O Velho, O Cachorro e a Morte

Lá estava ele como de costume. Tinha saído exatamente na mesma hora de todos os dias, mesmo ar cansado, mesmo chinelo nos pés, mesma vida de sempre. Há minutos atrás, apanhara a coleira na área de serviço do pequeno apartamento que morava havia umas boas décadas e, apoiado em um dos joelhos, a colocara no cão que tentava em vão manifestar alguma alegria, ao saber que iria fazer seu passeio diário. Digo tentava porque o pobre cachorro já estava com seus 12 para 13 anos e já apresentava todos os problemas que um cão idoso, mesmo que de raça, tem nessa idade. Mal conseguia andar. A visão comprometida pela catarata, os veterinários disseram que não valia a pena operar. O caminhar era lento e custoso. Mancava da perna dianteira esquerda, não porque doesse ou tivera qualquer problema, mas talvez por conta da idade. Seu dono tinha um hábito similar e ele talvez o estivesse imitando. Sei lá.

O velhote já tinha posto a coleira e agora tentava levantar-se. Apoiou-se no tanque e na máquina de lavar pensando, como todas as vezes que isso acontecia, que qualquer dia ele não iria mais levantar dali.

Arrastando os chinelos e o cão na coleira, dirigiu-se até a sala onde a mulher fazia crochê. Sem levantar os olhos ela acenou com a cabeça, mexendo os lábios mudos, quando ele informou que já estava saindo. Não queria perder as contas dos pontos da linha, afinal era um ponto novo e estava aprendendo ainda.

Sem se abalar e respondendo ao grunhido baixo que a velha emitira, o velhote puxara a guia do cão de volta à lavanderia e à entrada de serviço do apartamento. Saiu para o hall, chamou o elevador e desceu. Mesma hora, mesma calçada, mesmo caminho.

O cão caminhava lento e manco, tentando cheirar os postes e as coisas em volta, mas parecia que caso se abaixasse mais do que aquilo que arriscava, não iria mais levantar. Quem olhava a cena manifestava ao mesmo tempo um misto de pena e consternação, pelo estado do cão, pelo esforço do velho, pelo conjunto de ambos.

Num determinado ponto do passeio rotineiro, uma figura se aproximou. Parou ao lado dos dois, enquanto o cão se aproximava e cheirava uma moitinha de mato que insistia em nascer de uma rachadura no calçamento. O cão parou de cheirar o matinho, arfava muito. Eu esqueci de dizer: O cão é da raça Pug que tem naturalmente uma dificuldade de respirar mais depressa quando se cansa, por conta de sua anatomia do focinho, este um tanto achatado, o que no caso desse especificamente, velho e cansado, criava uma resistência ainda maior ao ar. E enquanto arfava, olhava para o vazio, hábito que adquirira com o avanço da enfermidade em seus olhos. O velho demorou um pouco para notar a presença do sujeito ao lado da dupla. Ao registrá-la, afastou-se em reflexo, imaginando que estivesse atrapalhando a passagem do homem ou algo similar. Como este não se movera, o velho irritou-se e encarou o sujeito. O homem respondeu ao olhar seco do velho com um sorriso. Trajava calça de moletom preta, tênis preto, blusa de moletom também preta, com capuz e bolsos nas laterais. Trazia o capuz sobre a cabeça, cuja caída na frente escondia parcialmente sua testa e olhos. As mãos enfiadas nos bolsos e o olhar frio visto através do capuz, fizeram com o que o velho estremecesse. Imaginou que fosse um assalto. Arregalou os olhos e travou os dentes na boca. Apertou a guia do cão em uma das mãos e a outra levou instintivamente ao bolso de trás onde levava a carteira que insistia em carregar, mesmo durante esses passeios.

O homem, de aparência jovem, lentamente tirou uma das mãos de um dos bolsos e levou ao capuz. Tirou primeiro dos olhos e depois descobriu a cabeça, revelando um rosto jovem, porém maduro, cabelos negros como a noite, cortados à moda militar. Aproveitou o embalo e a mão livre e estendeu ao velho. Este, ainda assustado pelo inusitado da situação, demorou a corresponder o gesto. Lentamente, recuperou-se do susto e, aos poucos, tirava a mão da carteira e estendia ao desconhecido.

