Celinha

Será que tranquei as portas? Isso não é pertinente. Não agora que vou dormir. Homens de meia idade como eu precisam de uma boa noite de sono, somos propícios a enfermidades de tudo quanto a grau. Ainda mais para mim, que nunca me cuidei quando o assunto era alimentação balanceada, exercício físico... Celinha vivia dizendo para eu correr 30 minutos por dia. Ah... E como eu gostava daquela mulher. Celinha fazia o tipo da esposa perfeita para época. Imagine só, 1975, período ditatorial, pós-milagre econômico, o país era comandado pelo general Ernesto Geisel, e Celinha no auge de seus 23 anos. Era linda como poucas. Radiante, seus cabelos encaracolados e negros combinavam com sua pele morena que emergia sobre o corpo mais belo de todas as mulheres que eu havia conhecido. As curvas de Celinha me causam arrepios até hoje. Por que Deus fora tão cruel comigo? Era ma castidade não poder experimentá-la, não poder tocá-la carnalmente.

Celinha no máximo foi minha colega de turma na faculdade. Vale lembrar que em 1975 instituia-se no Brasil a popularização do ensino superior. Nos anos 70, faculdade era coisa séria, não é essa brincadeira educacional do século XXI. E Celinha sabia disso, dava valor aos estudos e discutia em sala de aula os malefícios do regime militar - o que para o momento era demasiado audacioso. Falar mal do governo militar era como assinar sua sentença de exílio./ Nos casos mais bárbaros, de morte.

O que me atraia em Celinha, fora o exuberante corpo, era sua coragem, seu modo independente de ser. É uma lastima ter que dizer isso, mas em 75 a maioria dos estudantes universitários eram homens. Celinha representava uma minoria. Sofria a todo instante preconceito e era taxada de militante da esquerda, por possuir em sua essência uma voz ativa e autônoma, pouco comum para as mulheres do século passado.

Houve uma vez em que eu toquei nos seios fartos de Celinha. Havíamos combinado uma reunião de estudos com outros colegas na casa do Luís, um antigo amigo e colega. Celinha sentou-se ao meu lado, mais precisamente à minha esquerda. A nossa frente havia uma mesa redonda recheada de cadernos e livros. No outro lado dessa mesa estava o Luís, uma colega bigoduda que usava óculos e um Ripe que entrara na faculdade para provar aos pais que era versátil. A caneta que Celinha segurava na mão esquerda caiu no chão. Quanta ironia do destino: a caneta havia caído por debaixo de minhas pernas. Em função da moldura interna da mesa, eu não podia me agachar para juntar a tal caneta. Celinha, então, curvou-se de maneira extraordinária em minha direção, fazendo com que seus seios tocassem minha mão direita que repousava estrategicamente sobre meu joelho. Lembro de como se fosse ontem, apalpei com vontade o seio de Celinha, agarrei com toda a força de meu desejo. Celinha soltou um suspiro de leve, fechou os olhos, juntou sua caneta, abriu os olhos e sorriu para mim. Me apaixonei na hora. Eu estava a amando por ter tocado em seus seios. Que loucura a minha. Na semana seguinte, todo esperançoso, achando que conseguiria algo concreto com Celinha, eu a flagrei aos beijos com Antônio Miranda, filho de um banqueiro corrupto. Do amor passei ao ódio. De mulher afável, para mim, ela passou a ser uma vagabunda. É engraçado eu lembrar de tudo isso com riqueza de detalhes.

Mas agora eu realmente preciso dormir. E as portas? Será que eu as tranquei? Tenho que verificá-las, principalmente a porta que dá acesso ao porão. Lá está o frízer onde guardo há décadas o corpo esquartejado de Célia Fernandes Duarte, a minha eterna Celinha.