Bonecas de Pano

Adela olhava pela janela, observando o crepúsculo, e lembrava de outros tempos. A seus pés, brincava a pequena Sílvia, com uma boneca de pano feita há pouco pela babá Francisca. Engraçadas as crianças... Sílvia tinha dezenas de bonecas de todos os tamanhos e tipos, mas sempre se encantava com as “bruxinhas” feitas pelas mãos carinhosas da Chica. Nas mãos de Adela, esquecida, uma revista quase caía ao chão. E o pensamento voava, e ela via a ela própria, sentada aos pés de Amélia, sua mãe, brincando com outra boneca de pano, igualmente confeccionada pela mesma Chica. Para ela aquela boneca tinha significado diferente que para Sílvia, pois era a única que ela tinha e podia ter, e era com ela que ela, nos seus dez anos de idade, passava horas em ternas confidências, preenchendo assim a sua infância solitária .

Aquela tarde tinha sido particularmente inesquecível. Amélia, sentada na cadeira de balanço, bordava, trabalhando no enxoval do filho que esperava, e cismava, lembrando-se de sua própria mãe, Maria, de uma outra tarde, de uma outra fazenda.

Maria, jovem de dezesseis anos, casara-se com Joaquim, fazendeiro de trinta, e na inexperiência de sua adolescência interrompida, levara como único dote a menina Francisca, de catorze anos, sua amiguinha e confidente, filha de antigos escravos, agora sua única companhia no fazendão do marido arranjado de acordo com as conveniências familiares. Moço bom, trabalhador, moça nova, direita, bem-criada, que sabia cozinhar, lavar e passar, que mesmo na fragilidade de seus anos púberes era capaz de assar uma fornada de biscoitos e amassar uma rosca como ninguém. Disso se orgulhava sua mãe, Nhá Dorotéia. Francisca era negrinha esperta, boa companhia, engraçada, que fazia Mariazinha dar boas risadas ao imitar o sisudo patrão pelas costas. E Francisca havia aprendido com sua própria mãe a fazer umas bonequinhas de pano com as quais Maria, secretamente brincava quando o marido saía de casa. E eram muitos esses momentos de solidão em que a negrinha e suas bonecas eram as suas únicas companhias.

Aos vinte e seis anos Maria tinha seis filhos, e não tinha mais tempo para brincar com as bonequinhas de Chiquinha, que eram agora brinquedo de Amélia, a única menina entre cinco varões.

Esses dez anos de casamento haviam sido o purgatório de Maria. O marido, homem rico e rude, só se preocupava com seus negócios, e tinha considerava a jovem esposa apenas a parideira para seus filhos e a cozinheira pronta a fazer os pratos que ele estivesse com vontade de comer, geralmente comidas mineiras que a mãe dele fazia com perfeição. Maria, com o passar dos anos, se tornara exímia cozinheira, e já nem se lembrava mais das bonequinhas confeccionadas pela Chica, que agora se dedicava a ajudar na criação da prole, que a cada ano crescia mais. Antes do casamento, Maria não chegara a sonhar com um casamento romântico, pois nem bem havia saído da infância quando seu pai acertara o enlace com Joaquim, e ainda não havia começado a sonhar sonhos de mocinha. Seu universo se resumia nas brincadeiras com Chica e nos raros e esperados passeios na cidade, principalmente quando havia quermesse na igreja. Ao se casar, teve que aprender a ser adulta enquanto adolescia, a dar à luz mal compreendendo o milagre da vida, a ser senhora ainda menina. Chamava o marido de senhor, e tinha um grande medo daquele homem calado, sempre de chapéu, que lhe dirigia a palavra apenas para ditar-lhe alguma ordem.

Um dia, quando tinha vinte e um anos e três filhos, viu aproximar-se pela estrada um homem a cavalo. Eram raras as visitas na fazenda, geralmente parentes de Joaquim ou mesmo os seus pais, que quando vinham visitá-la utilizavam uma charrete de propriedade de seu pai. Esta visita chegava a cavalo, e era um homem que à distância pareceu a Maria um estranho, alguém que ela jamais havia visto.

