O ASSASSINATO DE DAVE CATSMEAT

PROLOGO

Talvez vocês achem essa história um tanto quanto fantástica ou talvez não compreendam direito o que vou tentar transmitir. Peço, no entanto, que tenham paciência.

Desde a minha adolescência me interessei por romances policiais. A minha obsessão passou a ser tão grande que hoje coleciono grandes mistérios que não foram solucionados. Tenho-os guardados em diversos arquivos.

Certo dia eu comentava o tema com um amigo meu, o Eurípedes, também um apreciador do gênero, apesar de não ser tão fanático quanto eu. Discutíamos o romance policial ideal.

– De todos que eu li – dizia eu – os mais sensacionais autores são Arthur Conan Doyle e Agatha Christie . Sem menosprezar outros, como Georges Simenon , Edgard Allan Poe e Edgard Wallace .

– Todos eles podem ser brilhantes – retrucou Eurípedes – mas na minha opinião nenhum deles escreveu o que eu posso chamar de “Romance Policial Perfeito”. A Agatha chegou perto, mas sempre exagerava.

– Você está sendo injusto! Como seria esse romance, então?

– Como um leitor apaixonado eu vou falar de uma maneira geral: O leitor gosta de participar de toda intriga; ele quer tem em mãos todos os elementos para tirar também suas conclusões. É nessa parte que peca o nosso querido Conan Doyle. O leitor jamais poderá ver com os seus próprios olhos as pegadas, as cinzas de charuto ou as mãos do assassino. É preciso que haja somente fatos para serem analisados e, daí, tirar suas conclusões e deduções. O leitor também prefere enredos simples, poucos personagens e pouca conversa mole. O desfecho também deve ser importante. Um desfecho tem que ser surpreendente, inesperado e se caso o leitor adivinhe o final seja uma conquista e não uma mera adivinhação.

– Ora, ora. Se eles não são bons, porque já venderam um gigantesco número de livros? Hein?

– Eu não falei que eles não são bons. Eles simplesmente logram os leitores. Não dão aos leitores uma chance real para que desenvolva suas faculdades analíticas.

– Veja só, mudando de assunto – desviei eu – e o melhor detetive, qual seria?

– Não há duvidas que o melhor é o Sherlock Holmes, mas seria impossível existir alguém como ele. Você acha provável que alguém identifique uma marca de cigarro pelas suas cinzas? Descubra a profissão de alguém simplesmente olhando suas mãos?

– Sim, sim. Mais do que improvável. Impossível! Mas o Poirot?

– O Hercule Poirot já é um pouco mais verossímil, mas mesmo assim existe casos em que as soluções são fantásticas. Entende? Força a situação. Aliás, quem força a situação é a Agatha. E, por falar em Agatha, é ela que consegue fazer o melhor desfecho. O final não é só descobrir o criminoso. É importante, também, descobrir o motivo e a maneira pela qual foi realizado o crime.

– Além do “quem”, o “como” e o “porquê”.

– Exatamente – concluiu Eurípedes.

– Você me fez lembrar de um caso que eu tenho arquivado.

– Finalmente você vai me dar a oportunidade para resolver um dos seus casos.

– Só que esse é completamente diferente do que você acabou de evidenciar. Nós já temos o motivo e o modo como foi cometido o crime, mas falta exatamente o Assassino!

– O quê? Explique melhor.

– Aconteceu em Londres. Um senhor viúvo, padrasto de cinco enteados, foi encontrado morto em seu quarto devido a uma dose excessiva de sedativos. Poderia ser considerado uma morte natural, visto que o homem já era idoso e sofria de doenças nervosas, mas foi encontrado em cima de sua escrivaninha uma carta escrita pelo assassino, revelando o motivo e o modo pelo qual cometeu o crime. Logicamente o criminoso só podia ser uma pessoa da casa, mais precisamente um dos enteados, como evidenciava a carta. Só que todos os enteados tinham as mesmas possibilidades, implicando no arquivamento do inquérito diante da falta de identificação da autoria.

– Humm, muito significativo – disse Eurípedes – deixe-me examinar esse caso.

Remexi meus arquivos e o encontrei.

CRONOLOGIA DO CRIME

Em 1946 Abigail Lester casou-se com Robert Jean Pherson. Ela, filha de uma família da alta burguesia londrina; ele, herdeiro de diversas propriedades e dono de uma fortuna inestimável.

Em 1947 nasceu o primeiro filho do casal, Roy Pherson.

Em 1949 nasceu Ronan Pherson.

Em 1952 nasceu Susan Pherson. Nesse mesmo ano, Robert descobre que está com câncer no pulmão, em estado terminal. Restam-lhe poucos anos de vida.

Em 1955 nasceu Dennis Pherson.

Em 1959 nasceu a última filha, Lucy Pherson.

Em 1960 morreu Robert Jean Pherson com câncer no pulmão.

Em 1963 Abigail Jean Pherson, com 38 anos, casou-se com Dave Catsmeat, 46 anos, um médico sem êxito na profissão.

Em 1965 morreu Abigail Catsmeat. Ela estava limpando a janela de um quarto do andar superior, quando sofreu uma queda e quebrou o pescoço, tendo morte instantânea.

Em 1978 morreu Dave Catsmeat, assassinado por um de seus enteados. Dose excessiva de sedativos.

– Gostei dessa cronologia – disse Eurípedes – principalmente dos fatos.

– Quais as suas impressões iniciais?