- Boa tarde senhor! – disse o homem, com um sorriso mais que cordial.

- Boa tarde – respondeu titubeante o velho.

- Desculpe a minha abordagem, assim tão repentina. Como pode ver não vou lhe causar nenhum mal. O homem agora tinha recolhido a mão estendida e, ao mesmo tempo, retirava a outra do bolso. Trazia um maço de cigarros e agora acendia um cigarro dando a primeira tragada. Ofereceu ao velho, que fez um gesto de recusa.

- Pensei que fosse me assaltar! Chegou assim tão de repente! O velho agora protestava com o homem, que ainda sorria entre uma tragada e outra do cigarro.

- Como já disse, peço desculpas. Fui um tanto sorrateiro demais dessa vez. Permita-me apresentar-me. Morte. Meu nome é Morte. Ou melhor, eu sou a própria. E seu sorriso se transformou numa risada meio galhofas.

- Não entendi. O senhor é do norte? O velho já andava meio surdo. Mas isso ele tinha ouvido bem. Estava era tentando ganhar tempo. Sua espinha estava arrepiada e gelada. Achou que tinha chegado sua hora. Sem considerar em nenhum momento que a morte não se personifica. Pelo menos não até aquele momento.

A morte soltou uma risada gostosa e deu outra baforada no cigarro.

- Não, senhor. Morte. MOR-TE. M-O-R-T-E. Assim mesmo, como o senhor entendeu. Mas – parecendo adivinhar os pensamentos do velho pela lividez do seu rosto – não vim buscar o senhor não. Vim pelo cão. A hora é a dele.

- Não veio por mim? Meu cãozinho? Mas...mas... O velho agora gaguejava, pasmo que estava com a nova informação. Como assim chegou a hora do cachorro? Uma enxurrada de pensamentos passou pela mente do velho, numa velocidade tão incrível quanto sua cabeça branca permitia, o que fez com que suas mãos agarrassem instintivamente a guia do cão, puxando-a levemente contra o peito.

- Fique tranquilo senhor – a morte falava calma enquanto puxava a fumaça do cigarro entre os dedos magros – sei que isso é uma coisa nova. Não deveria estar aqui, nem eu, nem o senhor e muito menos ele, se é que me entende. Mas o caso dele é especial. A ficha dele ficou esquecida no departamento. Passou muito da hora e por isso fui destacado para este serviço. Realmente o caso dele é bem especial. Mais uma baforada. Mais um sorriso.

- Não! Você não pode levar ele. Minha mulher vai enfartar, ter um treco, sem esse cachorro! O velho tentava argumentar, desesperado, mesmo sabendo que isso era mentira. O cachorro era dele e a mulher não dava a mínima pro bicho. Até, confessara certa vez, tinha algo de desprezo pelo pobre animal.

- Senhor, vamos! Ambos sabemos que isso não é verdade. Ademais, como disse, o caso dele é especial. Se não levar ele agora, posso perder meu emprego ou coisa pior!

- Como perder o emprego? Desde quando a morte perde o emprego? Coisa pior? O que pode ser pior? O velho agora tinha perdido a linha e estava visivelmente nervoso, argumentando com tudo que tinha contra o homem, ou melhor, contra a morte.

- Está bem! Já que eu mencionei então vou explicar. Nós anjos da morte – sim, pode não parecer, mas sou um anjo – somos designados para estes casos, somente em circunstâncias muitos especiais. Normalmente, o curso da vida já faz o trabalho dela e nós só recolhemos os ‘indicados’. Só que, como disse, o caso do seu cão foi postergado e precisa ser resolvido o mais depressa possível. Fui claro? Se não, posso perder meu emprego. Ser exonerado. Cortado. Zip – e fez um gesto com o indicador, passando pelo pescoço, como se o cortasse. Viro mortal! Entendeu? Mortal! Daí, o resto o senhor conhece bem. Vou envelhecer e morrer. E pior de tudo! Serei recolhido por um colega de profissão! Consegue imaginar a minha humilhação? Não! E o senhor vai colaborar comigo não vai?

