A morte de Zacarias Coronel

Assistir à alvorada era parte da rotina do vigilante Zacarias. Seu turno acabava quando chegavam, quase ao mesmo tempo, André, que ficava até as onze, e o sol, que ficava até as dezoito.

***

— “14º Concurso Literário de Pereirópolis”... Grande merda!

— Por que, Giane? Você tem muitas chances de ganhar esse!

— E daí? Quem se importa com o Concurso Literário de Pereirópolis?

— Vai ser o seu primeiro. Um dia, você ainda vai ganhar o Jabuti.

— Menos, dona Norma... beeeem menos!

— Inscreve aquele do vigilante? É um dos melhores.

— Mãe, aquele é o meu karma. Não consigo terminar o dito cujo de jeito nenhum.

— Mas ainda dá tempo, meu amor. Pensa nisso com carinho.

— Tá bom! Tá bom! Mas ó, amanhã eu começo, tá. To indo na Débora. Ah, e se o Cláudio ligar diz que eu não atendi porque...

— “Porque...”?

— Porque meu celular caiu no vaso!

— Pelo menos isso não é mentira. Tadinho. Ele gosta tanto de você...

— Dá uma beijoca aqui![beijo] Se não tiver pizza lá, volto pra jantar com você.

— Tchau. Ah, Gi! Leva um guarda chuva!

— Fui.

***

O corpo já era acostumado. No tempo que passou no exército, aprendeu a dominar o próprio organismo. “O soldado é superior ao tempo e inferior à merda”, dizia ele aos colegas que reclamavam. E eles sempre reclamavam. Zacarias não. Ao contrário, dava lições de moral e ética militar aos vigias mais jovens, dando como exemplo histórias vividas no quartel. Isso valeu a ele a alcunha pela qual todos o conheciam no grande laboratório de pesquisas científicas onde trabalhava: Zacarias Coronel.

***

“Fechado, droga.”

Estava chovendo em Pereirópolis. Giane odiava guarda-chuvas porque só serviam para atrapalhar a visão. O portão do prédio onde a amiga morava estava fechado, e ninguém atendia o interfone. Uma luz acendeu no apartamento.

[som do interfone]

— Sim? – era a voz da mãe de Débora.

— Oi, dona Elza. Sou eu, a Gi.

— Ah, só um instantinho.

[o portão abriu-se]

— Abriu!

Correu em direção à porta. Antes de entrar, viu uma cena curiosa: o sol estava no poente, vermelho, espremido entre o horizonte e as nuvens de chuva.

***

A luz do sol traçou um risco amarelo no alto do muro vizinho, dizendo a Zacarias que eram seis da manhã. A casa pequena era um exemplo de asseio e ordem, a despeito de seu proprietário ser homem e não ser casado. O vigilante conhecia cada centímetro de seu território, cada tábua, telha, prego e fio de cobre da habitação que ele mesmo construiu. Justamente por isso, se qualquer coisa estivesse diferente, fora do lugar, Zacarias saberia que alguém esteve lá. A alguns metros, viu que a tramela do portão estava inclinada para a direita. Ele tinha o hábito de sempre deixa-la na mesma posição horizontal.

Seu território fora invadido.

***

Entre o portão e a entrada de vidro do prédio havia um caminho revestido de lajotas, cortando um bonito gramado. Giane percorreu os primeiros dez metros da calçada com a bela imagem ainda na mente, pensando na falta que uma máquina fotográfica fez naquela hora. Neste momento, sua sandália deslizou perigosamente, e por muito pouco, não a derrubou no chão. “Cruzes, alguém pode morrer desse jeito”.

No momento seguinte, outro escorregão. O instinto fez Giane proteger-se, tentando defender o rosto com as mãos. A cabeça bateu violentamente no piso duro e molhado. Uma poça vermelha surgiu na calçada, diante de seus olhos. Tudo escureceu. O sangue misturou-se à água da chuva que caia.

***

Pé por pé, o guarda noturno chegou à janela lateral, de vidro. O sangue-frio permitiu-lhe enfrentar a situação sem exasperar-se. De onde estava, podia observar cada cômodo da casa em segurança. Nada anormal. Não possuía nada de valor que pudesse despertar o interesse de algum ladrão. Porém, Coronel guardava em seu poder algo que lhe fora confiado – que, obviamente, estava em um lugar seguro.

“Talvez o filho da mãe ainda esteja do lado de fora” pensou. A mão foi em direção ao coldre. “Droga” Novas normas de segurança: nenhuma arma sai de dentro dos portões da empresa.