– A primeira coisa que me chama a atenção é que nessa família morreram três pessoas em épocas diferentes e em circunstâncias aparentemente diferentes. Um assassinato, um acidente e uma morte por doença.

– Mas a única morte totalmente esclarecida é a primeira – disse-lhe eu.

– Porquê?

– Por que a senhora. Abigail Catsmeat também poderia ter sido assassinada, tanto pelo seu marido como por seus filhos.

– Isso muda de figura. Se a senhora Abigail foi assassinada, então a segunda morte teria uma enorme relação com a primeira... Mas, o que mais você tem para me mostrar?

– Uma carta encontrada no quarto do Sr. Catsmeat, quando da sua morte.

Eurípedes demonstrava uma excitação. Seus olhos brilhavam. Eu notava que ele se deliciava gostosamente com o enigma, mas logo ele ficaria intrigado, pois o caso ia se complicar.

VINGANÇA

“Meu padrasto sempre foi um canalha. Eu nunca conheci em minha vida uma pessoa como ele. Casou-se com a minha mãe exclusivamente pelo dinheiro, aproveitou-se dela o suficiente e depois a matou. Eu vi quando ele a empurrou da janela. Na hora levei um choque e não tive coragem suficiente para entrega-lo, mas com o tempo eu fui acumulando ira e desejo de vingança. Meus nervos quase arrebentavam quando eu pensava nisso. Mas ele foi além: a fortuna que o meu pai conseguiu com tanta dedicação estava sendo agora destruída por ele. Ele queria manchar o nome da família se envolvendo em jogos, negociatas, bebidas, etc. Eu tinha que fazer alguma coisa pelo meu pai, minha mãe e agora meus irmãos. Cada vez que eu olhava para sua cara dava-me ânsia, nojo. Ele merecia a cadeira elétrica. Aliás, foi bom eu não ter lhe acusado naquele momento. Ele certamente negaria e seria absolvido por falta de provas. Mas a justiça nunca deixa de imperar e eu faria justiça com as próprias mãos.

Hoje ele falou que queria que todos os “filhos” ficassem em casa. Estava mais sóbrio do que de costume. Depois de jantar aproveitei a situação para mata-lo. Sempre, após a janta, ele tem o costume de beber chá, lendo o jornal. Numa ocasião em que ninguém estava olhando, cheguei perto do copo e deitei alguns comprimidos de Veronal. O suficiente para liquidá-lo. Ele era muito distraído e quando ficava absorto em sua leitura, nada lhe chamava a atenção. Foi então mais fácil do que tirar um doce de uma criança. De repente ele começou a sentir-se mal e subiu para o seu quarto. Foi aí que me ocorreu a idéia de escrever esta carta. Quando todos estavam dormindo fui ao escritório e comecei a datilografá-la. Cheguei neste ponto. Vou terminar de escrever e depois irei até o quarto do velho, certificar-me de que ele está realmente morto. Se estiver vivo, rasgarei a carta e ninguém ficará sabendo de nada até que eu tente novamente. Mas se o desgraçado estiver com as mãos geladas e o coração petrificado, todos ficarão sabendo quem ele foi.

Acredito na Justiça Divina.”

– E então, Euris? Alguma coisa a declarar?

– Realmente é fantástico. Fantástico!

– Como você pôde perceber a carta não deixava transparecer qual dos filhos poderia ter sido, nem mesmo o sexo!

– Para você, o que vem a ser esta carta?

– Para mim o assassino ou a assassina queria livrar a sua cara e dos outros irmãos e, ao mesmo tempo, mostrar a todos, quem foi o seu padrasto. Penso que mesmo que se descobrisse o autor da carta, certamente o júri seria complacente em virtude dos reveses do falecido – conclui.

– E o que prova que essas revelações são verdadeiras? – argüiu Eurípedes.

– Ora...

– O autor da carta pode muito bem ter matado a sua mãe e, agora, jogado a culpa no pobre Dave.

– Você está defendendo-o?

– Não, não. Estou apenas afirmando que a carta não justifica plenamente o crime “justiceiro”. A senhora Abigail pode até ter sofrido um acidente realmente. Esta carta foi escrita por um assassino, lembre-se disso, que pode muito bem ter omitido ou alterado algum pormenor.

– Você já chegou a alguma conclusão?

– Não, está tudo muito vago. Eu preciso de outras versões. A versão do próprio assassino é sempre parcial, você há de concordar comigo.

– Agora vou começar a lhe mostrar os depoimentos, que foram obtidos a partir das notas taquigráficas. Eles reproduzem com fidelidade o que cada um disse nas oitivas. Dos cinco enteados e da governanta.

* * *

DEPOIMENTO DE ROY PHERSON

“Quando eu tinha cinco anos de idade o meu pai chamou minha mãe e disse-lhe que iria morrer logo. Eu estava brincando por perto e ouvi tudo. Fiquei chocado com o assunto, mas logo esqueci. Depois de alguns anos ele piorou e antes mesmo de ele morrer a minha mãe já tinha um caso com Sr. Catsmeat. Eu já não era tão criança e percebia o quanto minha mãe tinha sido injusta com meu pai. Ela herdou uma fortuna fabulosa, pois meu pai não tinha feito testamento. Achei, na época, um tanto estranho, porque ele sabia que ia morrer. Era natural que fizesse um testamento.

Três anos após a morte de meu pai, minha mãe se casou com Sr. Catsmeat com que simpatizei logo de imediato. Eu tinha, na ocasião, dezesseis anos e ele me ensinou muitas coisas. Sempre julguei que ele tivesse boas intenções. Quando minha mãe morreu ele foi quem mais sofreu. Até Lucy, com quatro anos, superou as coisas.

