O ERÊ

Este conto é baseado em experiências verdadeiras.

Contudo, tudo no mundo é como a gente crê, pois ele é construído em nossa mente. Tem gente que vê e não enxerga; tem gente que precisa crer para seguir em frente. De modo que verdade e ilusão são coisas muito diferentes e ao mesmo tempo muito semelhantes, e, em igual medida existem em nossas vidas.

Ou seja, é como ensina Carlos Drummont de Andrade:

" POEMA DA VERDADE

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os dois meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram a um lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em duas metades,

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

As duas eram totalmente belas.

Mas carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia."

PARTE UM - A PETA

Certa vez, quando eu era molecote, voltava de uma caçada de passarinhos no sol da tarde, com estilingue no pescoço e nhambu no embornal, quando passei em frente à casa de dona Divina, mãe da Nair, minha amiga. Eram nossos vizinhos, negros e se ainda me lembro, baianos de Brumado. Eles praticavam o jarê, tinham um terreiro na frente do quintal e dentro da residência, que ficava aos fundos, um "quarto dos santos" .

Já falei deles aqui no conto "Capitã Bostinha", e lá explico tudo, inclusive que jarê é uma crença de encantamento, tipo candomblé, com usos, costumes, crenças, músicas, danças, perfumes e vestimentas.

Pois bem..., vinha caminhando no rumo de minha casa e vi dona Divina pela janela, ocupada com alguma tarefa. Parei, e pedi a ela:

_____ Boa tarde dona Divina. A senhora poderia me dar uma caneca d'água?

Ela demorou-se um pouco lá dentro e saiu com duas canecas d'água fresca, tiradas de uma moringa de barro branco.

Peguei uma das caneca e bebi com apressadas goladas. Devolvi o recipiente vazio, agradeci e fiquei a olhar para ela um pouco confuso:

_____ Obrigado novamente Dona Divina. Já matei a minha sede. Não vou beber dessa outra caneca.

Ela respondeu:

______ Essa outra caneca é para o seu amigo, sorridente e espoleta, que o acompanhava... vinha com você pelo caminho, alegre e saltitante...

Como diz a letra da música "Gabriela"... "eu nasci assim, eu fui sempre assim e serei assim...".

Não iria perder aquela oportunidade de ouro...

Por conseguinte, menti:

______ Como assim? Não vê? Ele está aqui ao meu lado ! - e virando-me para o lado esquerdo e ordenei: - Pegue da caneca erê.

Dona Divina teve um tremor nas mãos, exclamou algo que não entendi, mas que soou como "baracô erê", derrubou a caneca d"água e escafedeu-se para dentro da casa.

No futuro, quando conheci um verdadeiro êre, julguei que era uma " peta" de vingança da dona Divina.

PARTE DOIS - O ERÊ

Vamos seguir com os fatos...

Diferente do que muitos pensam, (em especial aos que assistem os filmes de horror dos norte-americanos), o desconhecido, o fantástico e o encantamento, na cultura afro-brasileira, não são assustadores.

Não existem "demônios querendo nos matar" e que usam de violência e assombros. Nossas entidades não são dotadas de maldade e terror; são seres bons e brincam conosco para nos ensinar coisas da vida e aprimorar as virtudes que já existem dentro de nós, principalmente a empatia e o sentimento de humanidade, com a finalidade de nos preparar e conduzir para uma vida em sociedade melhor e mais feliz.

Era assim que, curioso, e com todos os sentidos aguçados, eu me sentia quando assistia as celebrações do “Jarê”, com suas músicas, cantos, danças, incensos, roupas coloridas. Era um aprendiz a circular por todos os cantos do ambiente, observando, absorvendo, sem medo algum; apenas encantado.

Certo tarde, da minha casa, já ouvia os tambores, atabaques, sineta, e cânticos da cerimônia de jarê, versos esparsos que vinham ao sabor do vento:

" Ê-ê-ê-ê-ê-ê

Ê-ê, ê-ê-ê

São Cosme e Damião, Doum

São Cosme e Damião, Doum"

Sai do meu conforto, atravessei o quintal, passei por baixo da cerca de arame e adentrei num terreno onde se aglomeravam pessoas fora do terreiro de celebração, apenas conversando, rindo, socializando, comendo doces de abobora e paçocas de amendoim acondicionados em pequenos vasos de barro. Na entrada do terreiro de celebrações, parei na porta e procurei por minha amiga Nair.

