o homem sem rosto - parte final

---- Ou? - quis saber o homem gordo.

---- Ou que, por acaso, encontrou-se com o homem que ele mais odiava no mundo. - completou o rapaz de brinco na orelha.

---- Que se passaria depois? - quis saber o homem que tinha a revista nas mãos.

--- O assassino esperou até ver onde dava a maré para constatar se suas pegadas seriam ou não apagadas pelas ondas, jogou-se na água e foi nadando até o rochedo. No rochedo estariam suas roupas. O mar deve Ter lavado o sangue que havia em seu corpo ou na sua roupa de banho. Subiu ao rochedo com cuidado, vestiu-se, tomou o automóvel da vitima e partiu.

---- Porque teria ele levado o automóvel? - perguntou o velhote atrás do rapaz.

---- Porque? Talvez porque tivesse pressa em partir, ou porque temesse que a vitima fosse logo identificada e as suspeitas recaíssem nele. Talvez tivesse outros motivos. O essencial aí é saber de onde ele vinha. Porque iria tomar banho num lugar tão deserto? Não há sinais de outro automóvel porque, nesse caso, anunciariam. Talvez ele acampasse perto do local do crime, mas aí teria perdido muito tempo para desarmar sua barraca e a levar no automóvel com o perigo de ser vista. Creio mesmo que ele possuia uma bicicleta e a levou no carro. - explicou o rapaz de terno, pensativo.

---- Mas porque roubar o carro? - quis saber o homem gordo, espremendo-se e deixando passar um cliente que acabara de ser atendido.

---- Porque tendo ficado na praia mais tempo do que pensava, temia atrasar-se. Talvez tivesse algum compromisso. Talvez morasse longe e queria voltar cedo. Creio que era esperado para almoçar com alguém.

---- Porque pensa isso? - perguntou o velhote atrás do rapaz.

--- Porque fez tudo para ganhar tempo... poderia fazer parte do trajeto na bicicleta. Imagino que ele devia morar num hotel modesto, porque num hotel importante sua ausência passaria desapercebida e num hotel modesto, ou mesmo numa pensão, onde é comum as refeições serem feitas com todos á mesa, e também é comum todos saberem da vida de outrem, certamente alguém saberia que ele tomava banho naquela praia. Ele deve morar próximo, e nesse caso será fácil despistar a menos que esteja em casa de amigos que tenham interesse em esconder sua saída. Mas o que me parece mais razoável é que ele more num hotel modesto onde sua ausência foi notada mas que não sabem o local da praia em que ele ia tomar banho.

--- Bem pensado! - disse o gorducho.

--- Em todo caso - continuou o rapaz de terno - ele deve morar não muito distante da praia de Armação da Piedade de modo que possa ir até a praia de bicicleta. Será encontrado facilmente tanto mais que há o automóvel.

--- Realmente. E onde terá deixado o carro? - perguntou o homem com a revista.

--- Deve estar numa garagem, esperando que o procurem. - respondeu o rapaz.

--- Que garagem? - tornou o homem

--- Qualquer uma, num ponto oposto aonde ocorreu o crime e do ponto onde mora o assassino. Se precisar dissimular a sua presença em tal hora e em tal lugar, o aconselho a dirigir-se para um ponto oposto do referido local. Eu procuraria o carro no outro lado da praia e no hotel da cidade mais próxima ao cruzamento de uma rodovia. Quando encontrar o carro saberei o nome da vitima naturalmente. Quanto ao assassino deve ser procurado um homem ativo, bom nadador, ciclista viciado, e um pobretão - porque não tem automóvel - que passa as férias nas vizinhanças da praia e que tinha suas razões para odiar a vítima.

--- Formidável! - disse o velhote atrás do rapaz, batendo em seus ombros com admiração! - Você é um verdadeiro Sherlock Holmes!

--- Evidentemente o senhor fala bem mas eu continuo no meu ponto de vista da sociedade secreta. Graças a Deus! Com licença, - disse o homem da revista indo até o balcão para ser atendido.

Havia na fila um homem que durante toda a conversa ficara - pelo menos aparentemente - desligado da discussão. Quando os clientes foram atendidos e se dispersaram fora do banco ele apertou o passo e tocou no braço do rapaz que fizera tão longa demonstração de perspicácia.

