Divorciado

A funcionária da biblioteca está de olhos fixos na ficha que preenche.

- Olha, vai dizendo ele, vim aqui por esta carta.

Ela desvia o olhar da ficha, visivelmente irritada. Por um momento, dá conta de seu rosto bronzeado, a barba por fazer e os cabelos grandes, enrolados miudinho, jeans surrados e meio sujos. Pega logo a carta, vai lendo tipo leitura dinâmica, já antecipa o conteúdo e vai logo perguntando:

- O senhor trouxe o livro ou dinheiro da multa?

- Nenhum dos dois.

- Mas ... Não estou entendendo... Então, prá que veio? Ou traz o livro ou paga a multa. De qualquer maneira, já se passou muito tempo e as bibliotecas públicas da cidade não vão lhe emprestar mais livros enquanto a situação aqui não for resolvida.

- Olha, menina! Primeiro, não pago a multa porque tá mais alta que o valor do livro. Quanto a ele, tá valendo mais comigo do que aqui, só nessa semana seis pessoas já leram. E sem fichas, sem cadastro, sem nada, tá?

A mocinha, já impaciente, cruzara e descruzara as pernas umas seis vezes. Uma para cada pessoa que teria lido o livro ou pura coincidência?

- Mas...

- Mas você tem de devolvê-lo... se não, acabou-se esse negócio de livro de biblioteca. Estamos estendendo nosso controle por todo o território nacional e...

- E ele :

- Olha, falando a verdade, vim aqui só prá ver se você tinha as pernas que me falaram. Estou satisfeito. Quanto aos livros, muito obrigado. Depois de meses de desentendimentos, divorciei-me ontem da cultura.

E sai sem olhar pra trás.

Na loja de departamentos, as moças do crediário, escandalosamente pintadas e sorridentes como bonecos de neve, estão arrancando os cabelos de tanto serviço. Todo mundo se considera com prioridade para ser atendido. Ele, do meio dos muitos rostos expressivos como lata de goiabada, se adianta:

- Olha, vim aqui por esta carta.

- Não é aqui não E com o chefe do crediário

Depois de duas horas em pé, à espera do sisudo chefete, compenetrado a examinar importantíssimos papeluchos, é finalmente atendido.

- Olha, é por essa carta...

O homem olha o hippie de alto a baixo e logo pensa em punir quem aprovara sua ficha de avalista. Um vagabundo daqueles, mochila nas costas, cabelos ouriçado, barba dependurada do rosto em fios negros brilhantes... cai logo no assunto:

- Olha, são meses que o cliente deve são Cr$ 2.626,70, que, por extenso, seria lido dois mil, seiscentos e vinte e seis cruzeiros e setenta centavos. Vai pagar agora?

- Não.

- Quando, então? Anda, que tenho muitos papéis a examinar e muita gente pra atender.

- Não vou pagar isso nunca Não tenho dinheiro, vim aqui só pra ver se arrancava um sorriso seu e ver se tirava seus olhos, pelo menos um minuto, dessas fichinhas estúpidas. Olha lá na janela, o céu tá azul, parece que o enceraram inda agorinha...

- Oh, se o senhor veio aqui para me gozar, vai já saindo! É cuidando dessas fichinhas ”estúpidas” que sustento meus filhos, pago meu aluguel, minha água e luz e vou à praia cada dois anos. Vai já saindo!

E vai se levantando ameaçadoramente, grandalhão e barrigudo, o hippie logo imaginou que vinha bolacha, mas não deixa de observar um relógio Seiko novo no braço branquelo e cabeludo.

- Calma, companheiro, não tou gozando ninguém! Só vim dizer que não posso pagar.

- Está bem. Podendo pagar ou não, seu crédito está cortado aqui e, brevemente, em todo o país. A proteção ao crédito está se organizando em nível nacional e ...

E ele Interrompendo:

- Quanto ao crédito, lojas e sistemas de proteção, faça disso o melhor proveito. Divorciei-me dessas coisas faz algum tempo. Sinto muito é por você, que não deixa de ser simpático e merecia viver melhor.

E sai da sala assoviando “Hey Jude” , a mochila de couro a tiracolo, balançando pra lá e pra cá.

Passando perto - e no mesmo instante do assalto - suspeitam dele. Ao dobrar a esquina, vendo o revólver na mão do guarda, assusta-se e sai correndo de volta. Vendo-o, nas meias vestes de vagabundo, sujo e encaracolado, o eficiente e inteligente homem da Lei não tem dúvidas: pega do apito e sai correndo atrás do terrível bandido e, já que quem foge deve, atira três vezes para o alto. Mas, infelizmente, os três tiros erram o “alto” e três buracos finos pontilham a camisa de malha, três pontos vermelhos de onde o sangue vaza.

Mas, como se, de repente, os tiros lhe fizessem tomar a decisão há muito ensaiada, estaca no meio da corrida e volta-se imediatamente para seu algoz, os olhos vidrados, sorridente, fixa bem os olhos do guarda, que se paralisara todo no inaudito:

- Quá! Também eu já me divorciei da vida há tanto tempo!

E como que um balão escapulindo das mãos de uma criança, passa a se separar do chão devagarinho, vai subindo lentamente, suavemente, olhando sempre adiante, no vazio, no vazio, lá onde as coisas estão, em frente, sorrindo e subindo, sempre subindo e sorrindo, sorrindo sempre...

William Santiago
Enviado por William Santiago em 02/02/2018
Código do texto: T6243480
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