Valium

Dona Lúcia Glace, mais conhecida como “Lu”, era uma pessoa pouco iluminada. Aluna de Relações Públicas, pouco tinha tempo para os dois filhos e o marido, e vice-versa. Era casada e morava numa mansão qualquer, em um gueto qualquer.

A casa dos Glace seria melhor imaginada se pensássemos em um dormitório, já que ninguém passava a maior parte do tempo lá senão dormindo. O filho Nero Glace, de três anos, e Mara Glace, de exatamente duzentos e vinte e dois dias de vida na ocasião passavam a maior parte do tempo em um semi-internato particular, que atendia pais milionários e desesperados, os quais não conheciam um lugar melhor para se livrarem de seus filhos pequenos pela maior parte do dia.

Nero tinha um filhote de cachorro apelidado de Pedro. Nero podia brincar com ele a noite inteira, a ponto de ficar cansado o suficiente para ir dormir. Lúcia achava muito prático o fato de não ter que fazer seu filho dormir forçadamente. Às vezes, Lúcia se pegava imaginando o porquê de o cachorro parecer não gostar muito de Nero, mas seu pensamento era logo substituído pela preocupação sobre qual vestido iria usar no dia seguinte.

Mas neste dia foi diferente. Minutos após o jantar, Nero chegou bravo para perto de sua mãe, que procurava alguma peça em seu closet como alguém que folheia um arquivo gigante, a queixar-se:

- Lu, o Pedro quebrou!

- Ah!

- Quero outro.

- Sim...

- Na verdade, eu queria que trocasse por um outro igual.

Os olhos de Lúcia ficaram abertos por muito tempo, o maior tempo de sua vida. Sentiu os olhos arderem e então piscou lentamente. Agradeceu a Deus por que havia sido servido suco de maracujá no jantar, e então respondeu:

- Nero, não há outro igual.

- Então, conserta ele!

- A pilha é única.

Nero saiu do quarto de sua mãe sem dizer palavra e foi procurar seu pai que talvez estivesse em casa, ele não pretendia desistir. Pelo menos foi assim que Lúcia entendeu.

Quando Lúcia terminou de separar as roupas para usar no dia seguinte, dirigiu-se ao quarto para guardá-las no cabideiro e fazer uma pequena lista de roupas que faltavam e que deveria comprar com extrema urgência. Porém não viu que havia um cão morto largado no chão, ela sequer já havia visto um chão, não sabia do que era feito e nem que cor possuía um chão. Tropeçou e caiu de costas, pôde sentir nos pés uma coisa peluda, endurecida e gelada que deduziu ser o falecido Pedro. Mas não era só isso que a exasperava, mas sim um turbilhão de sentimentos que passava por sua mente.

Lúcia não soube calcular ao certo quanto tempo passou ali deitada, mas as impressões foram nítidas e profundas. Pela primeira vez as suas mãos, envoltas com luva de silicone, haviam tocado uma superfície tão lisa e gelada quanto o chão. Recusou-se a ver, apenas tateou.

“As pessoas temem aquilo que não conhecem”. Lúcia sentiu como se um compressor de carros a esmagasse, e soltou um grito agudo que apenas ela ouviu. Então subitamente percebeu que tinha de se levantar. Então se sentou e se ergueu.

Decidiu que iria pedir ao Sr. Glace que pedisse a governanta, que por sua vez pedisse a babá para deixar Nero de castigo no dia seguinte, sem ir para o semi-internato. Além do mais, não se pode deixar cachorros mortos espalhados pela casa.

Lúcia então se dirigiu à biblioteca, pois lá o Sr. Glace costumava ficar após o jantar, porém não o encontrou. Foi até a sala de estar e também não achou. Depois de muito tempo ela já havia procurado por todos os cômodos da casa – com exceção da cozinha – e não havia visto ninguém. Por fim decidiu ir à cozinha. Também não havia ninguém lá. Nenhum empregado, simplesmente ninguém.

Em cima do granito azul da pia jazia algo que deixou Lúcia completamente transtornada ao ver. Ficou lívida de horror e sua face tornou-se branca como neve. Sua mente estava estuporada e estava prestes a sofrer um colapso.

Com muito esforço, Lúcia conseguiu correr dali para livrar-se do que viu. A tentativa foi frustrada, pois a coisa a perseguia, corria atrás dela como um leão decidido a matar sua presa. Correu por todos os cantos da casa a procurar um esconderijo seguro, mas isso a casa não podia oferecer.

Correu tanto e o tempo passou-se tanto que quando Lúcia se deu por si estava novamente na cozinha, contemplando o seu carrasco novamente, como quem espera a corda da guilhotina ser cortada. Eis que a lâmina desceu.

Lúcia novamente estava caída no chão, mas desta vez não estava de costas, seu rosto estava colado ao chão, grudado, eram agora unha e carne. Ela esfregava os seus dedos finos pelo chão liso e gelado da cozinha. Finalmente ela havia compreendido: agora ela era o chão, pisoteada por sua fraqueza e mediocridade.

O prato com restos de macarrão instantâneo reinava imponente naquele cenário torto, aquilo sim, era o símbolo do fim de uma Lúcia vencida.

Dennis du Toulouse
Enviado por Dennis du Toulouse em 19/11/2007
Código do texto: T742726
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