--- Perdão, senhor, mas tudo que sugeriu há pouco, me interessa. Sou Ernesto Da Silva e estou trabalhando nesse caso. Quer dar-me seu nome? Talvez necessite lhe falar mais tarde.

--- Claro! Sem problema! - respondeu o rapaz - Ficarei contente em poder ajudar. Eis meu cartão. Pode chamar-me quando precisar.

O cartão na mão do policial dizia:

Pedro Bona Vita - 144 Arcipreste Paiva. Escritor.

Trazia também o telefone da residência do rapaz.

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A banca de revista na praça colocara um cartaz atraente em frente à entrada dizendo; " O HOMEM SEM ROSTO FOI IDENTIFICADO".

Uma outra banca distante apenas duas quadras dali também tinha um cartaz feito à cartolina que dizia. "VITIMA DO CRIME DA PRAIA IDENTIFICADA".

Um rapaz bem vestido, terno e gravata, saia de um restaurante onde tomara seu café matinal costumeiro. Parou na primeira banca e comprou um jornal. Em seguida pôs-se a ler tão absorto que deu um encontrão com um indivíduo apressado que saia de uma loja no calçadão. Pediu desculpas.

O jornal cheio de gratidão para com o crime que lhe proporcionava uma oportunidade de aumentar a tiragem e as edições tão cheias de escândalos políticos dizia;

"A vitima do crime da praia da Armação da Piedade foi Identificada - Assassinado um artista célebre. - A policia em ação atrás do assassino."

O homem de meia idade que foi encontrado morto Segunda-feira pela manhã na praia da Armação da Piedade vestido apenas com roupa de banho, o rosto retalhado por um instrumento cortante, veio a ser identificado. É o senhor Ricardo Muller dono dos estudios Muller, conhecido agente de publicidade em Blumenau.

"O senhor Muller, de 45 anos, passava suas ferias anuais viajando de automóvel. Não levava companheiros e não deixou endereço de maneira que, sem o inquérito hábil do delegado Ernesto , da policia de Florianópolis, seu desaparecimento não teria sido notado senão depois do término das ferias ou seja, dentro de tres semanas. O assassino, naturalmente contava com esse fato e roubou o carro de sua vitima com todas as suas roupas, na esperança de desfazer assim os vestígios do crime, sobrando tempo para poder desaparecer. Infelizmente para ele, as buscas policiais descobriram o carro em uma oficina de Florianópolis onde o criminoso o deixou para uma limpeza do motor e reparação do magneto. O senhor Francisco Spiller proprietário da oficina viu "o proprietário' do carro e forneceu dados para um retrato do mesmo. A policia está na pista e já se fala na prisão do criminoso.

O Senhor Muller trabalhava há quinze anos nos estudios Muller como diretor do atelier. Era muito estimado por seus colegas e seus quadros e cartazes são demasiados conhecidos e admirados pelo publico local.

O enterro se realizará amanhã no cemitério do Vale Laranja, no bairro Itoupava Norte em Blumenau.

Veja a fotografia do senhor Ricardo Muller."

Pedro Bona Vita viu a foto e essa não o interessou.

Era uma dessas fotos desprovidas de personalidade que revelam apenas superficialmente os traços. Achou que o senhor Muller era mais magro do que gordo, de aparência mais de comerciante que de artista, de fisionomia mais sombria do que sorridente. Entretanto uma fotografia da praia da Armação da Piedade, que marcava com uma cruz o local em que foi encontrado o cadáver, pareceu lhe interessar. Estudou com atenção soltando algumas exclamações porque a fotografia correspondia em todos os seus detalhes às deduções que formulara no banco. Examinou a fotografia antes de chamar um taxi e depois de sentado dentro dele continuou a observá-la interessado.

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----- O senhor teve a bondade de encorajar-me a uma visita. Portanto tomei a liberdade de vir visitá-lo hoje! - disse o delegado bebendo demasiadamente rápido para ser um apreciador de bebidas. - Como deve Ter ouvido pela Tevê ou mesmo lido nos jornais já encontramos o automóvel da vitima.

Pedro o cumprimentou pelo sucesso.

---- Agradeço ao senhor pelas dicas e conselhos, - continuou o policial humilde e generosamente, - o que também não quer dizer que eu não tenha chegado a mesma conclusão que o senhor. E estamos na pista do nosso homem.

--- Creio que esse indivíduo não é de fora. Não me diga que é um traficante ou mesmo de alguma gangue...

