BENDITO DIVÃ

Acordei cedo demais, sem nenhuma perspectiva para o dia. Sento-me de frente ao espelho e vislumbro algumas ruguinhas nas pálpebras, das quais nem ligo, pois já passei dos sessenta e cinco. Após meu relaxante banho, penso então em deixar o dia mais atrativo, já que não faço nada a semana toda, fim de semana necessário se faz um bom dia relaxante. Olho novamente no espelho e sinto que sou eu mesma, a personalidade continua intacta, assim não será preciso ir ao psiquiatra.

Descobri que tenho transtorno psicológico desde que fiquei viúva de meu excêntrico marido. Que me fez dondoca desde quando nos casamos e "cositas mas". Ter um marido que te ama e que tem condições de te dar vida boa é por demais excelente. Pois até depois de morto continua me protegendo. Mesmo assim queria ter meu próprio trabalho, pois os filhos já estavam crescidos e fazendo faculdade. Fiz um curso de cabeleireira e logo que terminei montei um salão bem simples, mas logo tive que ampliá-lo devido ao fluxo de clientes. Senti nesse período que meu marido começou a ficar estranho. Pensei logo que era sua empresa que não estava tão bem das pernas. Nem imaginava nessa época que ele estava se sentindo deixado de lado, nem pensei no que estava fazendo, pois sempre fui uma rainha do lar e das compras, mas ledo engano, era ciúmes. Passado algum tempo recebi no meio da tarde um telefonema com a notícia de que ele estava no hospital, tivera um forte derrame cerebral, fiquei no momento paralisada. Dias depois ele veio a falecer, nem teve a oportunidade de dizer algo para mim, mas apertou minha mão quando do seu falecimento. Fiquei um tempo digerindo sua morte, e cuidando de tudo. Descobri essa história do ciúme por intermédio de um velho amigo da família, o qual tenho sua amizade até hoje. Logo após seu falecimento vendi o salão para uma velha amiga, que toca com afinco até hoje em dia. O tempo passou e voltei a passear e aproveitar os passeios. Pois ele me deixou uma polpuda pensão de viúva.

Um lugar predileto para relaxar e tirar umas coisas de minha mente é o salão de cabeleireiro, acho que para a maioria das mulheres isso é primordial. Adentro-me no salão e Ermelinda vem me receber com aquele sorriso de pidona, pois sou assídua frequentadora, e sempre dou caixinha generosa.

Sempre saio para espairecer um pouco pela noite afora. Gosto de tomar vinho e de cantar, sempre onde vou tenho amigos que não me deixam totalmente só, sem compromisso, como dizia um de meus amigos: "cachorro picado por cobra tem medo de linguiça". Mas meu transtorno psicológico continua. Era bipolar e de vez em quando tripolar. A personalidade estranha tomava conta e me deixava totalmente absorta e só voltava em si ao acordar no outro dia. Meu psiquiatra me indicou um analista para dirimir minha patologia de mudança de personalidade.

O bom de ter uma condição financeira boa é poder ir a qualquer lugar ou a um bom analista sem estar preocupada com o quanto vai gastar.

Não tive outra saída, liguei para uma de minhas amigas e ela de pronto me indicou um analista. "O Transtorno Bipolar faz parte dos quadros de depressão, mas por suas características intensas é conhecido por “crise de exageros”. Pode haver períodos onde o portador do transtorno bipolar passa o dia na cama, não se alimenta, não toma banho. Em outros momentos o bipolar pode se transformar, fica falante, expansivo, se acha onipotente e podendo tudo, a autoestima sobe, pula de um assunto para outro. Nessa fase a pessoa pode até sentir muita energia, mas normalmente não realiza muita coisa por falta de concentração. A agitação pode impedir de realizar tarefas corriqueiras". Cheguei adiantada, como de sempre. Me adentrei naquele consultório onde havia outros psicólogos, acho que é um complexo de quatro salas. A recepcionista me encaminhou na sala a esquerda da recepção. Ao abri-la veio um vozeirão de dentro dizendo: "entre por favor". A primeira vista parecia-me que ia encontrar um homenzarrão cheio de vigor, mas vi um senhor magro com porte médio, ai fiquei mais a vontade, o medo passou.

Pediu-me que deitasse no divã que encontrava-se no centro da sala. Me acomodei e vislumbrei um teto fosco, com aparência rococó.

Fez-me as perguntas de praxe; como: nome completo, data de nascimento, estado civil e assim por diante. Ao dizer que meu estado civil é de viúva ele pensou por um instante e continuou com as perguntas das quais me levou àquele lugar. O analista era bem entusiástico, tinha a verve de Jung e a destreza de Freud. Colocou primeiramente várias dúvidas para serem dirimidas no decorrer das seções.