Mas ele, aos poucos, foi se modificando. Passou, cada vez menos, a se interessar por nós. Depois, mais recentemente, começou a beber e a freqüentar cassinos. Voltava para casa sempre bêbado e costumava falar besteiras.

Um dia desses ele bradou: – Eu sei que vocês me odeiam, mas eu nunca vou sair daqui. Só morto! Só morto!

Claro que ele só proferia essas bobagens em estado de embriaguez, mas quando ele não estava ébrio, estava deprimido. Às vezes se trancava no quarto e quando saía, percebíamos os olhos vermelhos de quem chora.

Nesses últimos dias comentei com o Ronan a intenção de interná-lo. Não pelo dinheiro, pois minha formação era suficiente para me dar sustento. Eu não precisava mais do dinheiro do meu pai. Queria interná-lo, pensando na sua saúde, mas quando falamos com ele sobre isso ele ficou uma fera. Quase matou a gente com berros e palavras de baixo calão.

Ontem ele não saiu de casa o dia inteiro. Ficou no escritório e no seu quarto. Um pouco antes do jantar ele pediu que todos jantássemos juntos, com ele. Meus irmãos têm o costume de jantarem fora. No meio da janta ele se levantou e disse, em voz grave: – Meus filhos, vocês sabem que estou velho e posso morrer a qualquer momento. Não há motivos para vocês me odiarem – falou aquilo como se fosse um aviso. Na hora eu senti que seria para mim, por conta da minha intenção de interná-lo – Deixem-me viver em paz, por favor!

Fiquei com uma dor no coração, de início, por ter desejado colocá-lo num hospital. Mas logo me refiz. No restante da noite fiquei jogando xadrez com o Dennis. Susan foi para o seu quarto e Ronan e Lucy assistiam televisão, enquanto Sr. Catsmeat lia seu jornal. Ele tinha o hábito de tomar chá após o jantar e nessa noite ele pediu três copos. Mate gelado com limão!

Certa ocasião do jogo de xadrez, Dennis me armou uma cilada, obrigando-me a refletir por muito tempo. Dennis, então, levantou-se e foi até a cozinha beber água. Quando ele voltou eu desisti da partida e, então, ele foi para o seu quarto; depois dele Sr. Catsmeat que, inclusive, comunicou estar com uma leve dor de cabeça.

Eu fiquei vendo um pouco de televisão, mas depois achei melhor ir dormir. No caminho, passei pela biblioteca e vi o Ronan lá, datilografando alguma coisa na máquina de escrever.

Hoje, pela manhã, fui acordado pela governanta e fiquei surpreso. Não acredito que Sr. Catsmeat tenha matado minha mãe e que tenha sido assassinado por um de nós. Acho tudo isso muito fantástico.”

– Você deve ter ficado surpreso com as últimas declarações de Roy, não é Euris? Mas elas residem no fato de que o Inspetor Damman da Scotland Yard omitiu prontamente a existência da carta. Para descartar a hipótese de morte natural ele revelou o veneno e para descartar a hipótese de suicídio, falou do motivo de vingança. A carta foi encontrada num envelope lacrado e destinado “Às autoridades” e quem o descobriu foi a governanta que agiu fielmente com a lei.

– Fizeram autópsia?

– Sim, Dave Catsmeat morreu em face da ingestão de dose excessiva de Veronal

– Acharam algum vestígio de Veronal na Xícara de Chá?

– Não, toda a louça foi lavada ainda naquela noite, mas foi encontrada uma caixinha vazia no corredor que dá acesso aos quartos.

– Mas, mudando de assunto, prossegui – o que achou do Roy?

– Não sei, não sei.

– Para mim – disse-lhe eu – ele é um grande suspeito. Blefou do começo ao fim. Tentou construir uma imagem boa...

Eurípedes parecia entorpecido, olhando para o infinito.

– Preste atenção Euris!

– Estou prestando, estou prestando. Mas existe um fato muito curioso nessa história. Você reparou que a Sra. Abigail e o Sr. Dave já se conheciam antes de casar e, por conta disso, Roy condenava a mãe?

– Percebo. O Roy pode muito bem ter matado a mãe e agora o Sr. Catsmeat para vingar-se do pai. A carta teria sido apenas um disfarce.

– Você está percebendo que uma versão leva a infinitas possibilidades; duas versões já reduzem a conclusão para finitas possibilidades. Quanto mais versões nós tivermos, a análise dos pontos em comuns nos levará a uma única possibilidade. É matemático.

– Você é muito complicado, Euris. Às vezes eu não consigo compreendê-lo.

– Vamos ver as possibilidades de cada um, levando em consideração as nossas versões: “Roy poderia ter ministrado a droga quando Dennis foi beber água; da mesma maneira Dennis poderia ter colocado a droga quando ele próprio foi beber água. Por enquanto continuamos na estaca zero. Susan estaria, em princípio, absolvida, pois subiu para o seu quarto logo depois da janta. Como vê, meu amigo, as coisas não estão nada claras.”

– Esse é um caso que nem Sherlock Holmes resolveria.

– Se ele estivesse lá, creio que resolveria, pois perceberia as marcas do calçado deixado no carpete do escritório ou, então, marcas de unha na caixinha vazia de Veronal e aí exclamaria, triunfante: “É elementar meu caro Watson, elementar!”

– Euris, você não tem igual.

– Vamos parar de conversa fiada e ler o próximo depoimento.

