Uma cantora fantástica

“Cantora asiática tem carreira meteórica!”

“Super estrela mundial faz primeiro show no Brasil.”

Pedro revirou os olhos enquanto lia as notícias em seu tablet. Não entendia o porquê de todo mundo estar obcecado por essa cantora. Tudo bem que a voz dela era boa, muito boa, na verdade. A moça era bem bonita, do tipo misteriosa, mas ao contrário do que se poderia imaginar, ela não usava a sensualidade para se promover. Seus olhos puxados e os lábios bem desenhados eram perfeitamente emoldurados por longos cabelos castanhos, levemente ondulados. As músicas é que eram chatas, um tédio, mas o mundo parecia discordar dele, como sempre. Fechou as notícias e abriu seu blog.

“funkeira@delícia disse em 28 de outubro de 2017:

Vê se se toca otário, esse funk é perfeito! Se você não gosta, não mete o pau, é só não ouvir, crítico de merda!!!”

“Inconformado disse em 03 de novembro de 2017:

Você não pode se chamar de crítico musical se só fala bem das músicas caretas cara, o que o povo gosta você critica, vai entender? Nunca ouviu a expressão: A voz do povo é a voz de deus? Se quiser ser um bom crítico, vê se fala bem do que o povo gosta. Fica a dica cara, de nada.”

Quase jogou o tablet longe lendo os comentários em suas resenhas, mas não podia se dar ao luxo de comprar um novo. Era o blogueiro musical mais odiado do momento, pensou pela milésima vez em desistir, mas continuava por pura teimosia. Tomou o resto do refrigerante morno, amassou a latinha e arremessou na lixeira, que já estava transbordando. Olhou ao redor do minúsculo apartamento, abarrotado de discos, CDs, revistas, instrumentos musicais, alguns livros. Esfregou os olhos, que ardiam com a constante falta de luz natural, tirou os fones de ouvido e começou uma pesquisa sobre a modinha do momento, a super estrela mundial. Faria uma crítica justa sobre ela e provavelmente essa seria sua última resenha.

Depois de um tempo desistiu, não achava nada de novo, nada sobre o passado, nem família, nada. Como se ela existisse só nesse período de um ano entre o dia que começou a cantar em um barzinho até os shows internacionais superlotados dos dias de hoje. Colocou o fone no ouvido e apertou o play para ouvir mais uma vez os maiores sucessos dela e ver se entendia tanta veneração. Não. Nada. Só tédio e sono. Ajeitou-se no sofá, fechou os olhos e em um minuto já estava dormindo.

Acordou assustado, sugando o ar como se tivesse acabado de emergir de ondas revoltas e espumantes. O sonho tinha sido tão real que sua sensação era de voltar à vida depois de se afogar. Sonhou com o mar, as profundezas escuras e misteriosas, no sonho ele sentiu todo o ar de seus pulmões evaporando, debatia-se em agonia enquanto criaturas marinhas zombavam dele. Tirou os fones que ainda balbuciavam a música da cantora. Decidiu comprar um ingresso e ir vê-la pessoalmente. Ligou para um amigo, que tinha tentado vender seu ingresso dias atrás.

– Alô, Marcos, ainda quer vender aquele ingresso pro show da Jill?

– Quero sim cara, não vou poder ir mesmo, é uma pena porque adoro ela…

– Você é doido… Quero comprar, vou fazer uma pesquisa de campo pra minha resenha.

– Que ótimo… olha cara, vê se capricha nessa resenha, não tem como você não gostar dela.

– Só escrevo a verdade. Tchau!

O show começou. Centenas de fãs gritavam enlouquecidos, Ji Ho ou Jill como era chamada no ocidente, entrou no palco e como de costume sentou-se em uma banqueta em frente ao microfone. Pedro havia conseguido um lugar bem na frente e tinha uma ótima visão da cantora. Ela era linda, muito mais bonita do que nas fotos.

Sua voz era suave e hipnotizante, Pedro olhava perplexo para as pessoas ao seu redor, todas pareciam estar entrando em transe, cutucou de leve o homem ao seu lado e ele nem percebeu, repetiu o gesto com mais força e foi ignorado novamente. Parecia que ele era o único desperto no meio de uma multidão de sonâmbulos. Quando voltou a olhar para frente percebeu que ela olhava fixamente para ele, parecia perturbada com alguma coisa.

Ao mesmo tempo em que Jill ficou apreensiva vendo um homem que não conseguia hipnotizar, achou um pouco divertido, esse era o primeiro, imaginava o que ele teria de especial, mas não iria perder tempo tentando descobrir, seu objetivo era claro como cristal, ser a cantora mais famosa do mundo. Tinha o poder para isso então porque não usá-lo? Não queria ficar como sua mãe, que não usava seu talento para benefícios próprios, passando a vida toda só dedicando-se ao seu pai, um simples humano. Ainda bem que conseguiu herdar seu maravilhoso dom. Não deixaria nada ficar em seu caminho.

Pedro tirou o máximo de fotos que conseguiu, fez várias anotações em seu tablet, era visível demais que alguma coisa estava errada naquele show. Que todos estavam em transe ou hipnotizados ele tinha certeza, mas como? Nunca ouvira falar de hipnose em massa. Seus pensamentos voavam:

“Então foi assim que ela conseguiu sua fama meteórica, fácil e conveniente. Será que foi assim que Hitler conseguiu levar tanta gente a acreditar nas barbaridades que ele pregava? Mas eu vou desmascarar essa mulher, só preciso descobrir como ela faz.”

Jill fez uma pausa e com um gesto chamou Pedro para subir no palco, ele não entendeu de imediato, mas ela continuou chamando, vendo sua chance de chegar mais perto da cantora e, quem sabe, descobrir alguma coisa, ele foi. Subiu no palco e ficou frente a frente com ela.

Uma sensação estranha o amedrontava, viu que Jill usava um medalhão com a imagem de uma sereia gravada nele, na mesma hora lembrou-se do sonho e começou a sentir falta de ar. Jill olhou profundamente em seus olhos e disse com sua voz melodiosa:

– Alguns humanos são mais resistentes, mas nunca imunes.

Colocou as mãos no pescoço de Pedro e beijou-o longamente. A sensação do estar se afogando voltou com toda a força, parecia que todo o ar estava sendo sugado de seus pulmões. Não aguentaria muito tempo. Manchas escuras foram toldando sua visão. Logo só havia escuridão.

Pedro acordou com seu celular tocando, só o ato de abrir os olhos era quase insuportável, sua cabeça parecia que ia explodir. Atendeu ao celular com dificuldade. Era o Marcos.

– Alô, Pedro, onde você está?

– Em casa, eu acho… – Disse olhando ao redor

– E aí, como foi o show? Conseguiu muito material para a resenha?

– Sei lá cara, não consigo lembrar de nada, eu devo ter bebido todas depois do show. Não tô achando minha câmera, nem meu tablet, que droga, tava tudo lá. Não tem importância. A única coisa que eu sei é que a Jill é uma cantora fantástica. Essa vai ser uma resenha que o povo vai amar, até que enfim!!

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 02/06/2018
Código do texto: T6353905
Classificação de conteúdo: seguro