Balanço gigante

Tenho uma cicatriz na sobrancelha direita e, quando me perguntam o que foi, vou logo explicando:

— Atropelei um pombo. Ou um pombo me atropelou, não sei.

Aí vejo que nem sempre a explicação é suficiente. Aliás, quase nunca é, e, se a pessoa estiver interessada, conto a história desde o começo.

Nos meus tempos de adolescência, uma das maiores diversões era um balanço enorme que tinha no colégio administrado pelas irmãs do Instituto Missões Consolata, onde vim a cursar o Ensino Médio. Era feito com possantes vigas de madeira e tinha uns quatro metros de altura. Para mim era como se tivesse dez metros, mais que suficiente para dar aquele friozinho gostoso na barriga. Nele, eu me balançava o mais alto que podia, cantando “Santa Lucia” a plenos pulmões: Su’l mare luccica l”astro d’argento...

Quando já passava dos trinta e morava numa cidade grande, mudei-me para um apartamento de quinto andar. Da janela se via outro apartamento na mesmo altura, construído a uma distância de uns dez metros mais ou menos. Entre um edifício e outro não tinha nada, a não ser um gramado e alguns pés de azaléia mal cuidados. Olhei aquele espaço aberto e lindo e meu coração de menino viajou no tempo. Passei a imaginar como colocar um balanço entre um prédio e outro, até que cheguei à seguinte ideia: compraria uma corda de nylon bem forte e comprida o suficiente para prender nas duas janelas e alcançar o chão. Numa serralheria mandaria fazer uma cadeirinha tal que desse pra ficar amarrado nela com um cinto se segurança. Faltava apenas saber se o vizinho de janela topava a aventura.

Antes de fazer o investimento, fui falar com o vizinho, porque a probabilidade de ele não aceitar era quase total. Mas, para surpresa minha, era um cara simpático e aventureiro, como eu, coisa rara nos dias de hoje. Comprei o material, fixei as cordas bem firmes, instalei a cadeirinha de balanço e combinei com ele um sábado à tarde para experimentar o balanço.

Sucesso total. Só não me diverti mais porque juntou tanta gente que queria ir no balanço que não conseguia eu mesmo me balançar. Era uma delícia, uma sensação de poder voar, num balanço tão alto.

No dia seguinte o porteiro do prédio bateu na minha porta com um recado do síndico.

— Ele mandou dizer que é proibido fazer balanço entre os prédios.

Mandei o porteiro falar pro síndico que eu queria uma notificação por escrito. O porteiro fez cara de quem não gostou de ser feito bolinha de pingue-pongue, mas tudo bem.

Eu sabia que tinha arrumado uma boa encrenca com o síndico, mas ele não tinha saída, e até imaginei a batalha seguinte dessa guerra: sabia que a notificação do síndico viria na forma de uma ordem acrescida de ameaça de aplicação de multas, então eu faria uma réplica exigindo justificativas para a proibição e seu embasamento legal, pelo estatuto do condomínio, nesse caso. Sabia que não existe artigo em estatuto de condomínio de lugar nenhum do mundo proibindo fazer balanços entre um prédio e outro. E se houvesse, daria pra questionar o próprio estatuto, as razões da proibição, enfim dava pra enrolar o síndico por um bom tempo. Enquanto isso eu iria me divertindo, sabendo é claro que a diversão estava com dias contados, e que provavelmente ao final teria que mudar-me de lá.

Aproveitei o domingo para mais uma vez curtir meu balanço. Já não apareceu mais tanta gente pra se divertir comigo. Com certeza a história da proibição tinha se espalhado, com pelo menos vinte versões diferentes.

Na verdade, agora não me diverti tanto porque o fato de estar em guerra com o síndico me incomodava. E meu vizinho solidário andava reticente.

Eu me balançava o mais alto que podia, e foi aí que uma revoada de pombos desavisados entrou em rota de colisão comigo e o bico de um deles pegou na minha sobrancelha. Foi aquela sangueira, mais impressionante do que realmente grave, exceto pelo fato de que, por diferença de dois centímetros, a bicada acidental podia ter-me furado um olho.

Naquela mesma tarde o síndico veio falar comigo. Mostrou ser mais sensato e inteligente do que eu esperava. Anteviu a disputa iniciada, e demonstrou saber que numa guerra todo mundo acaba perdendo alguma coisa. Esperto, usou como trunfo, em sua negociação de paz, o acidente com o pombo. Concordamos em levar o assunto para a próxima reunião do condomínio e decidir lá se eu podia ou não fazer meu balanço entre um prédio e outro. Assim, se a assembléia não proibisse o balanço gigante, o síndico não poderia ser acusado de leniência pelos moradores que sempre são contra quando a diversão é dos outros.

Como terminou a história? Na reunião do condomínio ficou decidido que eu poderia usar o balanço sob determinadas condições. Em horário comercial, quando a maioria das crianças e adolescentes estivessem na escola (e eu nunca estaria em casa), menores de 18 anos usariam o balanço somente com autorização por escrito dos pais, eu nunca poderia cobrar ingressos e por aí afora. Achei que tinha me saído muito bem, pois afinal sempre haveria um jeito de me balançar com meu brinquedo gigante.

Só que não. O prédio do vizinho-parceiro tinha outra administração e na reunião deles o balanço foi proibido. Sem a janela do lado de lá não tinha balanço.

Viver na cidade não é fácil! Em condomínios, então, pra quem se criou no interior, como eu, chega a ser uma tortura.

E o pombo? Vai bem, obrigado. Perdeu duas ou três penas na trombada e foi-se embora, com certeza mais assustado que eu...

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 20/12/2023
Reeditado em 21/12/2023
Código do texto: T7958507
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