Apolinário, segunda versão

Apolinário acordou mais cedo do que era costume. Pegou sua maleta elegante e saiu a esvoaçar o sobretudo em direção à parada de ônibus. Dias atrás, esteve desolado. Amassou o carro ao escolher entre uma árvore e um bêbado que havia saltado à pista. Um remanescente da boemia da madrugada anterior. Por fim, ficou com o xingamento do pinguço e com hematomas provocados pelo cinto e pelo airbag. Agora, tinha que sair mais cedo para conseguir chegar ao trabalho, às sete da manhã. Registrava a chegada à repartição, sentava em seu lugar e fazia o que tinha que fazer. Mas, lentamente, começou a sentir que o curso do rio retornava. Logo, chegaria a hora da reunião semanal. Depois, os relatórios a confeccionar de acordo com modelos corporativos. Mais tarde, uma refeição leve ao meio-dia. Sua dose diária de quatro xícaras de café no decorrer do expediente. Cumprimentos a desconhecidos, conversas sobre amenidades e, enfim, o retorno para casa, para seguir outras rotinas, que não o tardariam ao próximo dia.

Recebeu a ligação da seguradora. Ficou indignado. O seguro não atendia a sinistros por causa de embriaguez. Um mal-entendido grosseiro, não havia desculpas. Teria que comparecer a outra repartição. Chegando lá, após duas horas de relação íntima com uma poltrona azul, foi atendido por um senhor de óculos, bigode meticulosamente cuidado e uma conversa milimétrica. Precisaria de um novo plano de seguro. Reclamou em vão, ameaçou trazer um advogado, acabou por sair com uma nova conta a pagar. Teria que conversar com seu chefe, pois já estava atrasado para o turno da tarde.

Nas semanas seguintes, após idas e vindas ao escritório de advocacia, teria que aguardar por uma conciliação. Já era o fim do mês. Estava preocupado. Precisaria se afastar em férias, para evitar que a empresa em que trabalha pagasse multa. Teria, pelo menos, mais tempo para suas questões pessoais. Mas, será que encontraria algum tempo ainda de viajar e retornar com histórias e fotos a compartilhar com os amigos? Um mês era pouco para tanta burocracia. Ele estava a mercê da lenta rotina dos outros. Porém, mal esperava por voltar à sua.

Quando retornou das férias, assustou-se com as mudanças no trabalho. A crise estava à solta, em busca de presas fáceis, e ele precisava se cuidar para não ser o da vez. Acabou sendo remanejado de setor. Agora, ele cuidava dos formulários amarelos. E, não mais, dos azuis que eram destinados aos assuntos prioritários. E mesmo com suas qualificações, seus contatos e seu carisma, teve que aceitar o serviço inferior de atender diretamente ao público. Sem perceber, começou a maltratar a clientela, como se eles fossem os responsáveis por sua condição. Pouco tempo depois, recebeu a primeira das várias advertências que passaria a colecionar. Sua justificativa: os clientes não seguiam o protocolo. E não seria ele a ir contra as normas vigentes.

Passados dois anos de situações desagradáveis dentro e fora da empresa, Apolinário se recusava a admitir que, mesmo com toda a sistematização, as regras eram criadas para serem desobedecidas. Foi demitido e, depois de perambular por empregos cada vez mais deploráveis à sua capacitação, não conseguiu honrar suas despesas. Acabou debaixo da ponte. Teve que aprender a se virar apenas com a ajuda de alguns em situação semelhante, porque os Apolinários do andar de cima não queriam vê-lo sentado nas calçadas ou mesmo embaixo das marquises, em dias de chuva. Ainda assim, ele acreditava que existia uma ordem, um desígnio superior que lhe estipulara um protocolo mais rígido. Era assim para ele, como também para toda a humanidade. Toda a Terra, os outros planetas, os sistemas, tudo seguia uma ordem.