--- Não rapaz, disse o policial, penso que aquele amigo do banco está com a cabeça cheia de romances de antigamente. Mas o senhor se enganou quanto a idéia da bicicleta.

--- Como? Tem certeza?

O Delegado sorriu amistosamente.

--- Não há muitos motivos para os crimes. Dinheiro ou mulheres. Mulheres e dinheiro. Esse Muller era um folgadão, gostava de festa. Possuia uma espécie de mansão na estrada de acesso a praia de Armação de Piedade com uma deliciosa morena para aquecê-lo.

--- Pensei que estava viajando pelo litoral de automóvel...

--- viajar... é o que dizem os jornais... Imagine só, viajar de carro, alguém como ele. O velho não queria que ninguém soubesse aonde ia. Por isso a mulher, compreende? Eu a vi, muito bonita para quem gosta de mulher magra. Eu gosto das mais fofinhas.

--- Não quer colocar mais uma almofada? Esse sofá já está na hora de trocar.

--- Não, obrigado. Sei que posso contar com vossa discrição. Me parece um homem de bem. Essa é a história real. Essa menina tinha outro namorado ou o que seja nos termos atuais e ela abandonou este para ficar com Muller. O outro desconfiou e desembarcou Domingo à noite no bar que é a rodoviária da Armação da Piedade. É um vigia de cabaré que trabalhava numa casa noturna chamada "Casa da Luz Vermelha", e a guria também trabalhou lá. Preferiu o senhor Ricardo Muller e nós sabemos bem o porquê: carteira mais cheia, mais gorda, e uma chance de outra vida melhor, essas coisas todas. O vigia chegou e os encontrou-os jantando. Aí é que começa a tragédia.

--- A policia sabia disso?

--- como poderíamos saber? Nem que estivesse de olho em todos os que passam o Domingo na praia... a mulher estava na casa do velho desde uns tres meses atrás. Muller vinha aos sábados e voltava na Segunda-feira. Como ele chegava a noite e saia ainda de madrugada ninguém na localidade o conhecia, ninguém a não ser uma velhota meio cega que faz os serviços domésticos na cada onde está a tal mulher. Depois como reconhecê-lo se seu rosto estava todo retalhado? Se pensaria naturalmente que ele havia voltado a cidade. E foi o que também pensou o vigia. Como disse houve uma cena terrível e o vigia foi posto na rua a pontapés. Provavelmente esperou a hora de vingar-se: o dia seguinte quando Muller foi tomar banho, sua hora chegou.

---- Estrangulou-o?

--- parece que sim.

--- E o rosto? Retalhou a faca mesmo?

--- Não. Penso que o fez com pedaços de garrafa quebrada. Há muitos cacos nas praias.

--- Então somos forçados a recomeçar tudo. Se o vigia esperava Muller para o matar porque não levou uma arma, em lugar de confiar em suas forças, visto que já fora dominado anteriormente?

O delegado balançou a cabeça.

--- Loucura! Esses estranguladores são todos uns loucos. Não raciocinam com a cabeça, ainda mais quando o ciúmes e o ultraje estão presente em sua cabeça. Isso não impede que o vigia seja o criminoso. É claro como água para mim...

---- e onde está esse vigia?

--- Fugiu. Essa é a prova evidente de sua culpa. É por isso que estou aqui. Ele não pode sair do país. Telefonei para todas as delegacias do estado para que o prendam. Conseguimos na "Casa da Luz Vermelha" uma grande quantidade de fotografias. Espero uma noticia para breve. E estou me demorando muito aqui em sua casa. Muito obrigado por me receber.

---- O prazer foi meu, disse Pedro levando o delegado até a porta de sua casa.- Fiquei muito contente com sua visita.

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Na manhã do dia seguinte em Florianópolis Pedro Bona Vita viu o repórter policial Celito Staimbach que tinha um espaço no jornal local além de uma pequena participação no jornal televisivo local. O repórter apoiava suas redondas formas no balcão do bar. Celito saudou o escritor alegremente e pediu dois aperitivos. Sentaram-se a uma mesa em um canto do bar.

Depois das costumeiras discussões acerca de bebidas e mulheres e de quem pagava a conta, Pedro tirou do bolso "as novidades".

--- Você poderia conseguir no jornal uma cópia conveniente dessa foto? - perguntou ele mostrando uma fotografia da praia de Armação da Piedade.

Os olhos curiosos de Celito Staimbach encheram-se de espanto.

