por longo tempo, ainda de boca colada a ela? Posso contar-te que ela nunca havia sonhado? Isso te serviria de alguma coisa? Isso serviria a mim, pelo menos? A quem serviria? A quem Juliana haveria de servir? Posso te fazer ver as cenas que ela via diariamente? Fazer-te enxergar o quarto onde ela vive e a sua cama? Sabes que o quarto dela é sem janela? Que a luz não entra? Não entra em Juliana? Que Juliana é pálida, pálida, quase inexistente? Tu já compreendes que ela existe? Isso basta? Tu já a sentes? Já a percebes entre os outros? Tu já te perguntas aonde quero chegar? O que pretendo? Eu, por acaso, direi que quero chegar a Juliana? Que quero alcançá-la? E me perguntarei como poderei, mesmo com tudo o que tenho, suporta-la? Tu ainda a suportas mesmo depois de tudo isto? Eu digo: as coisas foram se acrescentando naturalmente à Juliana e ela deu no que deu, e eu quero alcançá-la e também sofrê-la, e tê-la. Pois só pelo sofrimento é possível alcança-la. As lágrimas serão as portas para a alma dilacerada de Juliana, e o grito será o seu reflexo.

Acabo de tirá-la de dentro de mim, e ela está aqui, sua face em minha face, seu corpo em meu corpo, suas mãos em minhas mãos, seus lábios em meus lábios.

02/11/2006.

Rosiel Mendonça
Enviado por Rosiel Mendonça em 24/07/2007
Reeditado em 24/07/2007
Código do texto: T577937
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