Um redomoinho de vento, vindo não sei de onde, levantou uma sarabanda de poeira, folhas e pétalas que repousavam no solo. Aquele movimento demonstrava que tudo palpitava, tinha vida e sentido. Nas minhas narinas o cheiro de incensos era forte, e nos meus ouvidos ressoavam atabaques e as cantoria dos fiéis:

"Bota a mesa

Chama a turma

baracô irejê, erê, erê"

Olhei para o lado e havia um homem moreno adulto, barbas cinzas e aparadas, olhos brilhantes e sorriso maroto, que sentado numa banqueta repetia em voz de menino a canção:

"Abaracô irejê, abaracô, ê, ê

Abaracô irejê, erê, erê

Abaracô irejê

Abaracô irejê, erê, erê..."

A cantiga era agradável e interminável como um mantra, os versos davam voltas, repetiam-se, sobrepunham palavras com variações de tonalidade de vozes de múltiplas origens, e sempre o atabaque, os tambores e os sinos no acompanhamento.

Foi nesse momento, ao cruzar a porta do terreiro com o quintal, que o homem me capturou com o olhar de hipnose.

Perguntou-me numa voz de criança, um menino muito novo:

_____ Estás preocupado com o quê?

A voz infantil daquele homem adulto não me assustou, longe disso, fiquei a fitá-lo deslumbrado.

Era um êre.

Entidade do jarê que incorpora em um adulto (normalmente do sexo masculino), e que volta e meia é invocado e aparece na celebração. Até então, só ouvira dizer...

Para quem não sabe "Erê" é uma entidade dos cultos africanos. É negro, (embora no momento estivesse incorporado em um adulto mestiço). Nas imagens e desenhos, ele tem a figura de uma criança.

No culto das celebrações é ele quem faz a intermediação entre as entidades superiores e o neófito.

O iniciando aprende, a lapidar o próprio caráter e conquistar os dons da humanidade e da empatia.

A palavra erê significa "brincar".

Daí ele ser conhecido por “fazer brincadeiras”, e também "boas ações ou favores".

O Erê conhece todas as preocupações das pessoas e dos iniciados, e os auxilia na medida das suas possibilidades.

Um Erê sabe tudo, mete-se em tudo, mas não pode fazer nada sozinho.

E, principalmente, (guarde bem este aviso), ... um erê nunca esquece !

Ele repetiu a pergunta:

_______ Está preocupado com o quê?

Embora criança, eu sabia que as coisas não andavam boas lá em casa. Todo jantar repetia-se a sopa de fubá de milho, com muita couve e poucos pedaços de carne. Meu pai trabalhava até tarde da noite, ao final fazia e refazia contas e ia dormir preocupado.

Então pedi:

_______ Quero que as coisas melhorem lá em casa.

A entidade sorriu, e na mesma voz de criança que me indagou, respondeu:

________ Fique tranqüilo, é só uma fase... Durante a vida, sempre vão se intercalar fases boas com fases ruins. Daqui há um mês as coisas voltarão a ser boas. Vou ajudar e fazer o meu melhor para que isso aconteça. conte comigo... mas vou querer uma recompensa. Quero um pacote de jujubas coloridas...

"Quero uma recompensa", martelou em minha cabeça.

Um erê sempre pede algo em troca.

Acho que o hábito de "toma lá, dá cá" do jarê, , tem origem nos ritos católicos, tipo uma novena em troca de uma graça...

Um mês depois, sem que eu me desse conta, já dava para perceber que o clima tinha mudado em casa; meu pai estava satisfeito com os negócios e minha mãe mais tranquila com o futuro da família.

O tempo passou, quinze anos acho eu, passei pela adolescência e me tornei adulto, até me casei, fui morar longe e me tornei pai.

Voltei em visita à casa dos meus país e aproveitei para dar um abraço em minha amiga Nair.

Na casa dela dei de frente com o jarê em celebração, como nos tempos da minha infância.

Como da última vez em que estive lá, na porta do salão, havia um homem sentado numa cadeira. Era negro e estava sentado como um "cobridor" a guardar a porta. Pendia a cadeira para trás até esta encostar na parede e descansava relaxado.

No instante em que entrei ele disse-me na voz de menino:

_______ Cadê as minhas jujubas?

Dessa vez assustei. Ele me cobrava uma pequena promessa feita há mais de quinze anos !

Com o decorrer do tempo eu havia esquecido de cumprir a minha promessa.

Pirulitei-me dali e procurei um mercado onde comprei uma grande caixa de jujubas coloridas.

Voltei ao terreiro e o Erê estava no mesmo lugar, a sorrir alegre.

Entreguei-lhe os doces e ele agradeceu-me com uma mesura.

Abriu a caixa e feliz experimentou um pacotinho do doce com cores sortidas.

