Um conto misterioso - parte 04

Vendo o estado dos meus pés o velho me arrumou um velho par de botinas que carregava na carroceria.

---- É para os peão que vão limpar o chiqueiro lá em casa. Mas é melhor que nada.

Quis me arrumar uns trocados, mas achei que estava indo longe demais.

---- Olha, eu não quero problema. Pega essa grana e some daqui antes que te aconteça coisa ruim. Tenho uma família pra criar e...

----- Ei, espera ai...o que o senhor está pensando?

----- Você é moço bem apessoado. Aqui tem gente muito ruim. Gente graúda e eles não gostam de gente de fora. Pega o dinheiro e vai até Massaranduba, lá você procura um telefone.

---- Mas...não ia me deixar no posto?

---- Mudei de idéia! Vosmice não tem dinheiro pra comida, não tem onde drumi. Então vou te deixar no ponto de onibus que vai até Massaranduba. Lá tem minha irmã. Ela tem uma padaria. Lhe diga que o irmão Zé de São Pedro lhe enviou.

Eu agradeci comovido a ajuda daquele velho. Por pessoas assim é que valia a pena lutar.

Me deixou debaixo de uma sombra gostosa e fresca de uma enorme mangueira.

Antes de voltar ainda me fez prometer não falar com ninguém a não ser com sua irmã Ana Maria.

Alguma coisa naquela região amedrontava aquele pobre homem.

Enquanto esperava o ônibus sentei-me em uma pedra a beira da estrada poeirenta e com um graveto tentei tirar os restos de esterco que estavam na botina que ganhara.

Comecei a pensar o que minha irmã estaria pensando que me acontecera. Eu sempre quisera fazer uma viagem para o norte, mas nunca imaginar me encontrar em situação idêntica a que agora vivia.

Estava em um lugar desconhecido, onde não conhecia ninguém e onde alguém havia me deixado a mercê da sorte, talvez para morrer.

Logo o ônibus apareceu e procurei um lugar lá dentro para mim. O dinheiro que o velho me deu foi o exato preço da passagem até Massaranduba.

Preocupado com minha aparência antes de entrar no veículo, lá dentro essa preocupação desapareceu. Estava lotado, com muitas pessoas de pé. A maioria eram colonos. Se percebia isso pelas suas roupas e também pelas conversas que travavam.

Me ajeitei de pé, no corredor, próximo a um banco onde um casal e duas crianças estavam, juntamente com uma troxa de roupa e dois sacos que pude verificar eram tudo o que tinham.

O rosto cansado daquelas pessoas e as histórias tristes que ouvi durante a viagem me emocionaram a tal ponto que a muito custo segurei as lágrimas.

Muitos deles estavam indo embora de terras demarcadas e arrendadas pelo Governo Federal. Segundo eles havia duas semanas que uma turma de homens visitava as casas dos camponeses mais pobres e lhes oferecia uma quantia irrisória pelas suas terras e lhes davam apenas doze horas para pensarem. Se ao voltarem o proprietário se negava a vender-lhe as terras eram surrados e maltratados de todas as maneiras até que assinavam documentos passando as suas terras para os infratores.

Duas semanas. Seria pura coincidência?

Em uma parada, entrou uma moça com uma criança no colo e conseguiram arrumar um lugar para ela sentar-se. Também entrou nessa parada um homem de chapéu de coco preto e com um jornal na mão. Estava muito bem vestido e contrastava conosco dentro do ônibus.

----- Olá pessoal! - disse ele ao motorista - Então estão todos aqui?! Que bom! Acho que vou com vocês uma parte do caminho. Sabe como é?

Eu percebia medo e raiva nos olhares que os colonos dirigiam ao homem postado na porta do ônibus.

----- Queremos nos garantir de que vão mesmo embora! E não adianta ficarem me olhando com essa cara de fome. Todos receberam pelas terras. E temos todas as escrituras. Tudo legalizado.

Dito isso ele sentou-se na parte da frente onde fica uma elevação da cabina onde tem o motor e deixou a mostra o cano do revólver como para intimidar aquele pessoal. E não mais dirigiu o olhar para nós. Se contentou em continuar em ler o jornal.

Eu estava quase encoberto pelas troxas de roupa do casal e sentei-me no chão no momento em que esse indivíduo entrou. O reconheci logo. Era o homem que usava a máscara na praça XV em Florianópolis.

Cochilei, cansado que estava e quando acordei o homem não estava mais no lugar onde se sentara ao entrar.

Cansado e com fome, fui pulando por cima das troxas de roupas e das pessoas que dormiam no corredor até chegar na cabine do motorista.

Perguntei se ainda iria demorar para chegarmos a Massaranduba.

----- Mais uns vinte minutos. O senhor fica ali? - me perguntou.

----- É! - olhei ao lado e vi o jornal que o bandido entrara lendo.- posso? - disse pegando-o.

----- Claro! É jornal de São Paulo! Não nos interessa! - disse o motorista desviando o veículo de um buraco na estrada - merda, cada vez aumenta mais de tamanho. Daqui uns dias a gente não passa mais.

----- É! Era grande mesmo. Efeito da erosão.

O motorista pela primeira vez me olhou no rosto.

---- Moço, você não é daqui né?

Lembrei-me do que o velho que me dera carona havia me falado.

----- Estava visitando uns parentes.

----- Olha lá! Tá vendo as luzes? - disse ele apontando para um ponto luminoso naquela escuridão - É Massaranduba!

---- Ufa! Até que enfim! - soltei o ar.

O motorista riu.

---- Bem se vê que não é daqui!

----- Ué!? porquê?

----- Massaranduba é o paraiso dos safados. De cem que mora lá não escapa nenhum.

Me assustei com aquilo.

---- Como assim?

---- Você vai ver! Não posso lhe falar mais nada! - disse ele olhando para trás como para se aperceber que ninguém lhe ouvira.