A nova sede

Era uma vez...

Há muito tempo atrás, numa cidade-estado longínqua, o poder estava organizado. Ele foi dividido em três: o executivo comandado pelo burgo-mestre e sua assessoria (que a oposição chamava de quadrilha); o legislativo composto por figuras que conceitualmente representariam o povo e o judiciário incumbido de promover o cumprimento das leis.

Nessa cidade-estado, eram realizadas eleições periódicas para o executivo e o legislativo e o povo, acreditando na palavra dos políticos, imaginava que a simples realização de eleições significava democracia. Ignoravam que os partidos não representavam idéias mas os interesses de seus dirigentes. Os cidadãos também não se importavam pelo fato de, a qualquer momento e a troco de qualquer migalha, partidos e políticos defenderem idéias diametralmente opostas àquelas pelas quais os eleitores neles haviam votado. Naquele tempo haviam uns poucos bem intencionados que se lançavam candidatos para defender os legítimos interesses populares e outros que, eleitos pela ignorância popular, não faziam outra coisa senão aproveitar-se do poder para enriquecer.

Após uma dessas eleições e, investidos nos cargos, os eleitos elegeram aquele que seria o presidente do poder legislativo.

Havia na praça central dessa cidade-estado, num poste onde eram afixados pergaminhos com informações ao povo porque naquele tempo ainda não havia jornal. Como o poste era usado apenas para o poder participar ao povo suas decisões diziam os políticos que viviam sob o regime da democracia participativa.

Dias após a investidura nos cargos foi afixada uma cópia do discurso do novo presidente do legislativo que anunciava que seria prioridade de sua gestão a construção de uma nova sede para o poder que dirigia.

Muita gente estranhou a promessa mas por força da ignorância tão criteriosamente cultivada ninguém a questionou. Como acontecia naqueles tempos, o povo, tão logo cumprido o dever de votar, se esquecia que cidadania vai mais longe que apenas votar, não se importando com o que era feito por seus representantes.

Dias após, um novo comunicado ao povo.

Foi escolhido um terreno e fixado um valor para a construção da nova sede. Os que sabiam ler contaram aos demais o que estava escrito mas apesar da concordância geral um cidadão se manifestou contrariamente ao que se anunciava. Seus argumentos eram simples: Não tinha sido inaugurada a reforma e ampliação do palácio do legislativo recentemente? Nessa reforma não foram construídas salas suficientes para acomodar todos os representantes do povo? Seu número, por força de lei, não havia sido reduzido? Havendo menos ocupantes para ocupar o espaço recentemente ampliado haveria necessidade de uma sede ainda maior? Por fim, se tudo não passava ainda de idéia e nenhum projeto ainda havia sido apresentado, como poderia ser fixado valor para o novo palácio? Esse cidadão, de tão veemente, acabou por convencer a dois ou três.

Passados mais uns dias, novo comunicado: o preço da obra fora triplicado.

Como? – já ousavam dizer uns poucos – Se não existe sequer um esboço para o novo palácio, não se pode dizer o quanto irá custar essa obra, muito menos aumentar um valor ainda desconhecido.

O tempo passava e algumas pessoas começaram a cerrar fileiras com o cidadão que teve a ousadia de questionar aquela que era apontada como necessidade imperiosa dos representantes do povo.

Mais uns dias e foi comunicado que o valor da futura obra seria o quíntuplo do que foi anunciado na primeira vez e informado que, em data distante, seria aberto um processo licitatório para que os oficiais-pedreiros apresentassem seus projetos e planilhas de custo.

A situação ficava cada vez mais tensa. O cidadão que primeiro questionou a necessidade de uma nova sede tinha já vários seguidores e, dia-a-dia, suas hostes engrossavam. Suas idéias eram repetidas nas casas e tavernas: os representantes do povo não devem ouvir os cidadãos sempre que algo importante fosse discutido? O dinheiro a ser gasto para ampliar o conforto dos legisladores e que representaria em aumento de impostos era o que realmente interessava a todos?

Diante do clamor popular foi decidido que se realizaria uma audiência pública para que o povo pudesse manifestar suas idéias. No dia aprazado o palácio do povo (assim era chamada a sede do legislativo) estava cheio. Compareceram os trezentos e vinte e sete cidadãos. Ninguém entendeu direito porque os edis-legiferantes, antes de permitirem a entrada dos cidadãos, convocaram os soldados de el-rey com suas alabardas, escudos e espadas, para formarem um cinturão compacto entre eles e os representados. Não estavam ali em paz e apenas para discutir a conveniência de um novo palácio?