Depois, como se fosse dia de Cosme e Damião, distribuiu para as demais crianças do quintal, dando gritinhos de alegria, como um pequeno menino a brincar.

PARTE TRÊS - O VALE DAS SOMBRAS

Emanuel era quem dirigia a camionete pela rodovia Transbrasiliana, que liga de Porto Alegre à Belém, em pista simples, mal asfalto e cheia de caminhões.

A caçamba estava abarrotada de coisas para a fazenda. No banco traseiro levava as coisas mais delicadas e alimentos; por entre minhas pernas ia uma pasta com papéis e documentos a regularizar nos cartórios de Tocantins e Pará.

Ocorreu-me que nada daquilo era definitivo. Só tinham valor porque estávamos vivos.

O pensamento, um pouco sinistro, deve ter saltado á minha mente em razão do tráfico intenso, das ultrapassagens perigosas, de a todo instante cruzarmos veículos em sentido contrário, pesados e em alta velocidade.

Era estar no bico do corvo. Era confiar a fragilidade da vida em um fio de tinta da faixa amarela que separavam as pistas de rolagens.

Não sei porque, mas talvez para aliviar a tensão, contei a história do êre na minha infância.

Emanuel ouviu com atenção e sorriso.

E quando terminei disse:

_____ Também conheci um erê... mas em outras circunstâncias. Situação bastante trágica.

E confiou-me a seguinte história;

______ "No meio do caminho da nossa vida, nos encontramos numa floresta escura"; ... está na bíblia, não? Pois bem...

Certa vez aceitamos, eu e minha mulher, viajar com um casal amigo, para um fim de semana num rancho do Rio Tiete lá pelas bandas de Andradina.

________ Não sei bem se quero contar... foi tudo muito terrível. Contar é reviver, e não gosto de reviver o acontecido."

Pausou e ficou em silêncio. Não forcei. Ele que meditasse se queria reviver.

Ficamos em silêncio por um longo tempo."

De súbito, uma jamanta não consegue ultrapassar outra numa descida, e vem como descontrolada em nossa direção. Emanuel joga nosso veículo para o acostamento e num átimo a jamanta cruza com a gente como um bólido, fazendo o coração vir na boca. Por um triz... na vida, estamos sempre por um triz.

Como resultado do susto, Emanuel retorna à narrativa:

______ " Fui convidado, junto com minha mulher, a acompanhar um amigo a um churrasco, num rancho perto do Tiete. Era um sábado. Depois do encontro dormiríamos lá, almoçaríamos no domingo, passearíamos de barco e voltaríamos ao entardecer. Eu não conhecia quem seria o nosso anfitrião. Mas meu amigo que fizera o convide disse que eu iria gostar dele, por ser ele e a esposa pessoas pacatas, simpáticas e alegres. Esse casal possuía dois filhos moços, que comandariam a churrasqueira. Dois rapagões bonitos, educados, na faixa dos vinte anos. Aceitei o convite, fomos e, terminado o churrasco, ficamos a conversar, socializar, bebericar e a festejar a vida. Os dois meninos foram para dentro da casa e logo voltaram. Tinham tomado banho, colocado roupas novas e bonitas, e cheiravam a bom perfume. Comunicaram que iam voltar à cidade e participar de uma "balada". Despediram-se da gente, beijaram o pai e a mãe, pediram benção, pegaram o carro e sumiram na escuridão. De onde estávamos sentados eu vi os faróis traseiros a distanciar-se... e acredite em premonição... senti um terrível aperto no coração."

Já anoitecia e agora estávamos perto de Gurupi, onde depois de uma longa curva a BR torna-se uma reta monótona, com a pista cercada, pelos dois lados, de mata nativa, capim dourado, cerrado, árvores a se abraçarem lá em cima no topo, e a estrada, a formar um túnel com piso de asfalto negro e tendo, lá no final, a luz do entardecer. A luz que dizem, os que reviveram, existir na hora da morte.

_____ "Lá no rancho já tínhamos esgotado as conversas e começávamos a nos movimentar para ir dormir.

Foi quando lá fora, na noite linda e estrelada, as sombras começaram a se movimentar para se transformar em um terrível demônio.

Pela janela, e na escuridão, vimos o farol de um carro que se aproximava lentamente no interior da chácara onde se localizava o rancho.

Era uma hora muito tardia para uma visita.

O carro parou a alguns metros da casa, apagou os faróis, mas dele não desceu ninguém. Por algum tempo, quem quer que lá dentro estivesse, conversavam entre si.

Depois desceram três homens que se reuniram na frente do carro. Conversaram mais um pouco.

Aquilo atraiu o interesse de todos.

