O Cara do Sorvete

O cara do sorvete

O dia estava mais quente do que o de costume. Aliás, para um final de inverno, a temperatura estava bem acima do normal. Não que eu não goste de calor, mas aquele dia estava demais. Resolvi tomar um sorvete. Como tinha ido ao supermercado perto de casa, fui até o quiosque que fica na porta do supermercado. Desses que servem só o sorvete e são normalmente de uma rede dessas de comida fast-food. Eu nunca vou entender porque as pessoas chamam aquilo de quiosque. Um quiosque, na minha cidade natal, lá no interior, é uma coisa completamente diferente, mas, se eu chamar aquilo do que eu acho que seria a definição correta, certamente ninguém vai saber do que eu estarei falando. Deixa para lá. E o dia está quente. Sorvete. E como não poderia deixar de haver, a fila. Obviamente que eu não tinha sido o único a ter a mesma ideia. Fila implica em uma coisa para mim: Passar o tempo. Preciso distrair a minha mente, pensei. Ficar parado em filas é uma das coisas que mais detesto. Ou melhor, a segunda. A primeira é dia chuvoso. Dia desses tive que ficar numa fila, num dia chuvoso. Quase infartei.

Passatempo predileto nesses casos é observar as pessoas. Observo, claro discretamente, mas observo. Naquela fila, a do dia chuvoso, havia uma senhora, coisa de oitenta anos talvez. Cara de bondosa, cabelo todinho branco, arrumadinha e cheirava a jasmim. Eu a observei por uns bons minutos, e não conseguia decifrar o que ela teria vindo fazer ali. Foi quando, para a minha surpresa ela começa a cutucar o nariz e, de pronto, retira o conteúdo do mesmo e leva-o diretamente à boca. Quase tive outro infarto.

Estou na fila do sorvete. Com paciência (é só o que resta nesses casos) espero minha vez e, agora, observo o funcionário no quiosque. Tinha um jeito aparvalhado, meio débil mental, sei lá. Alto e magro, usava sob o boné característico uma touca dessas de proteção para os cabelos – curtos e muito pretos - o que o deixava mais ainda com um ar de imbecil. No uniforme, um crachá com seu nome e outro – fiquei pensando quem em sã consciência usa dois crachás, mas tudo bem – lia-se a palavra treinador. O mesmo estava escrito na manga da camiseta com as cores da empresa. "Treinador" pensei. Meus deuses! Treinador! Esse cara treina alguém?

A coisa toda era muito mecânica. Olá seu pedido. São três reais. Aguarde ao lado. Olá seu pedido. São sete e cinquenta. Aguarde ao lado. Olá seu pedido. São seis reais. Aguarde ao lado.

Detalhe: O “aguarde ao lado” vinha sempre acompanhado de um toque dele no braço do freguês, empurrando o dito cujo para uma posição imaginária ao lado do caixa. Se o referido não ficasse exatamente na posição que ele estava indicando, ele não prosseguia para o atendimento ao próximo e assim por diante. Que bizarro, pensei. E foi isso que me chamou a atenção. E continuei observando. E pela primeira vez, achei uma boa coisa ter muitas pessoas na minha frente.

E ele atendia as pessoas. Depois de indicar o lugar em que o freguês deveria ficar, voltava à mesma posição em frente ao caixa, retomando a rotina. Só esqueci-me de dizer. Entre uma coisa e outra ele entregava o produto que tinha sido adquirido. Só isso.

Um cliente resolveu pensar enquanto prostrava-se perante o rapaz-autômato. Ele começou a ficar impaciente. Como se alguma coisa fosse acontecer caso ele não atendesse o cara ali rapidamente. E ele começou a suar e a balbuciar algo que não entendi direito. Para nossa felicidade e alívio do rapaz-autômato, o cliente decidiu-se. E ele pôde retomar a rotina. "Treinador" pensei mais uma vez. Será mesmo que essa companhia gosta desse tipo de treinador para ensinar outros funcionários? Será mesmo que alguém consegue aprender algo tão simples de forma tão metódica? Quantos ele deve ter treinado na vida profissional dele?

As perguntas não paravam de brotar na minha cabeça e quanto mais eu tentava respondê-las mais eu queria observá-lo e tentar decifrar aquele quadro. Era muito surreal. Impossível mesmo.

