A HORTA E O CAPITÃO GOVES BRAVO

Goves Bravo é militar do Exército Brasileiro, servindo em Brasília, e que, segundo ele próprio informou tempos atrás, mora em apartamento funcional do Governo. É proprietário da Casa X do Bloco YZ do Setor Habitacional Coletivo Geminado Norte 713 (SHCGN 713 – Bloco YZ - Casa  X) na Asa Norte, em Brasília. Vários meses se passaram desde a última vez que o vi. Quando comprou a casa do Sr. Relaw, que é um gentlmam, há cerca de três anos, fez também uma reforma com as próprias mãos, sempre aos sábados e domingos. Depois alugou a casa a uma família de Goiânia com a qual nos dávamos muito bem. Agora me contaram que vai morar no imóvel porque se aposentará do Exército.

Há três semanas cumprimentou-me na calçada em frente as nossas casas e foi logo dizendo:
- Vou arrancar isso tudo aqui, apontando para mais de um terço da Horta Comunitária.
- Mas senhor, a Horta é da comunidade. Os antigos moradores apoiaram. Não vai lhe atrapalhar em nada.
- Mas vou arrancar tudo, porque quero fazer mais uma entrada para carro aqui. Ali ao lado vou colocar grama e pronto - respondeu ele já irritado.
Ainda tentei argumentar:
- Senhor, essa planta aqui é jurubeba, ali é babosa, aquela na frente é alfazema. São todas medicinais. Há plantas que vieram dos Andes, do Mediterrâneo, do Sul... Não podemos mexer em nada porque a umidade do ar está muito baixa.
- Não me interessa. Vou arrancar e pronto.
- Desculpe-me a insistência, mas o senhor já tem garagem para cinco carros, entrada e circulação de pessoas garantida a mais de cinco metros da Horta. Além disso, esta área é pública, não é do senhor.
Ele nem esperou que eu terminasse de falar e adentrou-se à sua casa juntamente com a filha, uma jovem bonita que tudo ouvira e acena positivamente às suas colocações.
Fiquei ali um tanto quanto desolada, olhando para as plantas e elas para mim, sem sabermos o que seria de nós. Se ele de fato resolvesse insistir naquela atitude, elas não sobreviveriam. Algumas demoraram dois anos para se adaptarem ao clima seco e arenoso do cerrado. Outras tenras não resistiriam à mudança de ambiente. E as sementeiras? Seriam todas exterminadas. O que dizer das maiores, como o pezão carregadinho de jurubebas e os mamoeiros carregados de mamõezinhos?
Percebi que de uma hora para outra a tristeza e a dor se abateram sobre o ambiente. Meus olhos se encheram de lágrimas e, tenho certeza, os delas também.
Alguns minutos depois, vi que Leonia se aproximava. Leonia é uma vizinha que ama muito os animais. Já recolheu vários deles abandonados à sua residência, além de cuidar dos que ficam nas casas próximas quando seus donos viajam, e de chamar a atenção das pessoas que os aprisionam ou maltratam..
- Olá, tudo bem? - perguntou ela
- Não. Está tudo mal.
E contei-lhe o triste diálogo com o futuro morador.
Prontamente, ela disse:
- Vamos lá tentar falar com ele novamente.
Aproximamo-nos da grade de proteção e o vimos pela porta aberta varrendo sua sala.
- Podemos falar com o senhor sobre a Horta?
- Não, não podem. Estou ocupado.
E bateu a porta na nossa cara.

Dois dias depois tive uma idéia. Vou providenciar um abaixo assinado para tentar sensibilizá-lo. Procurei ser rápida, com medo que ele cumprisse o prometido.
“ABAIXO ASSINADO PELA DA PRESERVAÇÃO DA HORTA COMUNITÁRIA

Manifestamos nosso desejo de manutenção permanente e integral da Horta Comunitária 713 Norte, com 103 espécies de ervas medicinais e ornamentais e 19 espécies de animais silvestres livres, na área pública em frente ao Bloco XY residencial da 713 Norte”.

Consegui mais de cem assinaturas rapidamente, manuscritas e do grupo amigos da Horta que me enviaram pela internet.
Tirei cópia e mandei entregar-lhe em mãos, logo que foi visto na casa. Assim mesmo continuamos passando as folhas para reunir mais assinaturas. O Sr. João do Bar.Com, a Leonia, a Maria ficaram colhendo mais assinaturas.

