UM ENCONTRO INUSITADO

Estou morando atualmente em uma humilde, mas aconchegante hospedaria para rapazes solteiros na esquina das ruas Mem de Sá com Gomes Freire em um lugar chamado Bairro de Fátima, no coração da Lapa, berço da boemia no Rio de Janeiro. Embora, na idade em que esteja, não me considere mais um rapaz e nem exatamente solteiro, tampouco um boêmio, gostei do lugar e resolvi ali passar uma temporada. Estou em uma fase da minha vida em que a inspiração anda solta e a verve literária exigindo tempo e atenção exclusiva; contudo, não lhes atendo como merecem e como eu gostaria. Tem sido uma pena, mas nem só da pena vive o escritor. Ele também necessita alimentar o estômago e pagar hospedarias e, enquanto aquela trabalha com ânsia e esperança por um lado ele procura o ganha pão por outro e assim vai vivendo.

Da janela onde rabisco estas linhas descortino uma visão ampla e interessante; foi o que mais me agradou e me fez ficar e ir ficando. Ela está exatamente de quina para a encruzilhada, a visão é privilegiada, enorme; não falta o que olhar. Tirando os carros, os ônibus, as motos e demais veículos que se entrecruzam, deixando no rastro um barulho contínuo, mas que não chega a incomodar, tudo o mais chama a atenção de um bom observador, a qualquer hora do dia ou da noite. Estou rodeado por bares, boates e casas noturnas; devem incomodar o sono de muitos e o fariam também ao meu se o produto desse som fosse o funk, o rap ou algo que, em lugar de arte, trazem monotonia e desgosto, para mim, pelo menos. Mas, como a música é agradável e as vozes dos cantores também, durmo feliz e embalado a hora que me der vontade.

Colírio para os meus olhos são as mulheres bonitas que abundam, e como abundam, para lá e para cá. Entram e saem da farmácia, do banco, do mercadinho, dos automóveis; isto com tal frequência que me é difícil acompanhar. Quando me interesso por uma e quero, com meu olhar de lince, segui-la por mais tempo e com mais vagar, fico torcendo para que perfaça o meu itinerário predileto; este significa estar parada a poucos metros da minha janela, a espera do sinal luminoso. Posso então ter uma visão completa de sua beleza a me alegrar o dia. A olho de cima para baixo, num plano inclinado, curtindo cada segundo. Se ela ergue os olhos e me vê, vendo-a, aí uma cena se desenvolve. Quando não me fixa o olhar porque não quer ou não pode, mas sabe que é olhada, joga os cabelos, faz um meneio incomum, ou mesmo sorri, o que é, para mim e, estou certo, também para ela, uma grande felicidade.

O sinal abre, ela atravessa a faixa; seus gestos já são diferentes, andar de mulher vaidosa, fêmea fogosa, flechada pelo olhar de um macho interessado. Vai passar em baixo da minha janela. Se der a volta no prédio perco-a de vista e adeus paquera. Porém, atravessando a outra faixa, passando para a outra calçada, fez tudo o que eu queria. Vejo-a de costas, ela sabe que meu olhar está ali fixado, naquele corpo esbelto e meu por alguns minutos, alguns segundos, que sejam. Saracoteios provocantes, andar insinuante, vai pegar o calçadão. Se seguir em frente, lhe agradeço mentalmente por ter me proporcionado tão doces momentos. Mas, se entra na farmácia ou na padaria, tenho uma chance. Será que fez de propósito? Desço ou não para abordá-la? Ela sai do comércio. Vamos então ver se vai olhar para trás; isto pode me dar coragem de sinalizar para ela e iniciar, ou não, mais uma história de amor.

Não tinha muito o que fazer naquela manhã senão ficar à janela, ao lado da minha garrafa de água, tentando amenizar a ressaca do dia anterior na casa de velhos amigos na praia de Botafogo. Não sou desses exageros, mas, por não vê-los há um bom tempo e pela insistência, fui ficando e conversando e, como se uma coisa tivesse que levar inexoravelmente à outra, íamos bebendo e vendo a noite passar. Pobre do ser humano se não existissem a água e uma janela de hospedaria.

