Tempo [verídico]

Fiz sinal. O ônibus, que se afastava lentamente, grunhiu os rangidos do freio, fazendo a velocidade reduzir-se. As portas abriram, o motorista gentil deu um aceno apressado com a cabeça. Subi num pulo só, tateando pelos bolsos estreitos do jeans à procura do cartão magnético de passes. Passei pela catraca, e pela primeira vez tive um vislumbre melhor do automóvel e seus passageiros. Estavam quase todos os lugares ocupados, exceto por uma velha que resolveu sentar-se na poltrona do corredor, obstruindo a passagem com seus joelhos descarnados. É que vou descer logo, disse. Olhei ao fundo. Dois lugares vazios, as duas últimas poltronas. Tive que acelerar o passo, havia mais pessoas atrás de mim empurrando-me, como se disputassem silenciosas o mesmo lugar. Por segundos, eu seria o vencedor.

Passei de fininho por uma mulher cuja cabeça pendia, adormecida. O lugar que eu pensei estar vago ao meu lado estava ocupado por um indivíduo abaixado, que pegava algo no chão, escondendo-se atrás do encosto do banco do passageiro da frente, oculto aos meus sentidos até então. Sem cerimônias, sussurrei, Licença. O rapaz se assustou e olhou para mim. Sentei.

Tal foi a minha surpresa – eu estava olhando para mim mesmo. O indivíduo sentado com as mãos cruzadas sobre a mala no colo vestia malha vermelha, como a minha. A calça, igual. Ambos nossos calçados pretos, idênticos. O cabelo preto, meio descabelado, como o meu.

Olhou-me por uns segundos, tão perplexo quanto eu. Na realidade, sou incapaz de avaliar qual foi minha expressão. Nem quais as mil descargas que se passaram nos meus poucos neurônios. Era eu, as mesmas roupas, o mesmo olhar perplexo. Esboçou um sorriso tão breve quanto uma vida e virou-se para a janela.

Observei de canto de olho. As mãos, iguais as minhas. Estávamos com a mesma postura, a mala sobre o colo, tamborilando a mão esquerda sobre o joelho. Eu com 14 anos, sentado do meu lado, indo sabem lá os ventos para onde. Até o modo de ver sem mover a cabeça era o mesmo. Quantas coisas queríamos perguntar, saber. Se era o futuro que havia se antecedido ou o passado que se atrasou. Quem precisava ensinar o que para quem? Qual a lição embutida nisso?

Passamos mais de 6 pontos olhando para nossos pés, com ligeiras espiadas naquele outro do encontro fabuloso. Levantei. Foi o único momento que pude olhar nos olhos dele, nos meus olhos aos 14 anos. Fui me esgueirando pelas almas penduradas pelos braços, sussurrando passagem. Cheguei até a porta. Olhei para trás, ele havia levantado. Ambos com a mala no ombro esquerdo. Apertei o botãozinho laranja gorduroso. Pensei em segui-lo, ver aonde ia, aonde morava. Mas temi que fosse em direção a minha rua, na minha casa. Seria fabuloso demais, mas não estava preparado.

Desci um ponto antes.

Fosse, talvez, daqueles mistérios que nos fazem sorrir, ao passo que nunca vamos descobrir como surgem ou como se resolvem. Apenas nos felicitamos por sua existência, naquele ônibus que não era para eu subir. Mas subi. O que isso quer dizer? Não posso responder.

Apenas sei que era um dia quente, um sábado abafado de outubro, quando não havia nenhum pássaro no céu, eu não havia almoçado, havia uma brisa agradável no ar e a tarde seria longa.