- Sim. Não. Quer dizer... Ora, sai prá lá. Vá catar coquinhos! Me deixe em paz! Isso só pode ser uma pegadinha! Onde eu estava com a cabeça quando comecei a cair nessa sua história? Você só pode estar brincando com um velho, um idoso como eu! Isso é uma falta de respeito! E o velho começara a aumentar o volume da voz e a chamar a atenção dos passantes. A morte fez um gesto súbito para o velho parar de falar e deu uma longa e demorada baforada no cigarro. O velho, mesmo contrariado, parou e esperou, quase engasgando com as palavras que ficaram na garganta. Sua curiosidade naquele momento era maior do que sua indignação. E o cão, ali parado, permanecia alheio a tudo e a todos, como se não houvesse nada em volta.

- Senhor, se eu lhe der uma prova da veracidade de minhas palavras, me deixa fazer meu trabalho e ir embora?

- Humm – resmungou o velho – prova? Prova de que? De que é um lunático?

- Senhor, por favor... sim ou não?

- Humm – resmungou o velho de novo. Certo. Vá em frente. E cruzou os braços diante do peito, num gesto de desafio.

A morte então levou o cigarro aos lábios e o ajeitou no canto da boca. Enfiou a mão em um dos bolsos do moletom e tirou um pedaço de papel. Tirou um lápis de outro bolso – os bolsos obviamente eram mágicos pensou o velho – e desenhou alguns símbolos cabalísticos no pequeno pedaço de papel. Dobrou, dobrou e dobrou de novo e logo havia um pequeno avião de papel em suas mãos. Mostrou sua obra ao velho e num gesto rápido, atirou o pequeno avião de papel em direção ao jardim de uma casa vizinha. O avião seguiu voando firme e pousou suave em uma das roseiras do jardim. Imediatamente, a rosa, o caule e quase toda a roseira começaram a secar e a morrer. O velho, boquiaberto, observava a cena.

- Por quê fez isso? Era uma flor tão linda!

- Não pediu uma prova? Ei-la! E fique tranquilo. A roseira não foi morta por completo. Vai brotar e dar novas flores em breve. A morte agora olhava a bituca do cigarro que segurava com o indicador e o polegar, que quase queimara por completo.

- Mas... – os olhos do velho, agora rasos d’água, concordavam com o destino e falavam eloquentes: faça seu trabalho.

- Bem, então vou proceder ao...

- Não! Aqui não! O velho exclamou repentino, com a voz embargada.

- Está bem, disse a morte, recuando de súbito, dando um passo para traz e enfiando as mãos nos bolsos de novo. Seus olhos frios agora concordavam mudos com o velho.

No dia seguinte, o velho acordou tão cedo quanto todo dia. Foi à cozinha e fez café. Tomou uma xícara de café preto e foi até a sala, apanhou o telefone e discou o numero da casa do filho. Com a voz tranquila, anunciou o fato que havia se consumado e pediu auxilio nas providências. Despediu-se e foi até o quarto. Tirou o cão que dormia tranquilo no lado da cama da velha e o colocou no chão, ainda meio sonolento. De volta à sala, tirou a coleira do pescoço da mulher que jazia morta no sofá, enrolou a guia e guardou junto nas coisas do cão. Voltou à cozinha e tomou outra xícara de café. O cão logo apareceu ainda sonolento e manco. Trombava agora nos pés das cadeiras, pois a catarata tinha piorado. Jogou-se aos pés do dono, com a respiração rascante.

Uma roseira, num certo jardim, ameaçava soltar um broto de seu caule parcialmente ressecado. Um velho sentado em sua cozinha bebericava uma xícara de café com um sorriso quase imperceptível no canto da boca. O primeiro desde há muito, muito tempo.