Dirigiu-se para os fundos, andando sem emitir nenhum som. Ao aproximar-se da beirada da casa, onde estaria protegido pelo tanque de lavar roupas, Zacarias deparou-se com o invasor. Era homem, magro, e estava encapuzado. Não teve tempo de dizer nada, nem de esquivar, nem jogar-se ao chão. O cano de um revólver estava apontado para ele. Um milésimo de segundo. O projétil perfurou o ar, voando resoluto de encontro ao corpo do vigilante.

Zacarias Coronel caiu sem sentir dor. Ficou consciente o tempo todo. A bala entrou-lhe no ombro direito. O bandido caminhou rápido em sua direção, como quem sabia exatamente o que procurava. Agachou, investigando os bolsos do vigilante. Ficou nervoso. Virou, revirou, enviou as mãos em todos os compartimentos da jaqueta e, das calças. Nada. Enfureceu. Apontou outra vez a arma, berrando. O homem caído não conseguia ouvir, mas sabia o que seu agressor queria. Viu-o engatilhar o revólver. Seria, certamente, a sua morte.

Mas algo surpreendente aconteceu.

***

A ambulância chegou alguns minutos depois, não antes de os moradores do Edifício Marília já se encontrarem revoltados pelo descaso. Elza, mãe de Débora, entrou em estado de choque, e teve de ser socorrida também. Débora, a amiga, não estava em casa. Norma, mãe de Giane foi chamada às pressas.

— Ela está viva mas bateu a cabeça com muita força. - disse o para-médico.

Amigos e vizinhos ficaram tensos e apreensivos o resto da noite.

***

Giane sente seus olhos abrirem.

“Hã!”

Um rapaz aproxima-se da porta de vidro pelo lado de fora. Está escrito “André” em seu crachá.

— Cochilando, Coronel?

“Que merda é essa? Onde é que eu tô?”

— Guerreiro não cochila, rapaz. “Que! Eu disse isso? E que voz é essa?”

A jovem percebe que está mais alta, sente gosto de café sem açúcar. Seu corpo está movendo-se sozinho, e está vestindo um uniforme azul escuro. Fica desesperada por não conseguir falar, ou melhor, por perceber que sua boca fala à sua revelia, como agora

— Seu Ubiratan, a arma.

Vê-se retirando o revólver da cintura, entregando-o a um senhor gordinho de bigode atrás de uma vidraça. Em seguida, vai até o guarda-cartões e, sem pensar, pega o que está mais embaixo, onde lê-se

LABORATÓRIOS ÆTHER

ALMEIDA, ZACARIAS

“CORONEL”

VIGILANTE

TURNO: 23:00 – 5:00

Giane entra em desespero ainda maior. Só agora entende o que está acontecendo. Não consegue raciocinar, apenas tenta, alucinadamente, fazer com que o corpo de Zacarias responda à sua vontade. A sensação é absurda, como se estivesse presa, amarrada. Vê-se olhando o horizonte escuro, ficando lentamente tingido de vermelho. Rua abaixo, acompanha a caminhada firme do ex-militar, sentindo o relevo da rua e o ar frio dos primeiros instantes do dia.

“Ah, não!”

A jovem tem um lampejo de lucidez. Zacarias está a poucos minutos de ser baleado.

“Meu Deus! Meu Deus! Pára Coronel! Volta pra empresa! Vai pra um boteco!”

A luz do sol traçou um risco amarelo no alto do muro vizinho. São seis da manhã. O vigilante conhece cada centímetro de seu território. A tramela do portão estava inclinada para a direita. Seu território fora invadido.

“Tem um cara armado lá nos fundos! Não vai lá, seu merda! A GENTE VAI MORRER!”

Pé-ante-pé, janela, tanque de lavar roupa, cano do revólver, homem encapuzado.

“Não!!!”

Tiro.

***

Um rapaz aproxima-se da porta de vidro pelo lado de fora. Está escrito “André” em seu crachá.

“Ah, não! De novo não!”

A cena é toda a mesma. Entrega o .38 ao Seu Ubiratan, vai até o guarda-cartões, pega o seu e enfia-o no relógio. São cinco da manhã.

“O Coronel fica vivo por uma hora. Eu tenho que conseguir fazer alguma coisa. Deus, fui eu que escrevi essa história, mas pô!, eu só escrevi até a hora em que o cara atira nele... que raiva!”

— O que você ta resmungando aí, Coronel? – perguntou Ubiratan pelo buraco na vidraça.

“Ei, eu to conseguindo falar!”

— Claro que ta. Eu hem! Ta tomando café demais, isso sim!

