ESCURIDÃO PRIMORDIAL

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vem pra cama,” ela sussurra tão quieta. 

     Não posso, eu penso em respondê-la. Ainda não posso. Não estou capaz. Talvez entenderia meus porquês se eu me abrisse a eles. Minha cabeça ainda não está pronta para meus olhos serem fechados agora. Eu devo estar para além desse mundo, vazio, cansado, mas preparado e focado para o dia seguinte, formalmente despeço do que já passou mesmo há horas. 

 

     O brilho incomoda um pouco. Talvez seja a fome, talvez seja a frase que eu disse num show há seis anos de uma banda que já acabou, talvez seja a frase que eu não disse no casamento de um amigo há quatro anos. As palavras saltadas na minha frente me tiram de minha cabeça, me expulsam de um lugar que retorno nessas noites incongruentes. Meus olhos pestanejam, sinto seu cansaço, sobretudo o tédio neles, mas em meu âmago eu ainda estou acordado, iludido no meu próprio desamparo perante a exaustão que meu corpo mente. Por fim, vejo a hora uma última vez, desligo o celular e fecho os olhos. 

     O que foi? A escuridão também tem voz. E ela faz perguntas. 

     Estou me mexendo demais na cama, não consigo encontrar minha posição. 

     Você já está deitado como gosta, de barriga pra baixo, com os braços debaixo do travesseiro. 

     Viro minha cabeça para o outro lado. Há uma luz vindo da janela. Quero dizer, não está totalmente escuro, mas ela está ali. Encarando meus olhos fechados sem o devido cansaço, que provavelmente irei sentir daqui a algumas horas quando meu sistema límbico finalmente me acordar de qualquer sonho que não lembrarei.

     Escuridão.

     O que?

     Esse é um bom nome.

     Eu também acho.

     O gosto também é bom.

     Lembro-me do amargo.

     Você deveria ter dito. Agora tudo o que faz é refazer as próprias memórias, como uma criança que ainda está aprendendo como escrever; como segurar um lápis e escrever com a devida força, e apaga as palavras deixando somente suas sombras. Ninguém até pode não saber o que você escreveu, mas você sabe.

     Eu preciso dormir.

     Por quê?

     Não vou responder essa pergunta. Ela é estúpida.

     Tal qual a Terra girando, você existindo, e as dores nunca passando.

     Levanto-me da cama decidido a beber água. Deixei uma garrafinha no chão, para evitar descer as escadas até a cozinha. Não está quente, mas em temperatura ambiente. Minha garganta está seca, o que acho estranho por estar a horas sem falar com alguém. Então vou ao banheiro para lavar o rosto. Pode não ser uma sábia decisão, mas gosto de tirar a oleosidade do suor e me sentir limpo antes de dormir. E ao retornar para a cama, percebo que não estou com fome, mesmo que minha barriga estremeça. 

     Eram os rostos que você desconheceu e as vozes que não esqueceu.

     Fecho os olhos mais uma vez. 

     E vejo aqueles rostos embaçados. 

     E ouço aquelas vozes graves, agudas, irreconhecíveis neste estado de induzida inconsciência. 

     “Cinco anos? Como você conseguiu?” A mulher perguntou.

     “Eu não consigo nem ficar cinco minutos sozinho, que fará cinco anos.” O homem disse. Ele era mais alto que eu.

     “Isso porque você é uma piranha,” a mulher respondeu seu amigo.

     “Mas piranhas também amam,” ele respondeu com tom debochado.

     Abro os olhos.

     E fecho os olhos mais uma vez.

     Os rostos flutuam como fumaça na minha frente.

     “Não queria dizer nada, não. Mas tu passou vergonha, sim,” disse o homem com poucos cabelos na cabeça.

     “Não liga, não. Tava de boa. Não incomodou ninguém,” disse o homem barbudo.

     “Algumas coisas não precisavam ter sido ditas. Não somos padres pra te absolver,” o calvo retornou a dizer.

     Eu só queria uma opinião sincera de vocês, eu disse.

     “Carente demais,” o calvo respondeu.

     “E vai adiantar? O que dissemos importa?” O barbudo perguntou.

     Não muito, mas é um bom material para o futuro, eu pensei. Sempre vai adiantar, e sempre vai importar, eu respondi. A questão é no que, como e onde.

     Abro os olhos.

     E fecho os olhos mais uma vez.

     As vozes são quase ininteligíveis. Não há bocas, nem olhos, nem narizes. Apenas o som flutuando de uma imagem distorcida para outra, de um clarão colorido para outro no meio da escuridão.

     “Do que você gosta? Me diz aí,” perguntou o homem que era muito branco.

     Não acredito que ele está perguntando isso.

     “Eu gosto de ser respeitado,” o homem de nariz largo respondeu.

     “Isso aí eu já não posso prometer,” respondeu o homem calvo.

     “Por isso que ninguém te leva a sério,” respondeu o homem de nariz largo.

     Misericórdia, a gente se conhece há dez anos e o sujeito perguntou do que gostamos.

     Abro os olhos.

     E fecho os olhos mais uma vez.

     “É que eu tô estudando pra ser alguém na vida.”

     E eu não?

     “Eu não disse isso.”

     Só nas entrelinhas.

     “Caralho, nada a ver. A gente tá tentando ajudar. Ninguém é inimigo aqui.”

     De boas intenções o inferno tá cheio.

     Abro os olhos mais uma vez e escorrego minha cabeça para fora do travesseiro, por fim me levanto novamente, sentado na cama encarando o quarto que me possui em sua vasta escuridão, tentando me acostumar com o frio que entra pela janela aberta.

 

     “Vem,” ela sussurra. “Vem dormir.”

     Diversas vezes e mais outras estarei aqui, sendo encarado pelo abismo dentro de mim mesmo, dos sorrisos porcamente disfarçados e das frases vazias de significado. O fundo dos copos não trouxe respostas, e os pulmões inflados de ignorância agora se esvaziam com a angústia do dia que está por vir. 

     Eu vejo a arte sobrepondo os caminhos, traçando o desejo até a árvore que me pendura em meu pescoço.

 

     Hora de acordar, bonitão.

Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 29/05/2023
Reeditado em 20/07/2023
Código do texto: T7800607
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