--- Me diga, o que você sabe sobre esse crime? Preciso de noticias sensacionais e novas para meu jornal. A policia parece meio desnorteada.

--- Não sei de nada. Preciso da fotografia para outras coisas.

--- Tudo bem! Você a terá. Pedirei a Marcelo, meu fotógrafo. Agora mesmo irei com ele até os estúdios do senhor Muller. Hei, venha conosco! Você conhece melhor essas coisas de Arte e cultura. Me disseram até que é colecionador...

--- Não sou colecionador de cartazes...

--- Não se trata de cartazes rapaz, mas sim de um retrato de Ricardo Muller feito por um pintor do estúdio. Foi uma secretaria da casa que me falou nele. Uma moça chamada Rúbia Menexel. Ela disse que o pintor, um rapaz chamado Rinaldo não quer que ninguém veja sua obra-prima mas ela arranjará para que eu a veja. Na falta de novidades um retrato inédito vale mais do que nada.

---- Pois bem sr. Staimbach, eu irei junto com você. - se interessou o escritor.

O tal pintor Rinaldo, provavelmente fora prevenido pela garota Rúbia, porque ele mesmo recebeu os visitantes com um ar sombrio e resignado.

----- Os diretores do atelier provavelmente não gostarão nada dessa visita mas eles estão tão preocupados que perdoarão esta irregularidade.

Rinaldo era um homem de fisionomia inquieta e morena. Pedro deu-lhe mentalmente quarenta anos, aproximadamente. Notou as mãos finas e delicadas, porém enérgicas e fortes, se bem que uma delas estivesse envolta em gaze.

--- Está ferido? - inquiriu ele- É pena. As mãos de um artista são o seu ganha pão. Exceção naturalmente para os artistas manetas...

--- Não é nada - respondeu o pintor, mas tenho que resguardá-la contra o envenenamento pelo óxido de chumbo, sempre possível nos estudios como esse. Aqui está o retrato. - mostrou a peça pintada no fundo do atelier- Desnecessário será dizer que o modelo o achou péssimo e não o quis aceitar por preço nenhum.

--- Não gostou dele? - perguntou o curioso Celito Staimbach.

--- O achou horrível, disse o pintor que pegara a tela escondida atras de uma pilha de cartões e a colocou no cavalete vazio.

O jornalista aproximou-se da tela examinando atenciosamente a figura de um homem vivo, como a querer examinar os pensamentos da figura pintada. Visto de perto o retrato tornava-se como um mosaico de pontos e linhas coloridas. Celito Staimbach sentia que para o pintor, aquela figura humana era um aglomerado de nódoas verdes e violetas. Recuou dois passos e disse lentamente:

---- Ele era assim mesmo? Diacho! Os fotógrafos o embelezavam. Mas ,enfim, - levantando os ombros - confesso que não entendo de pintura. Esse retrato causará algum escândalo, hein Rinaldo? Dará duas colunas na primeira página. Mãos a obra Marcelo. O pintor se retirou para atender um telefonema.

O fotógrafo visivelmente indiferente a todas as considerações de arte, bateu as fotos.

O jornalista virou-se então para o escritor.

---- Como ele era feio! O que me diz da pintura? Boa?

---- Excelente! - respondeu Pedro Bona Vita - Pode enche-la de elogios. O Senhor Muller está sinistro nessa tela. Creio que gostaria de nunca o terem pintado.

--- Como aquele senador que tinha uma tela com o próprio rosto pintado, e esta tela demonstrava tão claramente sua natureza intima, seu caráter, que decidiu destruir a tela que expô-la aos olhares do público. Rinaldo que havia se afastado por alguns minutos, voltou para junto deles.

--- A quem pertence esse retrato? - perguntou Pedro Bona Vita. Ao senhor ou ao herdeiros do Sr. Muller?

--- A mim, quer dizer, pelo menos eu penso assim. Muller se recusou a aceitá-lo depois de o Ter encomendado.

--- Como assim? - quis saber o jovem escritor.

--- Ele vivia dizendo que queria posar para mim1 Era meu patrão.. fez um muxoxo com a boca - sabem como é! Acabei fazendo sua vontade, mas, como não lhe fiz o preço desejado o senhor Muller terminou me deixando com o quadro na mão.

--- você tem uma técnica bem refinada e pessoal, disse Pedro. Já expôs seus trabalhos alguma vez?