- Ó de casa! Posso apear?

Joaquim não estava na casa no momento, havia saído para percorrer os cafezais, e Maria estava sozinha com Chica e outra empregada. Chica, espevitada como sempre deu jeito de ficar ali, pertinho de Maria e observar a novidade.

- Meu marido saiu, mas volta logo. O senhor poderia voltar depois?

- Preciso conversar com o marido da senhora, vou ter que esperar. Será que a senhora poderia me ofertar por obséquio um copo d’água? – disse o rapaz, de uns vinte e cinco anos, tirando o chapéu e deixando á mostra os cabelos mais loiros que Maria havia visto.

Chiquinha puxava a roupa de Maria, cochichando:

“Que moço bonito, que moço bonito!”

- Qual a sua graça? De onde vem o senhor?

- Nhá Maria, sou Estevão, seu primo, filho de sua tia Engrácia.

- Oh, primo! Mas eu não o havia reconhecido! Chica, vá buscar uma caneca de água para o moço! Apeie, primo, vamos chegar...

- Espero que não haja problema, Nhá Maria, com o primo Joaquim ausente...

- Ele chega logo, primo. Vamos, entre, que o sol está quente!

Quando Joaquim chegou, Maria e Estevão estavam na sala conversando há várias horas, e Maria redescobria um prazer que praticamente nunca havia experimentado, o de conversar, rir, ouvir histórias e notícias de pessoas que conhecia e que já quase havia esquecido. Eram informações de um mundo tão remoto, tão distante, que a faziam estremecer de alegria e emoção a cada gargalhada que compartilhava com o primo, acompanhada por uma fascinada Francisca, que via naquele moço um ser quase impalpável, uma divindade mesmo. Para Maria era o início de um tempo de muitas emoções, pelas quais ela teria que pagar o devido preço.

Joaquim recebeu bem o moço, seu primo também por parte de pai, e que viera tratar de negócios relacionados com a compra de um gado.

Depois de ter mandado Maria para a cozinha, conversou longamente com o rapaz, não sem antes mandar que a esposa fizesse aquele cozido de carneiro com mandioca.

Estevão ficou quinze dias na fazenda, pois tinha que esperar a chegada do gado.

Uma tarde, quando Joaquim estava na cidade tratando de uns negócios, Chiquinha veio esbaforida chamar Maria, que mexia uma tacho de goiabada juntamente com a outra empregada.

- Ía, Ía, vem ver ! Vem ver!

- Que foi, Chiquinha? Que assanhamento é esse?

- Vem ver!

Maria passou a colher de pau para a empregada, e pegou a mão de Francisca, que a puxou, correndo até a cachoeira que ficava no fundo da propriedade. Fez sinal de silêncio para Maria e apontou.

- Olhe!

Estevão estava tomando banho na cachoeira, nu, aproveitando o calor de janeiro, não imaginando que estava sendo observado. Maria nunca havia visto nem mesmo seu marido nu, e ficou paralisada diante da visão do rapaz. Apertou a mão de Francisca, e não tirou os olhos da cena.O rapaz ficou ali durante muito tempo, até que ele saiu da água, deitou-se na grama, recebendo sobre a pele o resto do sol daquele dia, e depois, vestindo-se, encaminhou-se para a sede da fazenda. No seu esconderijo, Maria, suava e tremia, com sensações nunca antes permitidas ou sentidas. Depois que Estevão entrou, esperou uns minutos, e foi até a margem do rio, molhando o rosto com a água fria. Não entendia seus pensamentos e sentimentos.

Dois dias depois o primo foi embora, mas a lembrança daquele banho não saía da cabeça de Maria. Naquela noite, quando seu marido, como fazia rotineiramente, manteve com ela uma relação sexual, ela, penando no que vira, teve um estranho estremecimento, notado pelo marido, que parou e perguntou:

- Que foi, mulher? Está doente?

- Não, não é nada, “seu” Joaquim, não é nada.

Mas Maria nunca mais foi a mesma. Tinha sonhos repetidos sobre a cena que havia presenciado, e um dia tomou uma decisão: ia ver seu marido, nem que isso que custasse uma punição.