– Ok.

RONAN PHERSON

“Confesso que fiquei indignado com os fatos que vocês me apresentaram. Posso até acreditar que o meu padrasto tenha matado a minha mãe, mas não posso crer que algum de nós o assassinara. Se realmente um de nós fez tal coisa, porque esperar tanto tempo? Da minha parte eu não fazia a menor idéia que Sr. Catsmeat pudesse ser o assassino da minha mãe. O meu pai morreu quando eu tinha 11 anos de idade e eu senti muito essa perda. Nunca me acostumei em ter outro homem vivendo com minha mãe. E, quando minha mãe morreu foi pior ainda. Cheguei a ficar internado, pois eu tinha visto ela cair. Pudera que tenha sido empurrada! Eu estava brincando, do lado de fora da casa, vendo ela limpar a janela, quando... Oh, meu Deus, aquilo foi demais para mim. Mas eu superei. Formei-me advogado, abri meu escritório e hoje nem penso mais nisso. Aliás, estou pensando agora somente porque estou sendo forçado.

O meu relacionamento com Sr. Catsmeat era da maior trivialidade possível. Conversava com ele apenas o necessário e, se pudesse evitar, nem o necessário. Nunca criei intrigas com ele... exceto uma vez. Roy havia me sugerido que internássemos o velho, digo, Sr. Catsmeat. Fomos falar com ele; e ele se alterou, quando tivemos uma séria discussão. A partir daí ele começou a ficar estranho, falar frases estúpidas, dizer que o odiávamos, etc.

Ontem ele pediu que ficássemos com ele na mesa, durante o Jantar. Fiquei porque o Roy insistiu muito. Eu prefiro comer em restaurantes porque odeio sopas. O velho Dave só come, comia, sopa, e aquele maldito chá. Não sei como ele aguenta tomar aquela coisa. Não é um chá tradicional inglês... Bem, isso não vem ao caso.

Quando todos terminaram ele se levantou e disse qualquer coisa sobre deixarem ele em paz. Eu nem me preocupei e fui assistir televisão. Lucy foi comigo. Na sala ao lado Roy e Dennis foram jogar xadrez e Sr. Catsmeat foi ler seu jornal. O filme estava muito chato e resolvi ir até a biblioteca datilografar umas cartas. Seria natural que eu fosse até o escritório, mas nunca frequento o escritório. Acho-o meio fúnebre... aquelas cortinas parecem fantasmas. Eu sempre fui meio medroso. A biblioteca é mais aconchegante e fica próxima à escada que dá para os quartos. Quando passei pela sala vi Roy e Dennis entretidos no jogo de xadrez, que nem me perceberam. Já meu padrasto estava bem lúcido, inclusive me deu boa noite. Fiquei na biblioteca um bom tempo e quando subi nem reparei se tinha alguém nas salas.

Não sei de onde vocês tiraram essas idéias fantásticas. Espero que não seja nada sério.”

– E então, Euris. Fechou o circulo?

– Não... ainda está muito distante disso.

– Mas o Ronan se traiu. Isso sim, ele cometeu uma falha tão grande que nem sei como não desconfiaram dele?

– Você se refere a biblioteca?

– Exatamente! Porque motivo ele queria se justificar? Isso é muito significativo, não acha?

– Pareceu-me muito natural. Talvez ele tenha tentado justificar-se, pois a biblioteca ficava perto do quarto do senhor Catsmet.

– Eu me refiro à carta...

– Ele não cometeria esse erro.

Eurípedes tinha uma personalidade completamente diferente do que qualquer pessoa pudesse imaginar. Como eu, ele sempre gostou de literatura policial, só que ele sempre foi mais analítico. Prestava atenção em todos os pormenores.

Eu reparava o brilho de seus olhos, um brilho comum nos assassinos, nos olhos dos assassinos. De repente até me deu um frio na espinha. – Já pensou se esse cara resolvesse agir em favor do crime! – pensei eu – Não haveria Sherlocks ou Poirots que o detivessem.

– Meu caro amigo – disse-me ele – estou achando você um tanto quanto estranho. Não há porque nos preocuparmos. A solução desse enigma é uma mera diversão.

– Ah! Está vendo que não consegue encaixar os fatos e já antecipa a desculpa para encobrir o fracasso.

– De forma alguma! Os fatos se encaixam perfeitamente. O que quero dizer é que nós não temos nenhuma responsabilidade.

– Isto é, você não tem qualquer obrigação de acertar!

– Pode ser, mas eu vou acertar. Não tenha dúvidas.

– Vai me dizer que já tem a solução??

– Eu já faço uma idéia, mas preciso de outros elementos para confirmar a minha tese.

– Então vamos lá.

* * *

DEPOIMENTO DE DENNIS PHERSON

“Isso tudo é muita besteira. Muita besteira. O velho morre e vocês já vão nos acusando! Se alguém matou o velho, esse alguém foi a Senhorita Willard, a governanta. Ela nunca gostou do velho, pois ele sempre estava a lhe dar ordens e mais ordens. Faz pouco tempo eles tiveram uma séria discussão. Era por causa da Lucy. O velho achava que ela estava muito livre e que uma moça não podia ficar saindo da maneira como estava. Senhorita. Willard tomou partido a favor de Lucy, alegando que ela já era maior de idade. O velho então disse que se ela se intrometesse ele a poria na rua. Senhorita Willard está com a gente há trinta anos, seria injusto que o velho mandasse ela embora. Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos e, desde então, tem sido uma mãe para nós.