---- Nunca expus em nenhum lugar de destaque.

--- Sério?!! Ora, pois me parece que vi uma água marinha sua em Massiambu ou será em Balneário Camboriú?

--- Ah, deve Ter sido em Balneário Camboriú. Havia me esquecido. Deixei duas telas em um estúdio de um amigo.

--- O que acha de me vender esse retrato? - disse então o rapaz para o pintor.

Rinaldo olhou espantado e bem sério para o rosto do jovem procurando ler algo na fisionomia de Pedro Bona Vita.

--- Naturalmente que se desejar expor este trabalho eu o cederei pelo tempo que julgar necessário.

--- Não é isso, disse o pintor, Mas... mas também não gosto deste retrato... preferiria...

--- Ora, que é isso! È uma obra-prima!

--- Não! Não parece em nada com o original.

--- Que importa isso? Tal como está, o considero tão bom que se fosse retocado perderia todo seu valor.

O pintor parecia um tanto aborrecido com a insistência do jovem escritor.

--- Reflita melhor. Faça seu preço e depois me dê sua resposta. Eis meu telefone. - E anotou em um papel o número de sua residência.

Deixando o atelier, Pedro, Celito e o fotógrafo encontraram vários empregados que saiam para o almoço. Uma moça que se atrasara intencionalmente se aproximou deles próximo do elevador.

--- E então? Gostaram do quadro?

--- Rúbia? - perguntou o escritor.

--- Muito obrigado pela ajuda, disse o jornalista Celito Staimbach. Você lerá algo a respeito amanhã.

--- legal! - disse ela não contendo a alegria - Esse caso impressionou todos nós, principalmente a mim que sou leitora assídua de contos e revistas policiais.

--- Pois então pode ficar mais alegre ainda. Apresento-lhe nada mais nada menos que... Pedro Bona Vita, o escritor de contos policiais mais conhecido do nosso estado.

A moça sorriu. A alegria e o orgulho a emudeceram.

--- Prazer em conhecê-la! Poderia me dar a honra de almoçar comigo? - disse o rapaz apertando suavemente a mão de pele fina e macia esticada para ele.

--- Não sei se posso... começou a dizer Rúbia Menexel.

--- Ora, que é isso Rúbia, disse Celito, Pedro é gente boa. Pode confiar nele.

--- Não é isso, protestou a moça. Não sei se aceito porque... estou mal vestida. É impossível se vestir bem para trabalhar com tintas e todas essas outras coisas num lugar como esse.

--- Está encantadora! Sou da opinião de que a roupa não vale nada. O que se quer é o que ela veste, o que ela esconde! Venha, vou levá-la para o "Savoia".

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------- Naturalmente, disse Rúbia Menexel, com a boca cheia de ervilha e carne assada, eles querem convencer a todos que o senhor Ricardo Muller era muito estimado. Todo mundo está alegre por se ver livre dele. Era um safado, ruim como o diabo. Invejoso e mesquinho, procurava tirar o merito de todos para vangloriar-se com o trabalho alheio. Os infelizes pintores do estudio sofreram muito nas mãos dele. Acho, senhor Pedro, que a melhor maneira de se julgar um chefe é ver como o consideram seus empregados. No estudio o ar era pesado demais. Para nós, mulheres, que somos mais perspicazes que os homens, era até assustador o clima no trabalho. Eu, por exemplo, sou particularmente sensivel e intuitiva; tenho um tipo de sexto sentido.

--- Não duvido disso, disse o escritor, há certas mulheres que só de olhar adivinham...

--- É um fato, continuou a moça. Se o senhor Muller me ouvisse iria escutar muita coisa. O Senhor não imagina como ele tratava seus subalternos. Quando era obrigada a ir a sua sala, fazer qualquer serviço, realizava-o depressa. Nada mais humilhante do que a maneira com que ele nos tratava. Era tão mau e desagradável que todos nós o odiávamos. Não tenho nenhuma pena do que lhe aconteceu.

--- O que acha da tela? Parece com o original? - quis saber Pedro.

--- Muito! respondeu a moça - E por isso mesmo ele o odiava. Não gostava de Rinaldo mas intimamente lhe reconhecia o talento e a idéia de possuir um lindo retrato pintado em troca de um pedaço de pão o encantava. Rinaldo não podia deixar de pintá-lo. Se fizesse isso seria mandado embora.

Pedro balançou a cabeça contemplativo.