Distraía-me no entra e sai da porta de um banco quando fechou o sinal e eu olhei para o lado; ela era simplesmente deslumbrante. Notei que não só o meu olhar, mas o de quase todos que passavam ou que a rodeavam caíam sobre sua beleza distinta e mais do que atraente. Os homens a olhavam com admiração e desejo e, as mulheres, com surpresa e talvez inveja. Senti que me olhava e esta correspondência envaideceu-me, mas me deixou tímido, também; disfarcei para não ser o centro das atenções. Ao atravessar, continuou me olhando e, acreditem, virou-se para mim ao atingir o calçadão. Não preciso dizer que minha janela, se já me era o recanto favorito passou, daquele dia em diante, a ser a minha expectativa, minha esperança amorosa.

Quatro dias e nada. No quinto, porém, ela me aparece, estilo mulherão, seios médios a me cortejar; sim, ela estava me cortejando. Deixei cair, enquanto a olhava e disfarçadamente, um papelzinho dobrado com o número do meu aparelho celular. Atravessando, piscou-me e, fingindo deixar cair qualquer coisa, abaixou-se com elegância e consumou-se a conquista. As conversas duraram dias ao telefone porque, confesso, achei fácil e rápido aquele monumento de mulher estar caindo assim nas minhas mãos. Melhor dizendo, eu caía nas suas, pois era inacreditável o jeito com que me seduzia; isto aumentava a minha indecisão.

- Parece tímido! Não está a fim de mim?

- Não … quer dizer .. sim. Mas, você sabe, precisamos nos conhecer pessoalmente, primeiro.

- É só dizer quando, meu gato; o que está esperando?

- O momento, espero o momento certo; preciso me preparar.

- Acaso restou alguma dúvida quanto a minha beleza? - ela usava uma voz terna, mas um tanto intimidante.

- Não, não, é claro que não - respondi confuso.

E assim se passaram os dias. Diariamente me ligava, querendo m

arcar para sair comigo. Confesso que já não tinha aquele desejo do começo quando, sempre no mesmo horário, já estava eu à janela, a espera da sua passagem e do seu sorriso cada vez mais insinuante. No entanto, deixei de fazê-lo e procurei esquecê-la. Não sei, mas algo me dizia que aquela não era para mim.

Outros dia se passaram, quarta, quinta, sexta-feira e eu, pouco ou quase nunca pensando nela. Chegando o domingo, desci para almoçar a dois quarteirões dali, seguindo sugestão do dono da hospedaria; o lugar era calmo e a comida excelente. Não sei o que me deu, talvez o efeito estimulante da caneca de vinho que acompanhara minha refeição, decidi, num ímpeto, ligar para a minha pretendente e marcar para aquela tarde - talvez um cinema, um papo descontraído ou algo do gênero. Peguei no celular e digitei o número.

- Como vai o sumido, o que aconteceu?

- Me desculpe; depois eu te conto. Onde está?

- Estou almoçando bem pertinho de você; não quer me fazer companhia? - perguntei o nome da casa; era exatamente onde eu me encontrava.

- Espere um momento, já te ligo - ela disse. Fiquei confuso com esta interrupção repentina e um tanto nervoso, também. O celular tocou e, ao atender, reconheci sua voz.

- E então, bonitão! Finalmente nos encontramos - disse uma voz atrás de mim.

Se eu estivesse mastigando ou ingerindo algum líquido, seria certo ficar entalado ou me engasgar. Mas, não deixei de sentir um suor frio invadindo meu corpo e um leve princípio de congestão. A voz já me era familiar, mas, quando virei-me constatei o porque das minhas indecisões e o que a distância e a altura não me permitiram constatar. Estava diante de uma bela, fina, simpática, mas indiscutível figura de um travesti. A educação e o impacto me fizeram ainda permanecer no ambiente por alguns minutos, procurando palavras e motivos para me desvencilhar da cena constrangedora; mas, ela, ou melhor, ele, entenderia. Voltei para o meu quarto de hospedaria com a certeza de uma atitude a ser tomada: tão cedo não abro a minha janela.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 10/05/2023
Reeditado em 11/05/2023
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