A Floração dos Corpos

Havia estado a cidade coberta de uma neblina densa e bastante opaca durante vários dias, dos quais o cheiro de podridão empestava o ar.

Na realidade era um mês de inverno, ou não seria de inferno? Que o País passava, pelas condições desumanas da população, mas os dias não tinham sido de frio ou calor. Foram simplesmente dias anódinos, ou o quê venha a ser isso. Certo é que, naquela manhã, quando a neblina sumira, numa casa antiga de um bairro pobre; numa árvore antiga de um quintal, até bem cuidado, floresceu em sua copa enorme, muitos corpos humanos, como se fosse a coisa mais natural possível. Alguém informou à Polícia Federal e os Lupin, Poirot, Sherlock e RomeuTumas da vida começaram a chegar e ficaram horrorizados com o dantesco da cena: um certo jatobá, que ninguém dava valor, amanhece coberto de corpos mutilados e não-sangrentos sobre os galhos, como numa lixeira, e nenhum no chão. Como surgiram os corpos ali? De quem seriam? Quem os trouxera? Como foram colocados lá em cima, sem ninguém tê-los vistos? Qual a mensagem embutida na ação? Quem os trucidaram? Ninguém ficou sabendo; mas é melhor contar como foi a estória mesmo, sem adiantar mais nada.

A árvore foi isolada, a casa foi isolada, isto é, o local foi interditado para qualquer aproximação de quem quer que fosse, exceto, claro, de dois joão-ninguém que trabalhavam numa delegacia qualquer de algum lugar. Um deles fui eu, que conto o que aconteceu naquele dia, conforme nós apuramos.

Ficamos eu e meu ajudante, olhando para cima, tentando elucidar o enigma da floração dos corpos no jatobá. Eram corpos mutilados e, praticamente, mumificados, poi não apresentavam sangramento algum. A terra batida em torno do jatobá estava limpa de pisadas, sem ter sido varrida há dias. O acesso de veículos era impossível pelos muros altos em torno dela, embora a árvore ficasse próxima a um dos muros separando um grande terreno baldio, também murado e sem marcas de pisadas ou de tráfego de veículos. Então não seria essa a razão do mistério: só podiam os corpos terem sidos colocados pelo ar, de helicópteros, em várias viagens; em volta os vizinhos nem a cidade ouviu qualquer barulho desses voantes, durante os dias neblinosos. Outra coisa intrigante era: se os dias foram de neblina total como se conseguiu colocar tantos corpos lá em cima e nenhum em baixo ou nas cercanias? Resolvemos contar quanta gente havia lá em cima, mas não podemos trepar no jatobá para não sermos suspeitos depois, desobedecendo ordens recebidas. Esqueci de dizer: há uns dez metros da árvore havia uma construção, como um depósito de fundo de quintal, ligado aos muros do terreno, e subimos no telhado dela. Eu contei treze corpos, meu ajudante, dezoito, mas parecia TER mais, pois era difícil não se atrapalhar nessa aritmética. Havia corpos uns por cima de outros e entrelaçando pernas e braços. As expressões dos rostos eram de pavor cadavérico (claro!) e pareciam da mesma cor das roupas, um bege barrento, empoeirado de estrada. Ao vê-los de perto a gente sentia que não estavam mumificados nem sangravam e continham maciez naquelas carnes cobertas e mortas; o cheiro pútrido era adocicado e decrescente, quase se habituando aos nossos narizes. Víamos que tinham morrido s de pouco e não sangravam nada. Será que tinham sido envenenados? Ou secados num micro-ondas (gigante, né!?) Ou aspergiram pó de arsênico (quê que é isso?) neles? (- Mata rato, burro!). Quando estávamos sobre o telhado, lá em baixo das casas dos terrenos vizinhos, vimos que operários da telefônica, com capacetes azuis, faziam instalações de postes e puxavam fios grossos duma rede elétrica que eles mesmos estavam instalando, por causa do racionamento de energia.

O galpão em que estávamos, não tinha observado antes, era de madeiras pregadas umas sobre as outras irregularmente, e crescera uns dois andares em baixo de nós e não havia escadas para descer, mas conseguimos sair de lá com muito medo de cair. Meu ajudante desceu para o terreno vizinho, mas para o lado do jatobá. Estando só na área fiquei pensando no impacto da notícia e daquelas imagens no mundo todo, levadas pela imprensa catastrófica que temos. Lembrei-me da chacina de Vigário Geral, da Candelária, de Carandiru e, agora as da floração do jatobá. Não bastavam as crises da politicagem no Senado, o esconde-esconde do racionamento de energia, com promessas de apagões para abafar as sujeiras e corrupções políticas nos órgãos públicos? Não seria importante, já que a imprensa não fora ainda informada, acabar logo com esse engodo? Por quê me deixaram sozinho aqui? Na certa não estariam esperando qu’eu fizesse alguma coisa, como funcionário da Segurança Nacional?

Então, matutei de como abafar a situação insólita que surgiu. Peguei um graveto desfolhado que encontrei e comecei a surrar o pé de jatobá com toda a sua ‘floração macabra’. Os corpos iam caindo e eu os juntava e os macerava num volume de corpos que foi se comprimindo, se compactando como num disquete, e se reduzindo em um bloco amorfo. Ao final da tarde estava formado um bloco igual uma caixa comprida de geladeira, na cor do papelão, igual à cor dos corpos, bege-caqui. Nem vacilei, no galpão de madeira havia um armário e arrastei o bloco para lá. Em seguida fechei a porta e voltei ao telhado, subindo pelas tábuas das paredes, procurando meu ajudante. Lá de cima não o vi, mas acompanhei o trabalho dos operários instalando os postes e fios grossos (de alta tensão? Talvez, pois:) meu chefe, o RomeuTuma, chegou me procurando lá em baixo. Olhou para a árvore e me avistou no telhado.

- Que aconteceu? Onde estão os corpos? Que faz aí em cima?

Desci rápido, ao perceber que ele estava nervoso.

- Quem levou os corpos – continuou, apavorado.

- Eu os compactei e escondi lá no galpão. Resolvendo o caso

- ele não acreditou.

- Como, se você não tem autoridade?

- Venha cá, chefe! – peguei a chave do galpão e mostrei a ele o que tinha feito para salvar a Nação perante o Mundo, já que a imprensa ainda não sabia.

- Só por isto é que vocês me prenderam? Por tentar fazer melhor o meu trabalho de funcionário público federal? Tenham dó! Eu também sou um Político Federal Concursado; Menor, é certo... mas UM Político! Me respeitem!

Yvaniokunha

YvanioDaKunha
Enviado por YvanioDaKunha em 09/12/2007
Código do texto: T771049
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