Os três homens caminharam juntos até a porta da casa. Não precisaram bater, pois ao chegarem o dono já os aguardava na varanda, preocupado. Não eram pessoas desconhecidas, mas também não eram amigos... eram voluntários.

Um deles parecia tomar coragem para dizer alguma coisa. Pigarreou e com a voz suave, como a se falar com um doente, disse:

______ "Seu" Enoque, infelizmente somos portadores de más notícias - a aparente formalidade antecipava más notícias. ... Seus filhos envolveram-se em um acidente de trânsito."

Doravante melhor diz o "Poema para a morte", de autor desconhecido:

"Num palco de horror venho me apresentar

onde tristeza me cerca e a solidão me assola.

Vejo um rastro de escuridão em meu caminho.

Não vejo sentido para continuar.

Vejo amigos e companheiros tombando

perdendo a dura batalha para a dor.

A morte vem se apresentar como a dama do pavor

não sei se a temo ou se a abomino.

Pois me tirou minha alma

ainda que não tenha levado minha vida..."

Mais tarde, muito depois, quando nosso casal de anfitrião já estavam nas mãos de maiores amigos e parentes, reunimos eu, o amigo que nos convidara e nossas esposas, para deliberar se ficávamos ou se iriamos embora.

Escolhemos ficar... pois fora Deus ou o destino que nos colocara naquele lugar em tão extremo momento.

Era domingo e o velório concorrido.

Muitos jovens, muitos amigos, muitos curiosos, muitos muita coisa, a velar por dois caixões floridos, colocados lado a lado, como lado a lado, os irmãos sempre viveram.

Não havíamos dormido e o sepultamento seria na última hora da tarde.

Dia longo.

Em certo momento, naquele ambiente lotado, onde imperava muito choro, muita angústia e muitas orações, meus olhos cruzaram com um senhor moreno, meia idade, desconhecido, mas que me lembrava alguém muito próximo. Sem dizer nada, parece que me passou a estranha mensagem de "aguente firme, vou precisar de você ".

Aproximava-se a hora do sepultamento.

O padre católico se posicionara entre as duas urnas e rezara um pequeno missal, acompanhado por músicas reconfortantes, espontaneamente cantada por todos; no final disse belas palavras de vida eterna e reencontro para os pais e para todos os presentes.

Os funcionários da capela fúnebre já se posicionavam com a tampa dos dois caixões.

Alguém deu um grito doloroso de desespero e desencadeara no público uma crise de choro.

Por que tudo nos toca?

O pai dos garotos mortos, que eu vigiava atento, transmudou a face e passou a expressar uma falsa paz e tranquilidade.

E, no meio do tumulto, foi vagarosamente em direção à porta da capela.

Pelo que percebi, ninguém se dava conta da fuga.

Decidi acompanhá-lo a curta e segura distância.

Esse pai, que antes estava em desespero, manteve a serenidade e saiu para a calçada e de repente começou a caminhar mais apressadamente, como se tivesse um destino certo.

Caminhou, creio agora, uns quatro quarteirões sem ser obstado por ninguém.

Chegou em um bar e restaurante fechado, o negócio da família. Retirou do bolso uma chave, com a qual abriu a porta.

Entrou e fui atrás.

Lá dentro estava escuro e quase frio.

Ele acendeu a luz que iluminou um ambiente arrumado, com cadeiras em cima das mesas.

Então, com voz firme, chamou:

______ Miguel... Gabriel... onde estão vocês seus vagabundos?

Foi até a geladeira, abriu e gritou:

______ Vocês ainda não colocaram as bebidas para gelar? Logo começará a chegar a freguesia e a bebida está quente. Onde vocês estão?

Era como se ele estivesse a conversar com os filhos em um dia normal de trabalho.

Ele foi mais ao fundo do estabelecimento, onde alinhadas e vazias, estavam as mesas de bilhar e pebolim.

O silêncio era denso, áspero, feria...

______ Miguel... Gabriel... não brinquem. Não se escondam. Hoje temos muito o que fazer...

Foi até os fundos, onde ficava outro balcão e mesas de jogos, para repetir:

______ Miguel... Gabriel... parem com essa brincadeira...

De súbito, pareceu readquirir a noção da realidade. Acocorou-se, depois recostou-se numa coluna de sustentação, colocou as duas mãos enlaçadas por cima da cabeça. E ficou assim.

A angústia do homem passara para mim, e continuei de pé a olhar para ele.

Repeti a pergunta que eu me fizera antes... por que carga de água tudo nos toca?

E , em voz baixa rezei um antigo poema de Carlos Queiros, no livro "Desaparecido":

"No ar azul da madrugada

virias logo se eu chamasse?

