A Noite do Predador

Ele disse que esta noite iria me matar.

Não duvido desta promessa; os últimos dias me fizeram crer que ele é capaz de tudo.

Conheço-o desde os tempos de escola: era o esquisitão da turma. Sentava sozinho na primeira carteira do canto, quieto, sem amigos, cara cravejada de espinhas.

As meninas tiravam um sarro de mim, pois a paixão dele não era segredo. Mas eu nunca tive de me esquivar dele, Tenório não tinha coragem para me abordar e revelar seu amor. Melhor assim, eu pensava.

Reencontrei-o ano passado, quando, por aquelas mórbidas coincidências da vida, acabei me envolvendo num caso de agressão sexual. Um estuprador fazia suas vítimas na cidade e a polícia chegou a Tenório. Todas as evidências apontavam-no como suspeito.

A família dele foi atrás melhor advogada de defesa: eu.

Tenório ficou surpreso ao me ver, alegou inocência, suplicou por minha ajuda. Analisei os laudos técnicos e encontrei várias falhas na investigação. Obtivemos um habeas corpus para Tenório, que responderia às acusações em liberdade. A mim, pelo menos, ele havia convencido de sua inocência.

Então começaram os telefonemas de madrugada. Tenório chorava, implorava para que eu fosse encontrá-lo, dizia nunca ter deixado de me amar.

— O que você está vestindo? — ele interrogava nestas ligações — Eu estou pelado... Esperando você.

Eu desligava o telefone, assustada, acuada com a situação na qual havia me enrodilhado. Passei a não atender mais aos telefonemas inoportunos e pedi a um colega que assumisse o caso em defesa de Tenório, pois eu nem me julgava mais apta a representá-lo, tampouco continuava acreditando na inocência dele.

Não sei o que me levou a imaginar que estas medidas serviriam para acalmá-lo. A experiência que eu tinha com agressores sexuais deveria ter me ensinado que estes maníacos quase sempre vão às últimas conseqüências.

Passei a receber cartas em casa, bilhetes no trabalho e, mais de uma vez, avistei Tenório me seguindo.

— Pare com isto! — uma tarde, reagi, ao vê-lo diante do portão de casa. E tomei uma decisão, se no dia seguinte, ele ainda estivesse me assediando, eu contataria a polícia, aliás, era o que eu deveria ter feito desde o início.

Não o vi de manhã, nem no decorrer da tarde. Para mim, tudo havia voltado ao normal, Tenório havia entendido o recado.

Jantei na casa de amigas. No fim da noite, embiquei o carro para entrar na garagem e encontrei Tenório sentado na soleira da porta de entrada, chorando.

Primeiro, tive medo, mas depois, num impulso maternal, desembarquei e me aproximei dele:

— O que foi, Tenório? O que aconteceu?

— Eu estou arrependido, Leda, fui um rapaz muito do filho-da-puta contigo nos últimos dias. Você me perdoa?

Ajoelhei-me diante dele.

— Claro que sim, Tenório. Você está sob pressão. Toda esta confusão, este processo judicial, isto turva os pensamentos.

— Que bom que você me entende, ele disse, me dá um abraço de amigo?

Concordei. Mas, quando eu estendi os braços para enlaçar-lhe os ombros, Tenório me agarrou, tapou minha boa com uma das mãos e com o outro braço me deu uma chave de pescoço que me imobilizou. Arrastou-me até meu carro, eu me debatia, soltava todo o peso do corpo para dificultar o trabalho dele, mas de nada adiantou. Ele me jogou de cabeça contra a lateral do automóvel.

Estávamos em movimento. Apesar da escuridão absoluta, eu tinha certeza que nos movíamos. Minhas pernas estavam dobradas, minha cabeça doía pra caramba. Tentei mexer o corpo, mas o espaço era mínimo. O ronco do motor me fez supor que eu estava no porta-malas dum carro, talvez do meu carro.

Rodamos por muito tempo, quem sabe por horas. O automóvel parou, ouvi a porta se abrindo. Finalmente, o tampo do porta-malas foi erguido. Tenório me fitava com um olhar vazio, tinha uma faca na mão.

— Não faça nenhuma merda, sua vagabunda. Vou te tirar deste porta-malas e você virá comigo. Nem um pio, senão meto esta faca no seu bucho.

