ANTOLOGIA MACABRA

Márcio corria entre as ruelas da vila. Sua respiração era ofegante, e suas pernas perdiam as forças. Ele temia que a perseguição estivesse prestes a chegar ao fim, e esta notícia não lhe animava. As vias estreitas, de casebres de alvenaria, amontoados uns sobre os outros parecia engoli-lo no breu da noite que começara de forma animada. Não eram dez horas quando deixara sua namorada na entrada do prédio depois dum jantarem juntos após a saída do trabalho. O frango à Califórnia havia servido para redobrar suas forças depois de duas horas no motel. Jantaram ali mesmo, comemorando o simples fatos de estarem juntos.

Mas havia rigidez na família de Mônica, e mesmo ela há pouco ter chegado á casa dos vinte anos, seus pais não toleravam saídas muito demoradas de casa, principalmente nos dias de semana. Então a alternativa dos jovens era uma escapada rotineira depois do horário de serviço, já que ambos trabalhavam em escritórios do centro. Beberam Martini. Ela gostava da bebida, pedida certa nas noites de quarta-feira, dia duma rotina programada do jovem casal. Ele preferia vinho, mas não confiava em vinhos de motéis. Assim acompanhava a garota na bebida doce. De vez em quando apimentava o encontro misturando a doçura do “drink” ao gosto salgado da pela de sua amada. Deixava o líquido escorrer na escultura sinuosa, dourada, e nua que ele tanto gostava.

Talvez e, tão somente por estas lembranças ele alcançava forças para sua fuga desesperada. Além de medo, havia arrependimento em seus olhos. Não precisava estar ali, pensava. Não havia motivos para depois de um dia como aquele ter se jogado ao subúrbio em busca do que não precisava. Ele sabia disso, não era viciado, mas aquelas visitas esporádicas à “boca” eram carregadas de perigos, que ele ignorava toda vez que ia buscar refugio no brilho fantasioso do pó branco.

Mas era tarde para arrependimentos, e ela jamais soubera, mas na verdade, mesmo que fizesse diferente, morreria naquela noite. Alguém o perseguia. Estava decidido em matar, no vilarejo ou no recôndito de seu apartamento, o assassino não pouparia sua vida. Então a Márcio restava apenas fugir, já que não havia uma única alma para auxiliá-lo, pois no lugar onde andava pessoas de bem não se atrevem a bisbilhotar o que acontece na rua após o sol fugir no horizonte. A ele restava a companhia de cães e gatos de rua, das sombras que espreitavam a noite, e seu perseguidor.

Fazia algum tempo que o ser misterioso o vigiava. Márcio não havia percebido, mas há alguns dias vinha sendo seguido. Ele chegou a desconfiar um pouco antes no motel, mas suas atenções estavam voltadas para outros objetivos, e isso naturalmente cega as pessoas, que não possuem o instinto do perigo como as aranhas. Só percebeu quando uma camionete o abordou um pouco antes de chegar ao subúrbio. Levou um tremendo susto quando o utilitário avançou sobre seu automóvel jogando-o contra uma mureta. Depois de frenagens e barulho de lata contorcida, ele viu descer do outro carro um homem alto, de vestes negras, e face oculta pelas sombras da noite e pela falta de iluminação, além é claro, daqueles óculos capazes de esconder quase que metade do rosto do homem, que caminhava em passos lentos e terrivelmente ameaçadores.

Márcio pode ver que ele empunhava uma enorme faca, e isto lhe deu a certeza da necessidade da fuga, e logo se desatrelou do cinto de segurança e pôs-se a fugir, e em busca de ajuda, que não encontrou. Corria muito, e quando deu por conta estava no coração do bairro pobre, e que ocultava além de seu assassino, outros perigos. Aquele lugar definitivamente não era recomendado á adolescentes de classe média, usando tênis Nike, e camisa lacoste.

O suor escorria-lhe pelo rosto. A noite era abafada e úmida, oprimindo ainda mais o fugitivo. A cada dez metros ele olhava para trás, e via a imagem de seu algoz correndo em sua caça, como os leões caçam suas presas nas savanas africanas. Ele não podia cometer um único erro, pois seu predador não lhe permitia descansar, e a cada minuto parecia mais próximo. Uma batalha psicológica e silenciosa se travava naquelas ruas de terra batida. E nestes casos a vantagem sempre esta ao lado do predador. Este possui uma vantagem que parece óbvia, mas nem sempre é comentada: apenas ele tem o poder de acabar com a situação a qualquer momento. Já a presa pouco pode fazer, a não ser continuar fugindo, até que o seu perseguidor desista, ou por um golpe de sorte consiga escapar das garras de quem o persegue, o que quase nunca acontece.

Márcio não fugiu à regra. Como presa acuada, não percebeu as armadilhas do terreno, e seu pé encontrou um buraco, e seu corpo se estatelou no chão. Antes que tivesse tempo para se reerguer, sentiu o calor do corpo que se aproximava. Teve apenas tempo para olhar para o rosto desconhecido que o perseguia, e suplicar por sua vida. Em vão. A faca rasgou-lhe a garganta, fazendo jorrar sangue sobre o chão. O homem misterioso retirou do bolso de seu jeans negro um pedaço de papel, onde uma lista escorria pela página. Havia nela vinte e sete nomes. Com uma caneta fez uma marcação positiva no nome de número um, e ergueu o corpo falecido sobre seus ombros, que levaria a algum lugar terminar o serviço, já que sua satisfação ia além de simplesmente matar. Ele queria brincar...