Porém, não consegue controlar seus movimentos. Zacarias Coronel faz tudo exatamente igual. Outra vez é baleado, e tudo fica escuro depois do tiro.

***

Um rapaz aproxima-se da porta de vidro pelo lado de fora. Está escrito “André” em seu crachá.

“Acho que agora eu consigo”.

— Cochilando, Coronel?

“É, e sonhei que tava traçando a tua mãe.” – diz enquanto tira a arma e entrega ao Seu Ubiratan.

— Que é isso, Zacarias? Eu, hem. Tá de ovo virado?

“Não mesmo. To indo pra casa agora, bater umazinha pensando na tua mamãe... velha gostosa!” – ao mesmo tempo em que pega seu cartão-ponto.

— Tá me faltando com o respeito, Seu Zacarias Almeida. Quer arrumar confusão, é?

“Com um merdinha como tu? Nem me preocupo.” – batendo o ponto.

— Então fala aqui na minha cara se tu é homem!

“Anda, viadinho! Mostra pra mim quem é o nenezinho da mamãe...”

— Ah, isso não fica assim! – esbraveja André, correndo na direção de Zacarias. Possuído de fúria, desfere um murro no colega antes que ele chegasse à porta da frente, derrubando-o no chão. O rapaz espanca o homem com brutalidade desmedida. Depois de uma sessão de socos e pontapés contra Coronel, outros três guardas, além do Seu Ubiratan, têm dificuldade em conter o jovem. No chão, ensangüentado e sentindo dores intensas por todo o corpo, Zacarias, ou, melhor dizendo, Giane, inteiramente no comando de seu personagem, ri desvairadamente, sentindo gosto de sangue, duas costelas quebradas e três dentes da frente a menos.

— Deu certo! Hahahahahaha! Deu certo!

O homem que monitorava a vigilância eletrônica, Ubiratan Ribeiro, telefona às pressas para o chefe da segurança. Nestes casos, chamar a polícia seria um incômodo desnecessário. Às cinco horas e quarenta minutos o tal chefe, rapaz bonito e bem vestido, entra no hall de mármore escuro, palco de uma briga entre colegas capturada por, no mínimo, cinco câmeras. Era Ricardo Ferreira, o chefe da segurança.

— Vou conversar com um de cada vez – disse, indicando a porta de sua sala para André. Pouco depois, quando o primeiro saiu cabisbaixo, a mão branca chama Zacarias Coronel.

— Ok, Coronel. Qual é a sua versão.

Giane precisou reunir todo o seu cabedal de criatividade para começar a argumentar.

— Não sei o que deu nele, Seu Ricardo. O guerreiro veio para cima de mim, me socou, me chutou, e eu não entendi nada.

— Você conhece as normas, não é?

— Sim, senhor. Vou ser demitido.

— Vai, vai sim. Agora me diga, onde estão as chaves que o chefe deu a você?

“Chaves? Que chaves?” Giane não conseguiu lembrar de nenhuma chave, enfiando as mãos nos bolsos. Quando fez isso, viu sobre o topete do chefe da segurança o relógio de parede. Seis horas em ponto.

“Ops.”

Inexplicavelmente, entre um fechar e abrir de olhos, a jovem escritora, encarnada em seu personagem, percebe-se outra vez no hall. Imediatamente olha o relógio-ponto: 4:58. Um rapaz aproxima-se da porta de vidro pelo lado de fora. Está escrito “André” em seu crachá.

“MAS QUE MERDA!!!”

***

Dessa vez, Giane, desanimada, não teve vontade de interferir na história.

Entregou a arma, bateu o ponto, caminhou para a casa de Zacarias. Viu o sol nascer e fazer o risco no alto do muro do vizinho. Olhou para dentro de casa pela janela de vidro, caminhou para os fundos. Seu assassino estava lá, aguardando-o.

“Mas por quê? O que ele quer?”

Nesse mesmo instante, ouve mentalmente a voz do supervisor Ferreira: “onde estão as chaves que o chefe deu a você?”.

“É isso!” Ele quer as chaves! “Coronel guardava em seu poder algo que lhe fora confiado”. Claro! Po, afinal, quem escreveu isso aqui?

O encontro seguiu-se como o habitual. Cano, gatilho, tiro.

Zacarias Coronel caiu sem sentir dor alguma. Ficou consciente o tempo todo. A bala entrou-lhe no ombro direito. “Cara, como isso dói!” O bandido caminhou rápido em sua direção, como quem sabia exatamente o que procurava. “Rá, otário! Não ta comigo.” Ficou nervoso. Virou, revirou, investigando os bolsos do vigilante. Nada. Enfureceu. Apontou outra vez a arma, berrando. O homem caído não conseguia ouvir, mas sabia o que seu agressor queria. Viu-o engatilhar o revólver. Seria, certamente, a sua morte.