Encostarias Tua face

à minha face enregelada?"

Senti um suave perfume de lírio branco e vi ao meu lado o homem moreno que vira antes no velório e que me dissera "aguente firme".

Indaguei a ele, a mesma pergunta do poema.

"Encostarias Tua face

à minha face enregelada?

Ele respondeu numa voz de menino:

______ Só você tem a resposta. Nada posso lhe ensinar sem que você já não saiba antes... está dentro de si a solução para o que agora lhe aflige. Só é preciso coragem.

Cai de joelhos na frente daquele pai desamparado e seu olhar me perguntou:

"Encostarias tua face

à minha face enregelada?"

Em resposta eu o abracei e encostei a minha face na dele.

Seus braços me enlaçaram e se apertaram junto ao seu corpo.

Um som indefinido, vindo do passado que moldara a humanidade no homem, foi saindo da boca daquele infeliz; e se transformou num grunhido, num grito lazarento de dor infinita.

Nessa hora, ele colocava para fora, tudo o que lhe magoava.

Choramos juntos e durante muito tempo nossas lágrimas se misturaram em nossos rostos.

Até a véspera eu não conhecia aquele homem e agora servia de arrimo a sua vontade de seguir em frente.

Mais tarde relaxamos, levantamos e fomos ao banheiro lavar nossos rostos.

Antes, olhei em torno, e o erê tinha ido embora: cumprira a sua missão e não pedira nada em troca.

Voltamos serenos ao velório, onde estavam todos preocupados com nossa ausência.

Do velório até o cemitério o velho caminhou atrás dos dois filhos, amparando a sua mulher."

Emanuel terminara a narrativa.

Perguntei-lhe "por que choramos por quem não conhecemos?

Ele respondeu como Homero, o doce menino do romance "Comédia humana", de Willian Saroyan, a repetir a oração da empatia, lição recebida da mãe:

“Sempre haverá dor nas coisas. / Mas não é por saber disso que um homem deve desesperar. / O homem bom procurará tirar a dor das coisas. / O homem tolo nem mesmo o notará, a não ser em si próprio. / E o homem mau aumentará a dor das coisas e a espalhará aonde quer que vá./

Mas cada homem não tem culpa, / pois o homem mau, não menos que o homem tolo e o homem bom, não pediu para vir aqui / e não veio sozinho, do nada, e sim de muitos mundos e muitas multidões. / ... Ele e nós somos ele./

Nenhum de nós é separado de qualquer outro. / A prece do camponês é minha prece; / o crime do assassino é o meu crime.”

Havíamos chegado a Gurupi e Emanuel estacionou em frente ao hotel às margens da rodovia. Um "valet" saiu uniformizado lá de dento, e, numa voz infantil que não combinava com seu tamanho de homem adulto perguntou:

_____ Vão ficar muito tempo?

Olhamos um para o outro e dissemos juntos:

_____ Na vida ninguém sabe quanto tempo fica...

Relaxamos, sorrimos, porque agora, nós é que havíamos passado uma lição a um "suposto" erê.

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EXPLICAÇÕES SOBRE AS CITAÇÕES:

1. Poema de Carlos Drummond de Andrade - nada a acrescentar.

2. A frase sobre o "Vale das Sombras" está no livro "Inferno", de Dante Alleghieri.

3. Poema da morte não tem autoria certa (deve ter e eu não sei), mas circula pela internet.

4. Poema extraído do livro "Desaparecido", do poeta português Carlos Queirós (José Carlos de Queirós Nunes Ribeiro) - 1907/1949 - injustamente meio esquecido pelo público.

5. Oração da Empatia - O texto é diálogo da mãe com o adorável filho Homero, personagem principal no livro "Comédia humana" – Capitulo XXVI , do escritor armênio/americano Willian Saroyan (1908/1981). Levada ao cinema em 1942, este livro ganhou o prêmio de melhor roteiro (naquele tempo denominado de "melhor história original"), e Mickey Rooney levou a estatueta de melhor ator.

Saroyan foi um autor humanista muito popular nos anos 1950/60, sua peça "Nick Bar", ("The time of your life", ou "O tempo de sua vida"), inaugurou o Teatro TBC e a peça foi representada por Cacilda Becker e Paulo Autran, com direção de Adolfo Celi. Até o fechamento do TBC, o bar ao lado do teatro chamava-se "Nick Bar". Dick Farney tem uma música em homenagem ao bar.

Saroyan, que ganhou muitos prêmios por suas obras, é outro esquecido pelo público, Uma pena. Livros bons, formam pessoas boas; e

No meu tempo a gente só lia coisa boa !!

abril/2023 - obrigado pela leitura.