--- Isso seria um desastre para um pintor do valor de Rinaldo. - disse por fim.

--- Pobre homem. Os bons artistas nem sempre vendem suas obras e além disse ele queria se casar. Por isso é que aceitou o emprego. Ele me falou dos seus projetos. Sou uma dessas mulheres a quem os homens gostam de fazer confidências. Talvez não seja tão bonita para agradá-los fisicamente, mas os consigo fisgá-los com minha simpatia e compreensão. Pelo menos me procuram para alguma coisa, não importa que seja somente para conversar.

--- Ora que é isso. Ainda é muito bonita! - o jovem escritor encheu mais uma vez o copo de Rubia Menexel.

--- Oh não. Muito obrigada. Não tomarei mais nenhuma gota! Quer ver-me bêbada? - sacudiu a cabeça, como que arrependida. - Acho que falei demais. Preciso voltar ao trabalho. Já é tarde.

--- Não. Tome um café! - disse então Pedro - Lhe fará bem. E não se preocupe. Não falou demais, absolutamente. Sua descrição da vida no estudio me divertiu. A desenhou magistralmente. E agora sei porque odiavam o senhor Ricardo Muller.

--- Odiavam no trabalho, corrigiu a moça, em tom enigmático.

--- Como assim?

--- Talvez o amassem... fora do trabalho... Alguns amigos meus o encontraram certa noite em um local e me contaram coisas interessantes...

--- por exemplo? - quis saber o escritor.

--- O velho gostava de cultivar botõezinhos de rosas... falava que gostava de viajar de automóvel, turismo dizia... turismo coisa nenhuma! Ele disse um dia que havia ido ao Uruguai, mas foi incapaz de dizer a maneira de se viajar até lá. Sabe... as estradas, os hotéis... Nunca deixou um hotel próximo a Florianópolis onde fazia farras com algumas... modelos...

Rubia bebeu seu café, colocou a xícara na mesa e declarou peremptoriamente.

--- Agora eu tenho que ir senão chegarei atrasada. Até outra vez senhor Bona Vita. Muito obrigada pelo almoço.

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--- Disseram-me que o senhor comprou uma tela, disse o delegado Ernesto da Silva.

--- É verdade! - disse o jovem escritor. E é uma bela tela como pode ver. - disse mostrando o quadro para o homem da lei. Sente-se Doutor, eu o convidei porque tenho uma estória para lhe contar.

--- Ora essa, eu também tenho uma estória para lhe contar.

--- Pois como visita eu lhe dou o privilégio de contar a sua estória primeiro. Vamos ouví-la de bom grado.

--- Não, que é isso. A casa é sua e a palavra também. O senhor tem boa prosa. É muito prazeroso ouvi-lo falar. Por favor, não se faça de rogado.

Dito isso o delegado sentou-se.

--- A minha estória é como uma ... uma espécie de conto de fadas...

--- Pois bem, por isso que é um prazer ouví-la de viva voz. Continue sim..

--- Era uma vez - começou o escritor- um...

--- O início é clássico dos contos de fada- cortou o policial.

--- Era uma vez - recomeçou Pedro - um pintor. Excelente pintor, mas a fada má dos sucessos financeiros não fora convidada para seu batizado. Então... ele teve que contentar-se em pintar cartazes. Sempre, como nos contos de fada, ele desejava casar com uma princesinha pura e bacana. Infelizmente, era seu chefe um homem muito mau, com a alma baixa e repugnante, indigno do posto que ocupava, enquanto que outros melhores que ele morriam por um pedaço de pão debaixo de alguma ponte ou mesmo em alguma banca de camelô. Esse homem sofria de um complexo de inferioridade e julgava que a melhor maneira de curar-se era transmiti-lo aos outros ao seu redor. Tornou-se com isso um tirano. Ainda não contente de vangloriar-se e tomar por seu os trabalhos de seus auxiliares, ele os humilhava de tal maneira que terminaram com complexo de inferioridade mais profundo que o do chefe.

--- Hii, conheço vários tipos dessa espécie, disse o delegado. Raramente acabam bem...

--- Esse homem entretanto terminaria bem se não tivesse a idéia de encomendar seu retrato ao pintor. Ele o desejava para presentear a dama de seus pensamentos, mas queria pagar por isso uma mixaria. Esqueceu que sejam quais forem as concessões que se possam arrancar de um artista, ele é obrigado a ser sincero para com sua arte. Neste ponto nenhum diverge.