— Onde está? Fala, cretino! Eu vou explodir tua cabeça se tu não falar!”

“Ei! Eu conheço essa voz!”

Mas algo surpreendente aconteceu. “É a sua chance, Giane!”

Tomado por uma força descomunal, Zacarias Coronel levantou-se, com as mãos em direção à arma. Sem dificuldade, o vigilante desarma seu agressor, derrubando-o contra o piso bruto, deixando-o inteiramente imobilizado. Com seu costumeiro autocontrole, retirou o capuz, revelando a identidade do adversário.

“Ficou horrível, mas só vou conseguir sair daqui se terminar de escrever esse conto idiot...O que?”

O guarda noturno não conseguia crer no que vira. Sob seus joelhos estava seu próprio chefe, Ricardo Ferreira.

— O senhor?

— Surpreso, Zacarias? Você é um idiota! Não tem noção do que está em seu poder.

— O quê? Um molho de chaves?

— Sim, seu velho estúpido! Estas chaves dão acesso a todas as portas do laboratório. Sempre achei um despautério deixar as chaves com você, mas não sou eu quem decide essas coisas. Eles confiam no “Coronel”...

“Que diálogo medonho...!”

— E qual é o seu interesse nessas chaves? Onde você quer ir?

— Não seja idiota, velho! Você nunca entenderia! Nas profundezas daquele prédio existe o laboratório de física experimental mais avançado que a ciência pôde um dia conceber. Lá está sendo criado um portal dimensional, que poderá levar-me para qualquer tempo do passado, do futuro, ou qualquer lugar neste mundo ou em outros mundos! – e soltou no ar, a plenos pulmões, uma risada diabólica.

“Que horror... nem os vilões do Jaspion falavam assim. Bem, era tudo o que eu precisava saber! Vamos acabar logo com isso.”

Coronel segurou o revólver pelo cano, entregando-o para o chefe, estupefato.

— Agora termina o que você começou.

— O quê?

— ATIRA, DROGA!

Tiro.

***

Assistir à alvorada era parte da rotina do vigilante Zacarias. Seu turno acabava quando chegavam, quase ao mesmo tempo, André, que ficava até as onze, e o sol, que ficava até as dezoito.

Um rapaz aproxima-se da porta de vidro pelo lado de fora. Está escrito “André” em seu crachá.

O corpo já era acostumado. No tempo que passou no exército, aprendeu a dominar o próprio organismo. “O soldado é superior ao tempo e inferior à merda”, dizia ele aos colegas que reclamavam. E eles sempre reclamavam. Zacarias não. Ao contrário, dava lições de moral e ética militar aos vigias mais jovens, dando como exemplo histórias vividas no quartel. Isso valeu a ele a alcunha pela qual todos o conheciam no grande laboratório de pesquisas científicas onde trabalhava: Zacarias Coronel.

“Agora é a minha vez”

— Cochilando, Coronel?- brincou André, divertindo-se às custas do sono de Zacarias.

— Guerreiro não cochila, rapaz.

— Bom dia, então.

— Mais ou menos. Tenho que correr pra casinha. Estava só esperando você chagar.

—Bora lá, homem! Não vá fazer pelo caminho.

Coronel caminhou apressado rumo ao banheiro, não sem passar antes pelo guarda-cartões, para bater o ponto precisamente às 5:00, como fazia religiosamente todos os dias.

Com extremo cuidado, entrou no amplo vestiário dos vigilantes. Abrindo a porta do seu roupeiro, certificando-se de que estava sozinho, tirou de lá as peças do uniforme azul escuro, passadas e dobradas milimetricamente. Na parte de trás de seu armário havia um fundo-falso. Zacarias retirou do compartimento um embrulho de papel. E, de dentro deste, um grosso molho de chaves.

“Previsível, mas estamos indo bem.”

Em instantes, Zacarias correu pelos túneis de alvenaria, branquíssimos, assépticos, impessoais e assombrosos dos Laboratórios Æther, destrancando confiante uma trilha de portas fechadas. Era seu dever conhecer todos os caminhos, embora nunca os houvesse percorrido sem a companhia de um cientista ou um superior da área de segurança. Ele sabia exatamente aonde devia ir: para o laboratório secreto que ficava no mais profundo dos níveis abaixo do solo. As câmeras de segurança, naquele preciso horário, estavam todas em funcionamento – mas o responsável por elas, Seu Ubiratan, costumava prestar mais atenção aos seus e-mails que em fazer o monitoramento.