Agora o Goves Bravo do Exército Brasileiro vinha sempre porque decidira trocar o piso de sua casa e fazer outros reparos. No início da última semana, no começo da tarde, eu o vi chegar fardado em uma Kombi do Exército dirigida por um soldado, da qual descarregou material de construção, retornando ambos no mesmo veículo.
Na maioria das vezes, ele aparece em uma caminhonete antiga Placa de Goiás, e ora estaciona ao longo da lateral esquerda da Horta, ora nos fundos da casa, ora junto ao meio fio da frente da casa.
É um homem de estatura baixa, magro, cabelos ralos, bigode branco, moreno de pele queimada pelo excesso de sol, que não se aproxima das pessoas e nem as encara de frente. É do tipo arredio, fechado. Pega no batente junto com os peões, varre, lava, limpa. Nunca vi sua esposa e apenas aquela filha por alguns minutos.
Hoje, domingo, dia 23 de agosto de 2009, por volta das 12h50min ouvi Dona Dica, vizinha e secretária da Prefeitura me chamar lá na Horta. Desci as escadas e fui atendê-la. Ela disse:
- Só vim trazer comida para as minhocas.
E foi se dirigindo ao minhocário. Acompanhei-a. Ao mesmo tempo vimos que o Goves Bravo, a quinze metros de distância, varria a calçada em frente à Horta, jogando todo o lixo sobre as plantas. ( papéis sujos do banheiro, papelões, folhas secas, restos de obra).
Comentei:
- Oh, Meu Deus! Ele está sujando toda a Horta. E parece com raiva. Veja, Dona Dica!
Ao que ela respondeu:
- Deixe pra lá, Dona Sandra. Depois a gente limpa. Vou apanhar umas capuchinhas para a minha salada. Até logo.
- Até logo, Dona Dica.
Entrei em minha casa e Dona Dica foi para a sua.
Alguns minutos depois, ouvi o Skypie latindo forte e o barulho de paus e pedras lá fora.
Desci novamente as escadas, senti o pedido de socorro das plantas e me dirigi para onde elas estavam. Levei um choque diante da cena. Estava quase tudo destruído. Os canos de irrigação e as mangueiras de aguação danificados, vasos de plantas quebrados e espalhados pela Horta, as alfazemas arrancadas, os funcho quebrados, a cerca viva de guaco destruída sobre a calçada, a lateral do minhocário arrancado e os bambus que haviam sido cuidadosamente trançados jogados no chão. Vi também  o Capitão que ingressava em sua residência com uma enxada nas mãos.
Senti ao mesmo tempo vômito, cegueira e tontura. Olhei a volta e não vi mais ninguém nas proximidades que pudesse me socorrer. Minha família havia saído e eu estava só com o Skypie. Mesmo assim reuni forças, retornei a casa, apanhei a máquina fotográfica e voltei à Horta fotografando tudo. O Goves Bravo que estava entre a grade de proteção e a porta da sua sala, mesmo percebendo minha aproximação, atravessou a porta e a fechou.
Sem saber quantas fotos tirei, perdi a noção de tempo e espaço diante da minha dor e da dor das plantas, das minhocas, dos pássaros.
Depois apareceram algumas pessoas que foram verificar se havia testemunhas. Meu genro conversou com o pessoal da Padaria em frente, com o guarda do Conselho Federal de Farmácia também em frente, com algumas senhoras que passavam, chamei a Dona Dica e a Carlinha, depois apareceu o Sr. José Afonso, um carro da polícia passou e parou alguns minutos, mas teve que ir porque aconteceu um assalto na Quadra 113. NINGUÉM VIU NADA. NINGUÉM SABE QUEM FOI.
Então me lembrei das reportagens que mostram os morros tomados por traficantes no Rio, onde impera a Lei do Silêncio. Fui tentar resgatar as imagens das minhas câmeras, mas estão fora de alcance e foco. Dá para ver apenas vultos se mexendo. Com tecnologia avançada, talvez se possa identificar o criminoso.
Criminoso? Qual é a definição de CRIMINOSO no meu País de nascimento? Qual são os valores que vigoram nas pessoas que dizem não ter visto nada, quando estavam de frente para o crime. E o criminoso é muito especial, porque ele é o único que quebrou e destruiu alguma coisa, em quase quatro anos de existência da Horta, que já foi promovida a Santuário Verde pela Tanira, sua maior fã e divulgadora.
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 24/08/2009
Reeditado em 10/11/2016
Código do texto: T1772388
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