Joaquim tomava banho todos os sábados, seguindo o costume da época, e nos outros dias apenas lavava os pés para dormir. Naquele sábado, Maria, sabendo do horário em que o marido se banhava, escondeu-se no armário, onde sabia ter um buraco na porta, que lhe permitiria ver tudo o que queria. E desde esse dia, os sábados eram esperados com ansiedade, quando ela observava o ritual do marido dentro da bacia e permitia que seus dedos lhe proporcionassem prazeres até então negados e desconhecidos.

Joaquim nunca desconfiou de nada, até o dia em que o cabide caiu.

Era nisso que Maria pensava naquela tarde, sentada na cadeira de balanço junto à janela, tendo sua filha Amélia aos pés. Na surra que havia levado, nas palavras ofensivas que ouvira, e na vida que levava até hoje, cinco anos depois, com o marido cada vez mais calado, proporcionando-lhe uma vida de parideira e cozinheira, sem um elogio, sem um carinho, sem uma emoção além de tristeza e ressentimento. Mas nas noites em que a insônia lhe fazia lembrar da cena da cachoeira, seus dedos lhe davam o prazer negado, ainda que depois a culpa a deixasse mais triste e mais pensativa. Ao seu lado, roncava o marido...

Amélia crescera na fazenda, brincando com Chica e suas “bruxinhas”, e aos dez anos foi mandada para a cidade, pois havia terminado o curso primário na escola da fazenda, e a professora havia dito seus pais que ela tinha um grande potencial, e que deveria fazer o Curso Normal. Depois de muita relutância e com a insistência de Maria, Joaquim concordou em mandar a filha para estudar na cidade, desde que morasse com os avós paternos. Os sete irmãos homens continuavam na fazenda, aprendendo ofício de homem.

Amélia fez o Curso Ginasial num colégio de freiras, e estava para entrar no Curso Normal quando conheceu Celso na quermesse da igreja.

Depois dos habituais olhares trocados à distância, Celso lhe mandara um correio elegante e ela já estava apaixonada. Começaram a se encontrar, principalmente na praça da cidade e viam-se na missa todos os domingos.

Uma noite, em que estava passando “E o vento levou” no cinema da cidade, Celso sentou-se ao lado de Amélia e no escuro tomou a sua mão. A emoção e a excitação impediram que a jovem percebesse o que se passava na tela. Nada mais tinha valor além daquela mão quente segurando a sua. No sábado, Amélia confessou seu pecado ao Padre Benevides, que lhe deu a penitência de rezar cinco terços para Nossa Senhora pedindo perdão por sua libertinagem... Imagine segurar a mão de um rapaz no escuro do cinema... Na missa de domingo, ao comungar, Amélia fazia o propósito de nunca mais tocar em homem nenhum para não manchar sua honra e não ofender a Deus. Mas na saída da missa Celso a esperava, convidando-a para tomar um sorvete.

Amélia e Celso namoraram durante dois anos, e depois ele teve que ir para São Paulo para cursar Engenharia, enquanto que Amélia terminava o terceiro ano de Curso Normal. A família de Celso mudou-se também para São Paulo, e as cartas trocadas semanalmente entre os dois namorados foram se distanciando até parar totalmente, quando, dois anos depois, Celso escreveu que havia encontrado uma pessoa e que não seria mais possível escrever.

Meses depois, Amélia recebeu a notícia do casamento de Celso com uma moça da capital. Sofreu muito, mas como já terminara o terceiro Normal, começou a trabalhar, dando aulas numa fazenda cinco quilômetros distante da cidade. Todas as manhãs, bem cedo, vinha uma charrete buscá-la, conduzida por um senhor chamado Francisco.

Amélia tinha vocação, e do mesmo modo que gostava muito de dar aulas, os alunos gostavam muito dela. Com o tempo foi esquecendo de Celso, e finalmente tinha dele vaga lembrança, e às vezes ficava cismando como seria a vida dele na capital, casado, trabalhando. Será que tinha filhos?