Tinha termos técnicos que não entendia nada. Quando estava já na quarta análise ele me perguntou o que me levara a ter transtornos psicológicos, pois até o momento nem ele sabia discernir o meu problema, logo pensei que seria mais um fiasco na minha vida. A noite sai com uma amiga para tomar vinho numa adega rústica da Vila Mariana, ela me perguntou como estava indo de análise? Respondi que nem eu e nem o analista sabia o motivo de tais transtornos. Nisso ela lembrou de um episódio que acontecera a uns três meses atrás.

Estando nós num bar dançante no Bairro do Bexiga, na mesa do lado tinha dois senhores tomando chope e beliscando salgadinhos. Olhei de soslaio e um deles acenou-me com os olhos pedindo para que a gente fosse junto deles, sem muito alarde sentamos com eles. Minha amiga ficou conversando com o mais gordinho e eu com o mais forte. Pelo aperto de mão que ele deu, senti que era bem forte. Conversa vai, conversa vem, só me lembro que fui dançar um pouco. Acordei na minha cama sozinha, como se nada tivesse acontecido. Só sentia uma dor forte nas minhas partes íntimas. Fiquei super assustada mas relaxei. O cara deve ter usado camisinha, pois não tinha nenhum vestígio de esperma. E deveria ser ter boa índole, pois seu sorriso, que me lembro, irradiava bom senso. Ai perguntei a ela o que realmente acontecera? Ela disse que fomos dançar e terminado a musica voltamos a sentar-se. Nesse instante o senhor falou que eu parecia uma cadela, pois encostava e ao mesmo tempo fugia. Disse-me que ele repetiu novamente: - sua cadela! e eu comecei a beija-lo apaixonadamente, doida de tudo. Depois sai com o homem e falei que voltaria para pegá-la. Ela me perguntou a caminho de casa, como foi a transa? e eu respondi que foi bom demais, o cara sabia das coisas, fez-me sentir mulher. Ela ficou abismada, como eu poderia não me lembrar de nada? somente tinha vaga lembrança da dança.

Depois marquei hora com o analista e levei o relatório de minha amiga, para dar um fim nesses delírios. Assim quem sentia o bem bom era a outra e não eu. No divã detalhei ao analista o que minha amiga dissera do acontecido.

Pensativo falou-me que se tratava de um caso complicado demais para ser delineado e tratado pela psicologia contumaz. Então recomendou-me de pronto, para eu procurar um "apométrico". Fiquei com a cara da "Tati" - hãa... pois não sabia o que aquilo significava. Ai ele me esclareceu o que seria tal transtorno e o significado. "Apometria é um conjunto de princípios e técnicas que tem como objetivo o tratamento, a harmonização e a conscientização dos múltiplos aspectos que movem as energias humanas". Agucei minha curiosidade e quis saber onde encontraria esse troço. Então ele arregalou os olhos debaixo dos óculos de grau e me explicou o que seria aquela obsessão. Me aconselhou a procurar um Centro Espírita que lá resolveria ou contornaria esse problema. Continuou a me explicar mais coisas sobre o assunto.

"A obsessão de Personalidades de vidas passadas ocorre quando a pessoa que fomos no passado não aceita o que somos hoje em dia, ou possui muitas desarmonias a ponto de estar influenciando negativamente a personalidade atual. É possível então invocar a personalidade passada e trata-la através de uma série de técnicas espirituais, que a literatura da Apometria descreve e ensina."

Nunca imaginei que um psicólogo analista tivesse percepção espiritual para indicar um Centro Espírita. Realmente fiquei abismada com essa indicação.

Como não tenho por costume frequentar nenhuma religião ou centro espírita, fui de pronto ao Centro indicado pelo analista. Chegando lá fui bem recebida e quando olho sala adentro vejo, com algum espanto, o analista dando expediente como apômetrico, como ele havia dito, sem me dizer que era ele mesmo o dito cujo.

Não necessariamente o apômetra precisa ter mediunidade. No caso do analista, ele estava ali, tão somente para analisar e doutrinar o que os médiuns iriam revelar, foi o que me disse um dos rapazes que ajudam na preparação dos serviços. O apômetra ou analista me explicou que iriam realizar desobsessão da entidade que mexia com minha personalidade, que provavelmente seria de minhas vidas passadas. Não estava entendendo nada, enquanto o analista serrava cada vez mais os olhos parecendo estar em transe.

Quando de repente uma entidade começa a se manifestar e o médium olhou diretamente para mim, a principio tive um sobressalto mas o analista pediu que eu ficasse parada e calma. Mediu-me dos pés à cabeça e numa voz arrastada e forte falou -"cadela"...

Arrepiei-me toda, sentindo náusea ou sei lá o que. Só sei que estava tonta e sem coordenação motora. Com aquela entidade de olhos arregalados mirando-me de tal maneira contundente, fiquei sem rumo, até que o apômetra me amparou e disse que tinha como analisar e desfazer o que outrora teria acontecido. Naquela seção espírita com analise apométrica a entidade manifestada falou tão somente "cadela", depois só ficou me olhando e bufando.