A fila andou. E andou de novo. E mais uma vez. E de novo, um freguês indeciso. E – agora eu realmente tenho um infarto – o celular do rapaz-autômato toca. “Um momento” ele fala para o freguês indeciso. E assim parece ser toda vez que fico numa fila e estou com pressa. Outro dia, pela terceira vez, estava em uma fila de supermercado, um pouco menor que esse que eu havia ido. Na minha vez, vejam, acabou a fita do caixa. E a mocinha, novata, não conseguia pô-la na impressora. Um sacrifício. Quase um novo infarto. E o rapaz-autômato, atendia ao celular.

Ahn... humm...ahn...ahn?....É.... ok.....tá....ahn? Sim. Era o que ouvíamos. Uma conversa bastante esclarecedora e loquaz pensei de novo. Depois de um palavrão dito à surdina, o que teria dito o interlocutor do rapaz-autômato? Pensamentos são interessantes. Dependendo da força eles podem se materializar. Não descobri o teor da conversa, mas fiquei em choque com o que aconteceria dali alguns segundos, noventa para ser mais exato.

Ele desligou o telefone e, como o freguês estava mais indeciso do que o de costume, ele balbuciou alguma coisa entre cuspes e perdigotos que voavam da boca de lábios mais grossos e proeminentes que o normal. E eu me esqueci de dizer que ele tinha olhos azuis. Um azul estranho, quase branco, meio leitoso. Esquisito mesmo.

O freguês só acenou com a cabeça e ele então assumiu uma postura mais ereta do que usava. Dirigiu o olhar para o infinito, jogou os braços para baixo e ficou assim um bom punhado de segundos. Ia abrir a boca para reclamar da demora – acho que uma mulher atrás de mim ia fazer a mesma coisa, porque eu só ouvi sua boca fechando quando viu a cena – quando um homem empurrando uma cadeira de rodas apareceu. Mas não era uma cadeira dessas comuns. Era dessas com encosto mais alto e apoio de cabeça, suporte para soro e tiras nos apoios dos braços para prender o usuário ali. O homem com semblante sério e ar enfadado, abriu a portinhola lateral do tal quiosque e tocou no ombro do rapaz-autômato. Este saiu do transe infinito momentâneo e virou-se, dirigindo-se para a tal cadeira de rodas. Sentou-se e o homem tratou de prender os braços do rapaz, após tê-lo acomodado no assento do equipamento. Tirou da parte de trás – não tinha visto por causa do assento mais alto – uma mascara dessas de oxigênio e a colocou sobre o nariz do rapaz sentado. Fez um movimento que deduzi ser o de abrir a torneira de algum cilindro que também estaria ali, conferiu tudo de novo e fez um gesto curiosíssimo: Com o dedo indicador e o médio da mão esquerda juntos, aproximou-se da carótida do tripulante da cadeira e pressionou-a levemente. O rapaz-autômato então, perdeu imediatamente aquele ar robótico e sua cabeça caiu, pendendo para um dos lados, enquanto seu olhar se tornava mais inexpressivo e vazio. Quando o homem saiu empurrando a cadeira, ao virá-la, vi o começo de uma baba escorrendo por trás da mascara de oxigênio.

Três segundos, ou nem isso, passaram-se e outra cadeira aproximou-se. Trazia desta feita uma moça. Jovem como o rapaz-autômato, mas o olhar vazio era o mesmo. Uma mulher empurrava a cadeira e a posicionou no mesmo lugar da que havia saído. O mesmo gesto com os dedos indicador e médio. Mesma posição na carótida. A moça adquiriu um olhar menos aparvalhado, menos vazio. A mulher então a desamarrou após remover a máscara de oxigênio. A moca-autômato levantou-se e se dirigiu ao caixa do quiosque. A mulher apanhou um celular e com uma das mãos discou um número enquanto que, com a outra, empurrava a cadeira de rodas e se retirava dali. A mocinha atendeu. Ahn... humm...ahn...ahn?....É.... ok.....tá....ahn? Sim. O olhar adquiriu um tom azulado meio leitoso. O freguês que estava na minha frente já tinha decidido o que iria pedir. Olá seu pedido. São três reais. Aguarde ao lado.

Naquele dia eu não tomei sorvete.