Um dia em que chovia muito, Amélia não teve como voltar para a cidade, e dormiu na fazenda. Foi muito bem tratada pelos proprietários, que a acharam meiga e educada. Durante a conversa ao pé do fogo antes de ir para a cama, ficou sabendo que o casal, além das duas filhas casadas que moravam na cidade, tinha um filho que morava numa outra fazenda de propriedade da família. Viu a fotografia dele sobre o piano, mas não se impressionou.

Quando chegaram as férias Amélia foi para a fazenda dos pais, onde ficou durante todo o mês de julho.

Quando em agosto retomou a rotina das aulas, um dia Amélia recebeu no intervalo das aulas a visita de Álvaro, filho do casal proprietário da fazenda. Era um rapaz moreno, que não chamou muito a atenção da moça, que ficou extremamente impressionado com ela, motivado pelos elogios proferido pelos seus pais. Ele ficou um mês na fazenda, e ao voltar para sua fazenda já estava namorando uma Amélia descrente, achando que a história iria se repetir, que logo as cartas minguariam e por fim cessariam.

Mas não foi assim que aconteceu e dentro de um ano, estavam casados, mudou-se para a fazenda de Álvaro para começar uma vida totalmente nova. Álvaro trabalhava muito, e logo Amélia começou a trabalhar também, dando aulas numa escola estadual na cidade vizinha.

Amélia logo engravidou, e sua mãe mandou Chica, que a havia ajudado a criar os filhos para ficar com ela enquanto fosse necessário. Chica foi ficando, e à medida que nasciam os filhos de Amélia ela exercia a função para a qual nascera: cuidar de crianças da sua maneira simples, ignorante, agradando os pequenos com bruxinhas de pano e contando histórias que sua mãe havia lhe contado.

Adela era a filha mais velha de Amélia, e naquela tarde ela brincava com sua boneca de pano enquanto a mãe, grávida do quarto filho, bordava e lembrava do passado. Alguém bateu à porta e Francisca foi atender.Estranho ninguém ter ouvido a aproximação de nenhum carro... Voltou esbaforida, agitada:

- Melinha, tem um moço muito bonito aí fora querendo falar com você!

- Quem é, Chica? Não perguntou o nome?

- Parece que é Cerso...

Amélia empalideceu, e levantou-se da cadeira para receber a visita.

Celso estava na porta, depois de seis anos, e parecia que o tempo não havia passado para ele. Ela não tinha como esconder o barrigão, e sentiu vergonha de estar assim, enorme, inchada, grávida... Ao olhar para o antigo e primeiro amor, o sonho voltou-lhe à cabeça, vivo como realidade, enchendo-a de vergonha. Ele olhou para ela como nos velhos tempos, e tomou-lhe a mão gelada em suas mãos quentes num cumprimento formal. O sonho...

- Mas entre, Celso, não fique aí parado na porta...

Ele entrou e ela o recebeu na sala de visitas, tendo por testemunhas Francisca e seus quatro filhos, Adela, Gabriel, Rafael e Luíza.

O sonho... Tão real, e agora aparece o Celso, como no sonho...

Depois de duas horas de conversa, Celso se levanta.

- Agora preciso ir. Meu ônibus sai em uma hora. Adeus.

- Adeus.

Antes de sair, num impulso, Celso pôs a mão na barriga de Amélia, que estremeceu, assim como a criança dentro dela. Sentindo o movimento na sua mão, Celso sorriu e disse:

- Vai nascer daqui a duas semanas, não é?

Amélia enrubesceu e murmurou um “sim”, enquanto segurava o pulso de Celso, mantendo por mais alguns segundos aquele contato.

Na maternidade, Amélia amamenta o pequeno Saulo e mais uma vez se permite lembrar do sonho que tivera nove meses antes, em que Celso batia à sua porta e logo depois estava entre os lençóis de sua cama. E agora olhando para o filho, via que ele era totalmente diferente dos irmãos, morenos como o pai... Seu cabelo era loirinho e fininho... Como o de Celso.

Agora Adela se lembra dessas coisas, tendo Sílvia a seus pés, olhando pela janela, de onde se descortina a linda paisagem da baía de Guanabara. Tantos anos... Cada irmão morando num lugar, os pais mortos, Chica com ela, senil, ainda fazendo as bonequinhas de pano que fazem a alegria de Silvia, sua única filha.