Depois o esperto analista disse-me que explicaria melhor o caso, numa consulta em seu consultório. E me explicou melhor a doutrina a que estava sendo submetida. Dizendo que: "É preciso esclarecer que chamamos de Apometria apenas a técnica criada por José Lacerda de Azevedo. Nos últimos anos, com o grande interesse despertado por essa nova corrente, algumas novas abordagens surgiram tentando pegar “carona” no sucesso da Apometria, como a Apometria Quântica, a Apometria Estelar, a Apometria Xamânica, a Apometria Reikiana, etc. Na verdade, nenhuma destas abordagens deveria ser chamada de Apometria, posto que todas elas possuem orientações totalmente diversas e estranhas à Apometria original. Apometria é apenas aquela corrente divulgada por José Lacerda de Azevedo, nada mais. Qualquer variação é indevida e, em nossa opinião, pouco ou nada acrescenta."

Passado uma semana da seção espírita, recebo uma ligação da recepcionista do analista pedindo para eu comparecer ao consultório.

Cheguei no horário marcado e de pronto coloco-me deitada no divã.

Tinha o semblante sério, mas suave em seu modo de agir. Senti bem a vontade, pois estava acostumada com seu jeito. Começou a me explicar que naquela seção minha presença foi primordial, pois a analise e a desarticulação da obsessão de personalidade foi perfeita. O médium recebera novamente a entidade e este revelou que: tempos remotos teve contato contigo e essa aproximação foi dilacerante para o seu coração. Pois se apaixonou de pronto, amor a primeira vista, no entanto você não ligava para tal fato e nem estava ai com seu sofrimento.

Na época já estava com uma idade avançada, não suportando tanto desprezo de sua parte, um colapso o acometeu e veio a falecer em seus braços dizendo: - cadela, mataste-me.

Assim descobrimos a razão pela qual a entidade te roubava a personalidade, pois seria a forma eloquente de se vingar de tal interlúdio, como se fosse uma ópera dramática.

Posto esse relato, o analista expôs sua analise e diagnóstico.

_ Após a morte de seu marido, você tornou-se frágil, colocando sua mente em devaneio, creio que devido à sua vida passada. Todos nos carregamos essa herança, mas se não houver trauma no decorrer da vida, esta corre normalmente, sem nenhum surto relâmpago.

- Portanto, preciso lhe dizer que as energias negativas que adquirimos através dos tempos, pregresso e atual, não desfazem com uma simples seção espírita com análise apômetrica.

- Terás que viver e não seguir o seu intuito malvado.

Terminado esse sermão, senti-me rebaixada em minha autoestima, pois mesmo usando um pensamento que eu não entendia muito bem, arrasou-me.

Disse-me mais:

- Você terá que aprender a conviver com alguns transtornos psicológicos e mudança de personalidade repentina. Não se preocupe, pois com o passar do tempo isso vai desaparecer, desde que você compareça pelo menos uma vez por semana no Centro Espírita e também uma vez por mês aqui no consultório.

Até aquele momento ainda não tinha conversado com ele a respeito de valores. Pois só pagava-lhe as corriqueiras consultas.

Meu entendimento sobre apometria e demais termos decorrentes do meu estado psicológico, não entraram na minha mente, fiquei vendo navios.

Continuei o tratamento com o analista e pagava tão somente as consultas. Senti alguma melhora. Mas passado algum tempo deu-me vontade de sair para espairecer um pouco. Eu e minha amiga inseparável fomos para o mesmo local de sempre, chegando lá, eis que encontramos os mesmos senhores que outrora tivemos o prazer de conhece-los. Disseram-nos que estavam felizes em nos ver novamente.

Sentamos junto deles e o senhor mais forte veio com aquela conversa de tempos atrás. - E ai minha cadelinha, gostou dos braços do negão aqui?

Tremi-me toda, pensando no que fazer, mas não poderia deixar de sentir o que a outra personalidade sentira. Respondi que adorei e gostaria de tê-lo novamente. Falei para minha amiga que estava tudo sobre controle e que ela poderia ficar com seu amigo, pois dessa vez iria pousar no motel. Foi uma noite inesquecível, deixo na imaginação dos leitores a inesperada transa.

Voltei à rotina e não tive mais mudança total de personalidade, tive alguns transtornos psicológicos bem leve, onde pude sentir que poderia levar minha vida de maneira tranquila. Ficamos amigas do analista apômetro e descobri que o espiritismo em suas diversas vertentes pode ajudar muita gente. Meu amigo de transa voltou para sua ex mulher e sumiu no mundo, mas confesso que a saudade continua...