De posse de todas as chaves, chegar ao elevador central foi relativamente fácil. Porém, para acioná-lo, havia um painel iluminado, figurando os contornos de uma mão direita. Se colocasse ali a sua destra, certamente, em poucos segundos, todos os seguranças da empresa estariam a postos para abatê-lo. O limite de sua autoridade no labiríntico edifício terminava naquela porta.

“Merda! Isso é um abuso! Nem parece que essa história é minha. Hmm.. Ah! Já sei como resolver essa.”

— Pare aí, velho! – disse uma voz vinda do longo corredor atrás de Coronel. A inconfundível imagem de seu chefe imediato, Ricardo Ferreira, aproximava-se com pressa. Quando mais perto, com uma expressão de desprezo impressa no rosto, recomeçou seu discurso – Eu não imaginava que você seria idiota o suficiente para tentar descer até o laboratório secreto. Em todo caso, obrigado, seu decrépito! Eu nunca teria chegado até aqui sem sua ajuda!

— Nem eu sem a sua. – respondeu o vigilante, com um indisfarçável sorriso no canto dos lábios. Sem pestanejar, Zacarias Coronel sacou seu .38 e, com um único e certeiro tiro, estourou o crânio de Ferreira, que não teve tempo sequer de fechar a boca.

“Amador!”

O vigilante arrastou o corpo do chefe até a entrada do elevador. Com força, esticou-lhe o braço do defunto em um ângulo obtuso, acomodando a destra do ex-chefe no local indicado no dispositivo.

Acesso Garantido.

Bom dia, Ricardo Ferreira.

O elevador desceu a uma velocidade absurda, chegando a provocar náuseas no guarda-noturno. Muitos minutos depois, percebeu que a aceleração diminuía até finalmente parar. As portas se abriram com um chiado metálico, e adiante, um corredor muito longo cuja extremidade era um quadrado de luz branca.

O lugar de onde a luz provinha era algo absurdo para os conceitos do velho soldado. Tratava-se de um globo imenso, inteiramente branco, muitas e muitas vezes maior que o prédio na superfície. Era, sem dúvida, a maior e mais impressionante estrutura que já havia visto. Pairando no centro do globo, suspenso por cabos finíssimos, havia um outro, uma esfera espelhada de brilho intenso – que, pelo tamanho, não deveria ser maior que um automóvel.

Assim que entrou nessa câmara fantástica, Zacarias Coronel percebeu que, ao longo de todo o diâmetro daquele colosso havia janelas de vidro, fazendo um anel, à mesma altura em que pairava a esfera espelhada. Por trás dessas vidraças, uma multidão de pessoas, vestindo jalecos brancos e óculos de proteção, parecia esperar para o início de um espetáculo. Sentiu-se como um gladiador, em um bizarro coliseu.

— Meus parabéns, Zacarias Almeida – disse uma voz robótica, vinda como que de todos os lados - Você chegou mais uma vez ao Ponto Crucial. Podemos dar prosseguimento aos testes espaço-temporais?

Confiante, como se toda a sua vida houvesse se resumido àquele instante, ele respondeu

— Eu estou pronto.

— Para onde você quer ir agora?

Sem sombra de dúvida, Zacarias Almeida, vulgo Coronel, respondeu

— Quero ter minha vida de volta.

— O Laboratório Æther agradece a você por sua grande contribuição para a ciência. Tenha uma boa viagem.

Dito isso, a esfera metálica iluminou-se em um instante. A luz que irradiava dela aumentava gradativamente, até tomar todo o ambiente. Zacarias, totalmente cego pela incomparável claridade, sentiu sobre seu corpo uma pressão que nunca experimentara antes. A sensação era de que a radiância que o circundava tornara-se sólida. Não podia ver a si próprio, mas notou que, partindo das extremidades, dos cabelos, das orelhas, seu organismo começou a desintegrar-se. Quis gritar, mas mesmo o som foi tragado para dentro do brilho gelado. Depois de tudo, ficou apenas o branco. A luz. O éter. A última morte de Zacarias Coronel.

***

Dias depois...

***

— Você não devia fazer tanto esforço, Giane. O médico disse para você se poupar.

— Eu estou ótima, Dona Norma. Quer dizer, mamãezinha querida!

— Ok, agora vamos deixar o notebook descansar um pouquinho, sim?

— Peraí, mãe. Já tô quase acabando.

— Isso significa que você vai participar do concurso?

— Ainda não sei. O que eu sei, pelo menos, é que consegui terminar esse bendito conto. Juro que esse aqui quase me matou.