Ao ficar grávida de Sílvia, lembrara-se da história que Chica contava, que Saulinho era fio de um anjo... O anjo que tinha visitado a Melinha uma semana antes do parto. Ninguém nunca havia questionado a honestidade de Amélia, mesmo porque não haveria como ela estar com quem quer que fosse além de Álvaro, pois vivia confinada na fazenda, não recebendo visitas além dos familiares, e sempre tendo por perto os filhos e a própria Chica. Mas comentava-se como Saulo era diferente dos outros irmãos.

Sílvia também era filha de um anjo... De um outro anjo. Anjo?

Adela tem um ótimo emprego numa editora no Rio de Janeiro. Aos trinta anos, não pensava em casar-se e muito menos em ser mãe. Um dia apareceu na agência um escritor novo, Ângelo, jovem, com cabelos loiros e compridos. Conheceram-se e começaram a conversar. Todos os dias Ângelo ia à editora para resolver algum problema e ficava horas conversando com Adela. Descobriram muitos pontos em comum e alguns divergentes. Se a princípio Adela assumia uma postura arredia, evitando maiores intimidades, logo foi quebrando as resistências e acabou aceitando o convite para conhecer o apartamento de Ângelo.

Era um loft muito bem decorado, e logo entrar Adela foi cercada de todas a atenções de um anfitrião experiente e bem-educado que lhe serviu champanha em maravilhosas taças de cristal, e juntos prepararam um jantar finíssimo, sempre sobre a orientação do rapaz. Depois ele a levou escada acima, e juntos entraram na banheira espumante, onde fizeram amor pela primeira vez. Depois, ambos em robes de seda branca, passaram a noite na enorme cama coberta de cetim azul. Tudo parecia perfeito, cena de filme. Sempre que tinha a oportunidade, olhava quase sem acreditar para aquele homem maravilhoso, loiro como um anjo, corpo perfeito, que a cobria de todas as atenções. A última coisa que se lembrou foi da taça de champanha servida na cama. Pareceu-lhe ter um gosto estranho, mas ele insistiu que ela tomasse. Depois foi o vazio, o escuro.

Acordou nua, no sofá da sala, os cabelos empapados de vômito. Ao tentar levantar-se, sentiu dores em todo o corpo. Ao olhar-se no espelho sobre o aparador, assustou-se. Seu rosto estava inchado, cheio de equimoses, seu corpo todo estava coberto de equimoses. Enlouquecida, procurou suas roupas, e não tendo encontrado a calcinha, vestiu-se como pôde e desceu, chegando à rua e entrando no primeiro táxi que passou.

Foi uma gravidez tranqüila, apesar do choque ao tomar conhecimento que estava soropositiva. A cesariana foi bem sucedida, e nasceu Sílvia, bela menina, loira como o pai, que nunca mais foi visto, e cujo nome ninguém sabia, já que Ângelo era um nome falso, e os originais prometidos à editora nunca foram sequer enviados. O loft pertencia a um rapaz, um homossexual que estava em viagem para a Europa, e ao chegar surpreendeu-se ao encontrar a porta arrombada. Dentro, reinava a desordem de um casal enlouquecido de desejo.

Chica tinha agora oitenta anos. Sentada em sua cama do asilo, mais uma vez confeccionava uma boneca de pano. Quantas ela havia feito ao longo da vida? Lembrava-se de suas três meninas, Maria, Amélia e Adela. Todas haviam brincado com suas “bruxinhas”, que tiveram papel importante em suas infâncias e adolescências solitárias e carentes, foram confidentes e companheiras nas horas de angústia. Todas as três tinham sido mães. E na vida delas sempre houvera um anjo... Chica sorriu ao terminar a boneca. Esta era sua... Pela primeira vez. Abraçou-se a ela, deitou, e cerrou os olhos. Não sabe quanto tempo ficou assim, cochilando. Despertou com uma mão quente sobre a sua testa. Ao abrir os olhos, o médico de plantão, loiro e alto, estava de pé ao seu lado.