Cercados

Essa história é sobre uma moça.

Uma moça de branquíssima pele, como se tivesse sido banhada em neve e farinha logo após a sua vinda ao plano terreno. Membros magros que manifestavam visíveis ausências de fibras musculares desenvolvidas. Cabelos longos, indo até a localização de suas vértebras lombares. Eram tão vermelhos quanto o pôr-do-sol. Esverdeados olhos com tonalidade esmeralda.

Morava num extenso campo. Os baixos gramados eram tão homogêneos quanto um céu completamente limpo. Não havia nenhuma estrutura à vista que bloqueasse a sua visão do horizonte, com exceção do seu casebre. Um casebre tão pequeno e tão simples quanto a sua humilde pessoa. Uma única porta, duas janelas e uma chaminé. Paredes pintadas de um fraco amarelo, telhados marrons feito barro e chaminé de vermelho claro. Nas suas proximidades, haviam 9 doces ovelhinhas, de pelugem não muito espessa, tão branca quanto a inocência em seus corações. A moça cuidava e vigiava aquelas ovelhinhas como se fossem as suas filhas. Eram os seus bens mais preciosos. Seus tesouros, A força motriz do seu andar, seu respirar, seu existir e seu viver.

Em uma certa manhã, durante um doce e fresco raiar do sol, a moça ouviu uma voz. Parecia um alto sussurro, quase um falar normal, próximo do seu meato acústico.

“Proteja-se”

Não podia saber se aquilo era um conselho ou uma ordem. Nunca ouvira aquela voz em toda a sua vida. Não reconhecia aquela voz de lugar nenhum. Vivera sua vida durante a sua vida inteira. Não ouvia nenhuma voz a não ser a sua própria. Decidiu, porém, dar razão àquela voz. Estava sozinha com suas ovelhas. Apesar de nunca ter encontrado uma única ameaça em sua vida, tomou aquele dizer com carinho. Ficaria devastada caso algo acontecesse com suas queridas ovelhinhas, ou algo que inviabilizaria a possibilidade de cuidar de suas ovelhinhas.

A moça decidiu construir um cercado. Um simples cercado, feito de finas e longas tábuas de madeira amareladas. Não era uma densa e fortificada proteção, tendo em vista os grandes espaços entre os pedaços de madeira e a resistência destes, porém era uma proteção. Terminou a construção dele com um simples portão. Um portão que poderia reter toda a maldade exterior e dar boas vindas à bondade exterior.

A moça estava satisfeita. Achou que estava segura, assim como as suas ovelhas. No entanto, mesmo tendo estabelecido um limite, tornou-se alheia ao mundo exterior. O medo paralisava o seu desejo de voltar para lá. Suas ovelhinhas não podiam mais pastar livremente. Encontravam-se presas. A moça se entristecia com o descontentamento delas, porém a preocupação com a segurança delas afundava suas pernas no suave solo.

Aquela voz voltou a falar com ela. Com um tom mais alarmante e um volume ligeiramente maior, ela falou:

“Não é suficiente. Tem que ser mais denso. O mundo do lado de fora é muito perigoso. Proteja-se.”

A ansiedade percorreu o corpo da moça feito uma dolorosa descarga elétrica. Sentiu a sua coluna congelar. Olhou o cercado que havia contruído e o enxergou como algo inútil, insuficiente e fraco. Olhou para os calmos e homogêneos pastos e campos longe de seu casebre, e mesmo que não visse o mal caminhando sobre eles, a sua mente não mentia ao dizer que ele estava lá, escondido. Poderia sair a qualquer momento. Andar em sua direção. Machucar suas ovelhas. Machucá-la.

No auge do seu desespero, a moça despedaçou o cercado e portão com as mãos. Precisava de uma proteção mais densa o quanto antes. Podia ver, pelo canto do olho, o olhar assustado e o lento recuar de suas peludas filhinhas. Estavam apavoradas com a selvageria com a qual a sua mãe desfazia o cercado de madeira que havia construído com tanto carinho. Porém, ela não se importava. A segurança dela e de suas ovelhas era a sua maior prioridade.

Um por um. Empilhava os tijolos vermelhos, um de cada vez. Deitava cada um deles sobre uma densa camada de cimento. Cama esta posicionada sobre outra fileira horizontal de tijolos. E esta sobre outra cama. E outra fileira. E outra cama. E outra fileira. E outra cama. E outra fileira. E outra cama. E outra fileira. Estava construindo um muro de tijolos. Mais robusto e mais firme que o simples cercado de madeira.

Terminada a construção do muro, a moça sentiu o manto da segurança cobrir sua frágil e esbranquiçada pele. Enfim, estava à salvo, juntamente com suas peludas filhas

Sentia-se também, no entanto, isolada. Como se sua casa estivesse existindo em uma realidade diferente do mundo exterior. Sua própria realidade. Seu mundinho particular. Longe de todos os perigos existentes e imagináveis. Longe de todas as dores. Invisível perante qualquer perigo que possa considerar ela e suas filhas como alvos.

Ela, todavia, não poderia mais sentir o gracejo do vento dos campos. Não conseguia mais receber saudações dos esverdeados gramados dos abertos campos. Suas ovelhas lamentavam, algumas chegavam até a chorar pelo fim da tão doce liberdade de pastagem pelos campos.

Não era hora de lamentar. Não era hora de chorar. Optava por estar triste e protegida do que feliz e indefesa.

A moça se sentia encarcerada. Encarcerada, porém segura. Sentia-se intocável. Invisível. Protegida. Isso até aquela voz voltar. Ela voltou e sussurrou, dentro de sua cabeça:

"Não confie em suas ovelhas. Elas querem te machucar. Tranque-se dentro de casa. Você estará segura lá dentro."

A moça olhou para cada uma de suas 9 ovelhinhas. Cada uma delas a olhou de volta com expressões abatidas. Abatidas por terem abandonado involuntariamente a liberdade de andarem e pastarem. Olhavam para a sua mãe, indagavam sobre o motivo dela ter prendido elas no lado de dentro daquele muro. Não entendiam as palavras que saíam de sua boca, muito menos as palavras dentro de sua cabeça.

A moça não tardou em realizar a sua ação. Ela correu até a porta de sua casa. Entrou nela. Trancou-a. Fechou as janelas. Puxou as cortinas. Isolada de suas filhas, estava.

Ouviu algumas batidas na porta. Alguns balidos ocorriam de forma alternada. Outros ocorriam juntamente às batidas. Suas filhas a chamavam. Clamavam por sua mãe, preocupadas. Queria saber o problema que afligia a sua mãe. Ela, no entanto, não queria vê-las. Via o gesto de carinho de suas filhas como uma armadilha. Uma armadilha que o mal usada para adentrar a sua casa, sua última estrutura de proteção. Não confiava mais em suas filhas. Sentia a maldade dentro delas, e não mais o amor.

Ela sentou sobre uma cadeira em sua cozinha. Solitária, começou a chorar. Cobriu os olhos com as mãos. Em meio à escuridão, sentiu as lágrimas caminharem sobre as mãos. Havia sacrificado tanto por sua segurança. A luz, os campos, o vento, a liberdade, suas filhas… O que mais precisaria sacrificar para poder se proteger?

"Que bom que você está aqui junto de mim. Agora podemos ser amigas"

A moça retirou as mãos dos olhos. A escuridão persistiu. Passou a ouvir um intenso som agudo. Gritava, mas não podia ouvir a si mesma. Um aperto no peito. Falta de ar. Pulsos formigando. Coração em ritmo acelerado.

A moça foi aprisionada pela sua própria paranóia.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 15/04/2022
Código do texto: T7495873
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