Obedeci em silêncio. Estávamos num matagal, pensei que ele me estupraria ali mesmo e depois me mataria, aquele procedimento usual dos depravados. Mas não, ali perto havia um outro veículo. Com a faca nas minhas costas, Tenório me levou até o carro, abriu a porta traseira e retirou um rolo de fita adesiva. Atou-me os braços e os pés, socou um lenço na minha boca e a selou com fita. Outra viagem no porta-malas, mais algumas horas de angústia.

Ele me amarrou numa cama no porão de sua casa. Sem janelas, quase sem iluminação. Arrancou minhas roupas e tentou me violentar, mas não conseguiu. Brochou. Insatisfeito, constrangido pelo fracasso, Tenório me espancou.

— Amanhã, ele repetia, amanhã!

Mas a mesma cena se repetiu no dia seguinte: Tenório, pau mole, surrando-me para extravasar a decepção.

À noite, ele adentrou o porão e sentou-se na beirada da cama. Eu tremia de frio e medo, nua, coberta de hematomas, com fome, supliquei para que ele me deixasse ir embora.

— Não, você não irá a lugar alguma, ele disse. Acariciou meus cabelos, aproximou a boca do meu ouvido e falou, bem baixinho:

— Hoje, um homem veio aqui. Procurava por você...

Comecei a chorar, assolada pela esperança de libertação.

— Eu não vou ser pego, Leda. Amanhã, eu descerei aqui... — ele sussurrava, quase arfando — e vou arrancar a vida deste seu corpo de puta.

Mal consegui dormir. Qualquer ruído, duma goteira em algum canto, de ratos, da cama rangendo, fazia com que eu despertasse. Juraria que ouvia passos, passos de Tenório, aproximando-se da cama e cravando uma faca no meu peito.

Gritei por ajuda, tentei me libertar das cordas até meus pulsos ficarem em carne viva, meus olhos ficaram inchados de tanto chorar.

A qualquer momento, Tenório poderia descer pela escada e vir me matar. Era o meu maior medo, não a morte de fato, mas a expectativa do ato. Aguardar, intermináveis horas, era desesperador.

Já devia ser tarde quando ouvi a porta do porão se abrindo. A cama estava numa posição que vetava qualquer visibilidade. Ele desceu sem acender luz alguma. Parecia hesitar.

Os passos vagaram pela escuridão, ele tateava as paredes. Fiquei quieta, contendo minha agonia. O som de passos aumentava, ele estava chegando perto da cama. Eu tremia, calafrios incontroláveis, queria cobrir minha nudez, este não era um modo digno de se morrer.

— Leda? — ele sussurrou, mas não respondi. Estava aterrorizada demais para conseguir articular uma resposta.

Os passos se aproximaram.

— Leda?

Eu não agüentei, o choro engasgado se libertou. Eu soluçava como quando queria que papai me segurasse no colo porque meu sorvete havia caído no chão — voltei a ter seis ou sete. Ele estava perto, muito perto agora.

— Leda, você está aí?

Mas a voz não era de Tenório, uma outra pessoa estava no porão.

— Meu Deus... — murmurei.

— Vim salvá-la, o homem disse, onde você está?

— Aqui, aqui! — gemi, eu estava protegida, estava a salvo.

Desengonçado, às cegas, o homem desatou as cordas e me vestiu com seu próprio sobretudo.

Ao sairmos do porão, avistei Tenório, amarrado numa cadeira, rosto embebido em sangue, inconsciente. O homem me levou até meus pais, extasiados por me reverem. Eu estava viva!

***

Não foi fácil me recuperar. Tive de me afastar do trabalho por alguns meses, passar um tempo longe da loucura da cidade e da podridão dos seres humanos.

Ontem, visitei o escritório do detetive Vico, o homem que me salvou. Queria que ele me contasse como foi que havia descoberto meu paradeiro.

Vico riu quando lhe fiz esta pergunta:

— Você não tem idéia, moça, do que podemos achar no lixo.

Ele havia encontrado, na cestinha de lixo do meu escritório, um dos bilhetes pervertidos de Tenório, e todas as peças se encaixaram. Uma tarde de surra e o tarado revelou a entrada secreta para o porão.

Tenório será eletrocutado, descobriram que ele já violentou mais de vinte mulheres e assassinou oito delas. Espero que ele sofra muito, mas muito mesmo. Estarei na primeira fila para assisti-lo fritar.