---- Talvez. Eu conheço muito pouco da vida desses artistas. - disse Ernesto.

---- Pois pode acreditar no que falo. Logo o pintor retratou o modelo tal como ele o via, com sua alma avarenta, seus instintos mesquinhos e egoístas, assim todos poderiam reconhecer a repugnância daquele homem.

Nisso o delegado levantou-se e olhou melhor para o quadro com a pintura.

--- Não parece uma pessoa boa.

--- Mas todo pintor quando termina um retrato guarda na retina a fisionomia de seu modelo, em uma visão estritamente particular. O rosto deixa de ser, para ele, mutavel. Como posso explicar melhor isso? Veja; para um jogador de futebol, um atacante que faz gols, a paisagem que está ante seus olhos não é feita de rios ou pessoas, gramados ou torcedores. Ele só vê um entrançado, todos seus sentidos estão dispostos de maneira a que visualize a posição da baliza, do gol, e só assim ele pode chutar sabendo de antemão a localização para onde o pé deve mandar a bola. Não vê o campo, os torcedores, a dimensão exato do local onde se encontra. Só o que importa é a localização das traves.

--- Sei disso. Joguei futebol quando mais novo. - disse o policial.

--- Pois então, era assim a sensação que o meu herói experimentava diante da figura execrante, mas da maneira adversa do goleador que vê o gol como uma meta a atingir, já este meu herói tem essa figura odiada na retina e quer fugir dela mas não pode pois a tinha ante os olhos todos os dias e dias inteiros. E se é um rosto que ele odeia, aumentará esse ódio e o tornará ainda mais odiado a cada vez que ver esse rosto. Como um músico odiaria um orgão defeituosos que gemesse indefinidamente a mesma toada e apresentasse sempre as mesmas notas falsas... Bem, ele não podia fugir mas pelo menos, poderia deixar de ve-lo durante as férias

--- Por isso que eu pedi para ouvi-lo primeiro. Descreve as coisas de uma maneira gostosa de se ouvir..

--- Era isso que experimentava meu herói diante da figura execrante que tinha todos os dias a sua frente. Mas sua alegria eram suas férias. Ele tinha descoberto um lugar tranquilo e afastado de tudo e todos, onde ninguém ia e chegou até a desenhar e pintar esse recanto. Ah, por falar nisso, tenho outra coisa para lhe mostrar Doutor Ernesto. Venha.

Remexeu num armário e trouxe uma pequena tela marinha.

---- Eu a adquiri em Balneário Camboriú. Está assinada apenas por duas iniciais. R. C. mas reconhece-se o autor.

O Delegado olhou espantado para o quadro que tinha diante de seus olhos.

--- Mas... mas... é a praia da armação da piedade.

--- Exatamente!

--- O pintor é..?

--- Rinaldo, mas na minha narrativa continuarei a chamá-lo de pintor. Ele arrumava suas coisas em uma bicicleta e ia repousar os nervos agitados nesse recanto querido afim de passar semanalmente seu Sábado e Domingo. Hospedava-se num hotel modesto da vizinhança e ia todas as manhãs, de bicicleta, tomar seu banho de mar. Não dizia no hotel o lugar para onde ia porquê considerava isso um segredo que ninguém precisava saber.

Um belo dia... precisamente uma Segunda-feira - a voz de Pedro tornou-se lenta e hesitante - o nosso pintor partiu, como de costume. A maré estava baixa mas ele correu sobre os rochedos até a piscina natural onde tomava seu banho. Ele estava se divertindo com a água limpa e refrescante que o envolvia, e ali esquecia sua mágoas dentro do riso sonoro do mar.

--- Dentro do quê? - espichou a cabeça o delegado.

--- Krematon anarithom gelasma... citação de um clássico. O ruído jovial da maré enchente batendo nas pedras chegou aos ouvidos de Prometheu, enquanto na montanha deserta um abutre devora-lhe o fígado. Lembro-me de haver discutido esse ponto, numa aula, com um velho professor que quase enlouqueceu de raiva...

--- Para mim isso tudo é grego, disse o policial.