Com todos presentes, foi dada a palavra ao povo para que cada um, à sua maneira, expressasse seu pensamento. Ninguém ousou dizer uma palavra. Todos falavam e questionavam entre amigos mais íntimos mas, em público e diante daqueles que representavam a autoridade do estado, mergulharam no mais profundo silêncio.

O presidente da casa já saboreava a vitória quando o cidadão que ousara questionar seu plano tão logo anunciado levantou-se e começou seu discurso. Inflamado perguntava a todos se era justo que a cada legislatura construíssem um palácio maior e mais confortável para acomodar os políticos enquanto o povo não tinha onde morar. Foi muito aplaudido. Informou a todos que, pelo preço da obra, poderiam contratar dezenas de cirurgiões-barbeiros e, ainda, que poderiam ser custeadas sangrias por mais de vinte anos garantida, dessa forma, tratamento para a maioria das doenças conhecidas. - Seria justo que em troca de mais conforto para si mesmos os representantes do povo negarem garantir saúde para todos, por uma geração? Os aplausos foram mais demorados. Disse que o valor a ser gasto com a nova sede poderia custear uma escola e professores para mais de duzentos anos, livrando-se assim o povo do analfabetismo. Os aplausos eram entusiasmados e ouviam-se gritos de viva... Quando terminou, o cidadão disse que com o dinheiro que se pretendia gastar para o conforto de uns poucos e por pouco tempo (logo inventariam a construção mais um palácio) poderia ser garantido ao povo educação, saúde, estradas e etc. por longos anos e sem que fossem aumentados os impostos. Foi um delírio.

O comandante da tropa, preocupado com o rumo das coisas, mandou que os soldados de el-rey cerrassem fileiras e fossem desembainhadas as espadas visto que o povo estava claramente contra seus representantes. Alguns destes, inclusive, haviam se refugiado em salas do palácio temendo ser atacados pela fúria popular.

Acuado, e vendo que sua deposição era iminente, o novo presidente do legislativo, com voz humilde, pediu permissão para se dirigir ao povo. Começou seu discurso dizendo que falava não em seu nome mas em nome daqueles que representava. Se declarou um humilde servidor da vontade popular e que seu mandato não pertencia a ele e, para falar a verdade, sequer àquele que nele haviam votado mas a todos a quem jurara representar e cujos interesses iria defender até o fim de seus dias. Percebendo o clamor popular arrefecer tomou coragem e foi mais longe: - Quem é esse que ousa desafiar o poder constituído? Quem é esse que questiona as boas intenções dos eleitos pelo povo? Esse senhor fala em nome de algum partido ou representação de classe? Uma pessoa que não participa do governo tem condições de saber exatamente quais são seus empenhos ou como devem ser feitos seus gastos? Esse, que não possui mandato popular, tem competência ou legitimidade para questionar as necessidades dos verdadeiros representantes do povo? Um grupo de homens sábios e eleitos pela vontade popular tem menos capacidade e honra que um elemento que, era evidente, não tinha razão apenas rancor e inveja deles, os escolhidos?

Concluindo que os populares estavam prontos para mudar de opinião, completou : - Enganam-se os que imaginam que seja necessária a construção de escola porque isso só fará com que tenhamos letrados desempregados. O que precisamos é de emprego! Alguns aplausos foram ouvidos. Se existe falta de moradia, essa se deve aos casais que procriam de forma irresponsável quando o justo e lógico seria aguardarem a construção de moradias para casar e ter filhos. Só assim acabaremos com o crescimento demográfico irresponsável. Mais aplausos. Dizem os traidores que precisamos e cirurgiões-barbeiros e locais para que possam atender e fazer suas sangrias. Na verdade eles desejam que as pessoas sejam doentes. Precisamos do povo com saúde porque isso dispensa a contratação desses profissionais e de outros que existem em razão das desgraças de cada um. E, completando : quem vocês elegeram para exercer o poder em seu nome ? Nós que estamos aqui, abnegados trabalhadores, defendendo os interesses de cada um ou esse elemento que fala por si e tenta jogá-los contra nós, seus legítimos representantes ?

Não se sabe até hoje quem gritou. No meio do vozerio alguém gritou “lincha !” e aquele que ousou desafiar o poder vigente foi agredido por todos. O espancamento começou no salão nobre do palácio do povo, desceu pelas escadas, passou pela portaria e terminou no poste onde eram afixadas as notícias do poder.

O corpo do morto ficou no chão esvaindo as últimas gotas de sangue enquanto os cidadãos, aliviados, voltavam cada um para sua casa. Depois de tantos dias de intranqüilidade e desconfiança poderiam voltar a dormir em paz.

Dario Castellões
Enviado por Dario Castellões em 02/01/2006
Código do texto: T93463