Ontem eu tive um dia agitado na faculdade. O professor pediu para que ficássemos além do horário de saída, portanto cheguei em casa quase na hora do jantar. A cozinheira preparou uma sopa de legumes, frango e salada de beterrabas. Uma comida própria para doentes e, se não tivesse o frango eu preferia nem comer. Mesmo assim, comi feito um boi e até repeti o prato de sopa. Quando estávamos na sobremesa, um delicioso pudim de coco com ameixas, o velho levantou-se e pediu a palavra. Disse alguma coisa a respeito de a gente odiá-lo. Eu nem prestei atenção. Nem quis saber, estava mais interessado no pudim. Odiá-lo! Era uma pena odiar um cara como ele. Um bêbado! Eu o ignorava. Se, no fim do mês, ele me desse uma boa grana, estava tudo bem. Aliás, ele tinha o dever de fazer isso, pois o dinheiro era do meu pai.

Depois da janta eu fui jogar xadrez com o Roy. Eu sempre fui craque no xadrez, tanto que Roy raramente ganhava de mim. Nesse jogo eu sacrifiquei a Dama, descobrindo a torre que daria xeque-mate se ele a tomasse. Por outro lado, se ele recusasse o sacrifício, a própria Dama daria o mate. Ele ficou desconcertado e eu até me retirei para cozinha. Fui beber um pouco de água e ainda fiquei conversando com a cozinheira que lavava a louça. Quando voltei reparei o velho com o copo de chá na mão, olhando-o firme. “Está louco!” - pensei. Roy estava tão concentrado no jogo que nem me ouviu perguntar se ele já tinha se decidido.

– Já se decidiu? – perguntei.

– O quê?! – exclamou assustado.

– Se você já se decidiu?

– Ah, sim. Não tem jeito. Só posso evitar o mate se me desfizer de algumas peças. A derrota é inevitável.

Ele tombou o Rei e me cumprimentou. Dei-lhe boa noite e fui direto para o meu quarto. Ainda fiquei lendo um pouco, “O Colecionador” de John Fowles . Um livro sensacional. Antes de terminar, eu peguei no sono. Hoje acordei tarde e já estava toda essa confusão.

Lembrem-se do que eu falei, embora não esteja nem um pouco interessado em saber quem matou o velho.”

– O que você achou, Euris?

– Um pouco contraditório.

– Como assim?

– Primeiro ele diz que a mais provável assassina seja a governanta. Depois ele diz que ela foi uma mãe para ele. Seria mais coerente que ele nada dissesse a respeito das suas opiniões, para não comprometer a sua “segunda mãe”.

– Talvez ele quisesse salvar a própria pele.

– Então não teria necessidade de elogiar a governanta.

– Isso é...

– Na minha opinião ele disse tudo isso sem pensar, sem medir as consequências. Para ele, a morte do Sr. Catsmeat foi muito normal.

– Eurípedes, você não tem igual! Como a morte de alguém que mora sobre o mesmo teto, assassinado, não abala outrem?

– Você que não me entendeu...

– Tudo bem, o que mais você tem a dizer sobre o Dennis?

– Você pode perceber que, quando quer, é muito observador. Foi o único, até agora, que mencionou o jantar. Em compensação ele não disse nada sobre os outros.

– Ele só via o que lhe interessava.

– Exatamente! Como o pudim.

– Você come o pudim? Pudim de quê?

– Isso não é hora para piadas. O “como” que eu disse é advérbio e não verbo.

– Eu sei, estava apenas brincando.

– Agora já era. Pode buscar alguma coisa para eu comer, pois já estou com fome. Você sabe, o esforço mental desgasta o organismo.

– Vou trazer alguns salgadinhos. Ok? Ou você prefere pudim?

– Pode trazer os salgados.

Fui até a cozinha, peguei um pacote de salgadinhos e abri uma garrafa de Coca-Cola. Esses salgadinhos sempre deixam a gente com sede. Peguei dois copos e voltei para a sala. Peguei no flagra o Eurípedes mexendo no meu arquivo.

– O que você está fazendo aí??

– Desculpe-me. Eu estava procurando o próximo depoimento. Estou cada vez mais curioso.

– Era só me esperar né.

– Tudo bem, tudo bem. Mas vamos logo com isso.

– Agora vamos ver as versões femininas.

* * *

DEPOIMENTO DE SUSAN PHERSON

“Quando acordei e constatei que Sr. Catsmeat estava morto, quase desmaiei. Não que gostasse dele, mas é que na hora da janta ele disse algo que me impressionou.

– Eu estou velho, não vou viver muito tempo, mas não é justo vocês me desprezarem assim. Eu sei que vocês me odeiam, mas por favor, deixem-me viver em paz!

Será que ele sabia que alguém ía matá-lo e tentou convencer o assassino a não fazer isso? Eu não fui, vocês podem estar certos disso, mas não posso imaginar um de meus irmãos matando-o. Eu serei sincera. Realmente eu o odiava. Não fiquei nada surpresa com a notícia que vocês me deram agora, que ele pode ter matado a minha mãe. Sempre achei que ele não gostava da mamãe e quando ela morreu eu fiquei enraivecida. Um dia cheguei a perguntá-lo:

– Foi você que matou a minha mãe? Não foi?

– Esqueça isso. Não há nada que você possa fazer.