--- Me desculpe. Tenho o costume, mau hábito de misturar lembranças pessoais em narrativas de outra espécie. Voltemos pois a nosso caso. Dizia eu que o pintor nadou e dirigiu-se enfim para a praia. De repente viu um homem em pé, nesse lugar bem amado, que era para ele a terra da felicidade e da paz, um lugar sagrado. Dirigiu-se nadando ao encontro do homem, maldizendo esses dias de festas em que todo mundo deixa suas casas e corre para as praias com seus maços de cigarro, suas cadeiras e as ridículas sungas. Súbito, reconheceu no outro homem o tipo que ele mais odiava no mundo. Nessa linda manhã de sol o calor batia aquecendo o cérebro... Nesse momento, o outro homem gritou-lhe; hei! Que diabo está fazendo aqui na minha praia? - ele ergueu o olhar. Era demais!! A pessoa mais odiada no mundo estava ali, á sua frente, lhe tirando o único e puro prazer que conseguira nos últimos anos. O pintor via seu santuário profanado e ainda o insultavam. De um salto avançou para a garganta do inimigo. Notou o senhor que era uma garganta magra e fibrosa com uma saliente massa?

A água lhes banhava os pés enquanto lutavam. Os dedos do pintor cravavam-se nessa carne que ele conhecia bem. Riu, vendo os traços tão familiares alterarem-se, adquirirem uma cor violeta, os olhos esbugalhando-se como a saírem das órbitas, a boca contorcer-se e a lingua cair, morta, fora dos lábios. Espero que estes detalhes não o impressionem delegado?

---- Não, disse rindo o delegado, admiro-o muito. Tenho a impressão que estou lendo um livro.

---- Obrigado! Continuemos, pois bem, depois de haver estrangulado o inimigo, o pintor saiu na praia exultando de alegria. Mas lhe faltava um complemento a essa alegria. Ela estava incompleta. Percebeu então na areia, um caco de garrafa, pontiagudo e serrilhado. O pegou nas mãos, e se pôs a desfigurar o rosto do cadáver até o tornar irreconhecível. Seu ódio era tamanho que acabou cortando-se e nem percebeu sua dor. Exausto, tornou a deitar-se e começou a tremer de medo e a preocupar-se. Durante a luta os dois homens haviam se aproximado do mar de maneira que as pegadas estavam visíveis. O sangue respingara nas roupas e ele tinha uma das mãos cortadas. Mas logo a maré começou a subir. Então o assassino viu-a subir, passar nas manchas de sangue, apagar as marcas dos pés e lavar todos os vestígios de sua loucura.

Como a maré enchia ele se atirou ao mar vendo as manchas de sangue serem apagadas pelas águas. Nadou então até os rochedos. Pensou que devia Ter jogado o cadáver ao mar e que a maré o carregaria. Mas era muito tarde para isso. Faltava-lhe coragem para esse último ato agora que sua loucura se fora. De mais a mais sua ausência prolongada poderia ser notada pelos outros. Correu pelos rochedos, até onde estavam suas roupas, não deixando pegada alguma. Vestiu-se, pegou o carro da vítima, pôs sua bicicleta no carro e partiu. O senhor já sabe como eu, para onde ele foi."

O Delegado Ernesto Silva sorria amigável e ironicamente.

--- posso perguntar-lhe, meu caro, se verificou a presença de Rinaldo na praia da Armação da Piedade?

--- Não. Isso compete ao senhor e a policia. Contei-lhe uma estória e juro que preferiria nada Ter falado.

--- Não precisa tanto Pedro. - o policial deu uma risada sonora. - Esta é uma linda estória e o senhor contou-a magnificamente. Mas acertou, a qualificando de conto de fadas. Pegamos o italiano, o vigia, lembra? Francisco, era o seu nome. Foi ele quem matou o velho.

---- Como??! Ele confessou o crime?

--- Não. Se matou e deixou uma carta para a mulher, pedindo-lhe perdão. Sabia que a policia o procurava. Os jornais estragaram tudo. Suicidou-se para fugir a condenação. Culpa dessa imprensa que previne os criminosos do que lhes vai acontecer. Não gostei que Francisco tenha se matado... mas... - deu de ombros - Agora tenho de ir. Fiquei impressionado com sua estória senhor Pedro e ouça meus conselhos; continue a escrever que é o que melhor faz.

Depois da partido do policial, Pedro ficou algum tempo parado em frente do retrato de Ricardo Muller.

--- Um conto de fadas hein?! - murmurou ele - Eu poderia provar a verdade, mas... ah, para quê? Muller era um bandido e os bons pintores são tão raros hoje em dia.