Alguns milhões de quilômetros dali, um pedaço de rocha havia se desgarrado e, de alguma forma, no bilhar cósmico, seguia em direção ao planeta, onde Apolinário assistia inconformado à notícia, nas vitrines da loja de eletrônicos. Os eventos seguiram-se a cada dia mais trágicos. No início, ainda existia certa civilidade. As prateleiras dos supermercados começaram a esvaziar cada vez mais cedo. Havia um misto de peregrinação às diferentes igrejas, mas ao mesmo tempo, a selvageria aumentava. Durante as noites, coquetéis molotov batiam na porta de alguns templos. A força policial passou a agir violentamente, pela madrugada, enquanto que as autoridades discutiam as responsabilidades dos governos sobre as missões para desviar a rocha. Os cidadãos tentavam fazer a vida seguir o mais normal possível. Houve até aqueles que preferiram negar o infortúnio. E Apolinário teve que aprender a se esconder da violência. Às vezes, o melhor era se agrupar e se perder entre os inúmeros miseráveis que pernoitavam pelas ruas. Em outras ocasiões, um esconderijo inusitado era a escolha certa. E até mesmo na desgraça, há quem encontre um amigo. E foi assim que ele conheceu o velho Apolônio, maltrapilho experiente das ruas. E com essa amizade, conheceu também a bebedeira, para amortecer dores físicas e emocionais.

Certa noite, enquanto atravessavam a Alameda Prado Almeida, cujo nome homenageava um esnobe político recém suicidado. Nesta via também honrada pelo meretrício, Apolônio, o velho, demonstrou ainda certa vitalidade ao lutar contra outro miserável que havia se incomodado com Apolinário. Parece que o conhecera nos tempos de repartição. Queixava-se ainda do mau atendimento e dizia que Apolinário era um infiltrado ali, um burguês decidido a queimar eles, os da rua. O sujeito antes de ser nocauteado, teve tempo de perfurar o velho. E para evitar novos maus entendidos, os dois amigos atravessaram um cruzamento e despareceram pela via perpendicular. O velho, com a calça ensanguentada desde a virilha, tropeçava e tinha que ser arrastado por Apolinário. Não demorou para ficar pálido, tão branco que até a sujeira do rosto não conseguia esconder. Encontraram uma árvore que se inclinava sobre um muro e deixava certo sombreado, propício para um esconderijo temporário. Permaneceram os dois atrás da árvore e ali adormeceram, ainda sob o efeito da pinga.

Na manhã seguinte, acordou assustado. Seria apenas um pesadelo tudo aquilo? Mas, ao olhar para sua camiseta encardida e o odor que desprendia de si, estava de volta. Tentou despertar o amigo. A pele gelada, os braços endurecidos. Mas algo a se mexer por dentro das calças, entre as pernas. Um volume se agitava por debaixo do pano escurecido pelo sangue. De repente, um guinchado. Chutou o local e por uma das aberturas das calças saíram duas ratazanas ensandecidas. Com o susto, levantou-se e em desequilíbrio, desceu a calçada em direçào à rua. No mesmo instante, pneus berraram pelo asfalto e um carro amassou-se na árvore onde ele e o amigo estavam. Subitamente, um Deja Vu. Algo despertou dentro de Apolinário. Realmente havia ordem em tudo. Ele era a causa de sua própria desgraça. E agora, outro de si estaria ali no carro, temporariamente inconsciente. Ao redor, os cantos dos pássaros. Ruídos urbanos costumeiros ao longe. Estariam todos bem, então. Resolveu examinar seu outro eu, ainda preso ao airbag.

- Ei! - Gritaram a meia quadra dali.

- Olha, lá! O filho da puta tá querendo se aproveitar da situação. - Esbravejou outro que tinha acabado de sair de um bar.

- Ladrão! Pega ladrão! - Uma senhora alertou, ao atravessar o gradil de sua casa.

Logo, quatro sujeitos, de diferentes compleições físicas surgiram pelas calçadas e pela via, em direção a Apolinário. O miserável, com os olhos esbugalhados, levou ainda alguns segundos para decidir a rota de fuga. E, enfim, saiu em disparada, seguido pelos justiceiros.

Antonio M A Menezes
Enviado por Antonio M A Menezes em 02/02/2020
Reeditado em 05/02/2020
Código do texto: T6856690
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