Ele não chegou a confessar, mas sempre achei que foi ele. Então passei a odiá-lo. Raramente ficava em casa para não vê-lo. Sempre que podia eu ía comer fora, para não sentar a mesma mesa que ele. Soube de meus irmãos que, nos últimos tempos, ele tinha tomado o hábito de beber, gastar dinheiro à toa, etc. Não que eu tenha ficado preocupada com ele, mas com o dinheiro de papai. Um patrimônio construído com muito esforço não podia ser destruído daquela forma. Claro que papai já tinha herdado uma boa coisa, mas ele tratou de ampliar o patrimônio, para deixar uma vida tranquila para os filhos.

Dava-me ódio de Sr. Catsmeat. Realmente para mim foi uma ótima coisa ele ter morrido. Acredito que toda a humanidade tenha lucrado com isso. Não há motivos para chorar a sua morte.

Mas, como eu ía dizendo, ontem ele me impressionou muito. Resolvi ficar para jantar, pois não tinha nenhuma companhia para ir num restaurante comigo. Meu namorado me deixou. Outro canalha! Aposto que se aproximou de mim pelo fato de eu ser rica, mas depois, vendo que o dinheiro estava sendo controlado por Sr. Catsmeat, ele saiu fora. Eu odeio os homens. Os homens não prestam. Sr. Catsmeat enganou a minha mãe. Ele a matou! Durante o jantar ele disse aquelas palavras... Eu fiquei impressionada, tanto é que me retirei para o meu quarto, tão logo terminei de comer.

Não conseguia dormir, ainda era cedo. Mas juro que não saí do quarto em momento algum. Só hoje cedo, quando a Senhorita Willard me deu a trágica notícia.

Eu peço que vocês acreditem em mim. Como se vê, eu teria vários motivos para cometer esse crime, mas se fosse eu, teria confessado. Se vocês descobrirem o culpado, por favor, tenham complacência. Ninguém, mais do que o Sr. Catsmeat merecia morrer. Quem o fez, deveria ser congratulado e não condenado.

Só vou dizer mais uma coisa. Acho que não há dúvida que o motivo do crime foi a vingança. Creio que não fosse a única a desconfiar do meu padrasto. A hipótese de ser um crime por dinheiro deve ser descartada, pois, apesar da possibilidade de administrar a nossa herança, hoje, com exceção de Dennis e Lucy, nenhum de nós precisa de dinheiro. Não acredito que eles pudessem matá-lo por dinheiro. Não acredito mesmo.”

– Quando ela terminou o seu depoimento o Inspetor Damman mostrou, para ela, a carta. Ela leu demoradamente e quando terminou, pôs-se a chorar e a exclamar: “Não fui eu, não fui eu!”. – O que você acha Euris? Eu, particularmente, acho que o seu depoimento, assim como as suas atitudes são suficientes para absolvê-la.

– No que você baseia tal conclusão?

– Veja bem, levando-se em consideração a carta ela não poderia ter cometido o crime, visto que subiu para o seu quarto logo depois do jantar. Mesmo assim ela poderia ter cometido o assassinato durante a noite, com uma dose de sedativo que causasse uma morte instantânea. Mas isso é improvável, pois ela teria que acordar o Sr. Catsmeat para ele tomar a droga. Não foi encontrado nenhum vestígio de injeção no corpo dele. Finalizando, ela não faria aquelas declarações se soubesse da existência da carta.

– Como você é cego. Tente analisar as possibilidades de cada um. Vejamos: “Ela sempre odiou o Sr. Catsmeat; os motivos ela mesma teve a ousadia de não ocultar. Naquela noite ela resolveu matá-lo. Num momento que ninguém olhava colocou os comprimidos na sua sopa. Mas aí ele diz aquelas palavras. Ele teria visto ela colocando os comprimidos na sopa? Ela tratou de ir para o quarto para corroborar o seu álibi. A carta, talvez já estivesse sido escrita e provavelmente já estava no quarto do Sr. Catsmeat antes dele morrer. No depoimento ela encenou de uma forma ideal. Nunca o mais suspeito é o criminoso, pelo menos é assim que ocorre nos livros, então ela diz todos os motivos para ser a assassina. Mas sabe de antemão que a carta lhe dará o álibi necessário.” Como vê, tudo se encaixa perfeitamente.

– Você acha que foi ela?

– Eu não acho nada, apenas quis demonstrar a viabilidade de ela ter cometido o assassinato.

– Mas não haveria provas para condená-la.

– Se a louça não tivesse sido lavada poderia ter sido descoberto o vestígio de veronal no copo ou no prato.

– E aí ela estaria jogando com a sorte?

– Não, pois ela devia saber de antemão que a louça nunca ficava de um dia para o outro.

– Não só ela. Todas as pessoas da casa.

– E então, Euris. O caso está escuro como breu.

– Para mim não. Já começo enxergar alguma coisa.

– Não acredito!

– Existem uns pontos que acentuam a minha tese. Veja a carta, por exemplo. Acho muito provável que tenha ela sido escrita antes de ser cometido o crime.

– Ora essa, porquê?

– Pelo modo simplório como é descrito o crime.

– O que você queria? Que o assassino descrevesse o Roy e Dennis jogando xadrez?

– Claro que não, mas você não compreende. Seria muito fácil para alguém que conhecesse os hábitos do Sr. Catsmeat prever que ele estaria tomando chá e pudesse matá-lo ali. Outra coisa, a carta absolve Susan e, ao menos que tenha sido ela a autora, que escreveu não saberia que ela subiria para o quarto depois do jantar. Finalmente, escrever uma carta durante a noite, nesses termos, é muito perigoso. E se alguém resolvesse levantar e escutasse o barulho da máquina de escrever? Pegaria o autor no flagra!

– Nesse caso também seria arriscado colocar a carta no quarto do Sr. Catsmeat.

– Nem tanto. Se alguém se levantasse o autor diria que ía na cozinha beber água, ía no banheiro ou qualquer outra coisa. Mas não esqueça que a carta poderia ter sido posta lá antes do Sr. Catsmeat subir.

– Está certo. Vamos para o próximo depoimento.

* * *

DEPOIMENTO DE LUCY PHERSON

“Extraordinário! Estou estupefata. Incrível. Vejam, estou completamente arrepiada. Nos últimos dias ele vinha sendo profundamente desagradável comigo, mas nunca desejei que ele morresse. O meu pai morreu quando eu tinha um ano de idade e, a partir daí, o Sr. Catsmeat foi meu novo pai. Talvez, por ser a menor ele me protegia mais. Tratava-me como uma princesa. Quando minha mãe morreu ele ficou muito doente, mas mesmo assim tentava me confortar. Lembro-me que ele me pegava no colo e ficava chorando no meu ombro. Aí era eu quem o consolava – Não chore papai, a mamãe está lá no céu e não vai gostar de ver o senhor chorando. Eu era a única dos filhos que chamava o Sr. Catsmeat de papai e ele ficava muito contente com isso.

Durante todos esses anos de minha vida eu fui devotada a ele e ele a mim. Nunca trocamos ofensas ou brigamos. Ele havia discutido comigo. Mas há uns dois meses eu conheci um rapaz que mudou a minha cabeça. Além de ele ser bonito e atraente, era inteligente e com idéias novas. Na primeira semana eu saí com ele sem contar nada a ninguém, mas depois resolvi apresentá-lo à família, Todos gostaram dele, menos papai, Sr. Catsmeat. Charles, o meu namorado, foi insultado de todas as maneiras e eu fiquei profundamente decepcionada. Corri para o meu quarto e chorei a noite toda.

Ontem nada fora da rotina. Após o jantar eu fiquei assistindo televisão e depois fui dormir. A única coisa que me chamou a atenção, foram algumas palavras que o papai disse. Algo a respeito de ódio. Eu nem me importei com o fato na ocasião, mas agora eu vejo que foi uma declaração muito importante. Claro que não se referia a mim, pois eu nunca tive nenhum atrito com ele. Nem mesmo no dia que insultou meu namorado. Charles ficou aborrecidíssimo e no dia seguinte ele terminou tudo comigo. Disse que era impossível manter um relacionamento comigo sem o assentimento de meu pai. Eu pedi uma chance, para tentar convencê-lo. Falei com o Sr. Catsmeat com muita calma:

– Por favor, papai, eu amo Charles, ele tem sido tudo para mim, não é justo que o senhor se oponha.

– Você sabe que eu sempre desejei a sua felicidade, mas tenho a nítida impressão que esse rapaz não serve para você. O meu consentimento você nunca terá, mas eu não posso fazer nada. Você é livre e pode fazer aquilo que quiser. Você é quem deve saber o que é melhor para você.

Quando fui falar novamente com Charles, ele não queria mais nada comigo. Acho que meu pai tinha razão, ele não prestava. Mas, depois disso, meu pai nunca mais foi o mesmo. Começou a ficar desagradável, deprimido. Começou a beber, a falar palavrões. Eu nunca desconfiei que existisse alguma coisa. Nunca nenhum de nós fizemos alguma ameaça a ele. Acho muito difícil que ele tenha matado mamãe. Ele era bom, humano, compreensível. Não, não não! Tudo isso é mentira! Vocês estão inventando todas essas coisas. Meu pai não tinha inimigos. Por favor, descubram o que há por trás disso tudo. Se algum dos meus irmãos o matou deve ter sido por um outro motivo. Dinheiro, talvez? Ele ía deixar uma boa fortuna. Eu não sei os termos do testamento dele, se houver, mas da parte da mamãe ficará um quinto para cada um. Só isso já seria motivo suficiente para se cometer um crime. Eu acredito que um deles pudesse matar o papai. Acredito mesmo.” (E saiu chorando da sala).

– Alguma pergunta, Euris?

– Sim, sim. Eu gostaria de saber se houve testamento?

– Sim houve.

– E quais os termos?

– Bem, a Sra. Abigail Catsmeat deixou tudo para o marido, mas metade deveria ir para os filhos quando ele morresse. Então ele só poderia fazer um testamento relativo a metade da fortuna. Entendeu?

– Sim, continue.

– Segure-se.

– Vamos logo, conte-me.

– Ele deixou tudo para Lucy.

– O quê?

– Isso mesmo que você acabou de ouvir.

– Mas isso não tem explicação!

– A princípio todos acharam estranho. Nenhum dos filhos sabia da existência de tal testamento. Concluiram, pois, que sendo Lucy a mais nova e não tendo ela meio algum de sobrevivência, seria natural que ela tivesse um pouco mais.

– Um pouco mais??!! Um quinto não seria suficiente?

– Claro, mas talvez ele quis privilegiar o único filho que ele pensava não odiá-lo.

– Não sei, isso me parece estranho... deve existir outra explicação.

– Pense bem – disse-lhe eu – veja como é plausível.

– Você me convenceu!

Mas Eurípedes não parecia estar convencido. Tomamos o último copo de Coca-cola cada um e terminamos o saco de salgadinhos. Eurípedes comia feito um animal. Se engasgava todo com a boca cheia, mas nem assim deixava de comentar.

– Você reparou que ela não disse nada sobre a noite do crime.

– Realmente.

– Ela falou mais sobre a personalidade do Sr. Catsmeat, no ponto de vista dela, é claro. Falou bastante sobre seu namorado.

– Coisas que não tem nada a ver.

– Aparentemente.

– Como assim?

– Coisas que, às vezes parecem não dizer nada, tem importância significativa.

– Você acha que ela poderia capaz de matar pelo dinheiro?

– Você mesmo disse que ela não sabia da existência do testamento.

– Mas somente pelo “um quinto”?

– Acho que não... pelo menos...

– Pelo menos, o quê?

– Baseado no que ela disse, acho muito improvável. Aliás, já tenho quase certeza de como morreu o Sr. Catsmeat, por quem e porquê.

– Então você acha que o motivo foi outro?

– Ainda tem mais um depoimento, não é?

– Não mude de assunto, vamos, me diga!

– Por favor. Eu não disse nada disso. Disse apenas que sei. Poderia já estar sabendo. O motivo da carta. Passemos ao próximo depoimento.

– Euris. Você venceu novamente.

* * *

DEPOIMENTO DA SENHORITA WILLARD

“Eu trabalho nesta casa desde dezessete anos. Comecei como simples empregada, mas logo passei a ser a governanta, porque viram que eu tinha muito mais capacidade do que necessitava uma empregada. A Sra. Abigail sempre foi muito rude, ela não confiava nos empregados a ponto de fazer ela mesma serviços que não lhe competiam. Dificilmente ela deixava alguém entrar no seu quarto. Ela mesma o arrumava. Ela nunca foi uma boa esposa. Aposto que traia o Sr. Pherson antes de ele morrer. Eu nunca percebi claramente, pois ficava religiosamente cuidando das crianças, mas tenho quase certeza que ela o traía. Quando o Sr. Pherson morreu, ela foi a que menos sentiu, tanto é que logo estava casada novamente. E não pensem que ela seria uma boa esposa desta vez. Sr. Dave teve até sorte dela ter morrido, caso contrário ele também amargaria traições. A propósito, vocês dizem que for ele que a matou. Não sei não, mas se realmente o foi, o motivo deve ser uma suposta traição. O Sr. Dave Catsmeat jamais suportou um desaforo ou algo que abalasse a sua moral. Recentemente ele fez um escarcéu por causa de um namoradinho que a Lucy arrumara. Eu, inclusive, tentei acalmá-lo e ele se revoltou contra mim, ameaçando me por para fora. Mas eu já trabalho aqui há trinta anos e logo vou me aposentar. Só não me aposentei ainda por causa dos garotos, Lucy em especial. Quando a Sra. Abigail morreu, ela tinha apenas quatro anos e o Sr. Dave pediu que eu cuidasse bem dela.

Uma coisa que eu não entendi é o fato do Sr. Catsmeat não ter casado novamente. Ele trinta trinta e sete anos somente e era bonito e atraente. Quinze anos se passaram e agora ele está morto. Nesses quinze anos ele viveu só para Lucy. Só que nada é estático, Lucy cresceu e ele notou que estava perdendo a sua menininha. Começou a beber, se envolver com pessoas desclassificadas, comportar-se como um selvagem e outras coisas. Ninguém podia suportar uma coisa dessas. Eu mesmo ficava ruborizada quando ele falava certos palavrões. Pudera que ele tenha sido assassinado. A minha opinião é que foi alguém de fora. Repararam se a janela estava aberta? Não sei. Acho que não tem cabimento o crime ter sido praticado por alguém da casa. Vingança não é um motivo muito forte, além do mais, quinze anos depois. Vocês não acham o cúmulo?!

Eu sou a única pessoa, dos empregados, que come junto com a família. Antes mesmo do Sr. Pherson morrer eu já estava integrada ao seio familiar. Agora, então, todos me consideram uma mãe. Não sei o que farão sem mim. Ontem, durante o jantar, Dave, digo, Sr. Dave mencionou algo a respeito de odiarem-lhe. Eu não prestei muita atenção, pois ele dirigiu-se exclusivamente aos filhos. Aaah, lembrei-me! Eu já tinha acabado de comer a sobremesa e estava me retirando. Eu acho que ele estava esperando eu sair para falar, mas eu ainda pude ouvir alguma coisa do corredor. O meu quarto fica embaixo, apesar de tudo. Mas dentro da casa e não fora como o da cozinheira, da copeira, da arrumadeira e do jardineiro. São somente estes empregados que temos. O pouco que eu ajudo não serve para nada. Já não precisam tanto de mim. Eles me pedem conselhos, trazem coisinhas para eu costurar, etc. Mas acho que vou me aposentar. Sem o Sr. Catsmeat não haverá muito o que fazer.”

– Pronto senhor Eurípedes. Você já tem todos os dados nas mãos. Pode me dar a sua conclusão?

– Calma. Falta ainda o desfecho. Como terminou o caso para as autoridades policiais e judiciárias?

– Ah, sim. Ao término dos depoimentos, o inspetor divulgou a carta. Somente a senhorita Susan já sabia de antemão. Todos ficaram impressionados, pois todos eram suspeitos. Todos se olhavam com ares de desconfiança, mas nada de concreto foi apurado. Finalmente o caso acabou arquivado diante da indefinição da autoria. Depois disso todos suspiraram aliviados. A senhorita Willard se aposentou e foi viver num apartamento barato, na periferia de Londres. Roy, Ronnan, Dennis e Susan se casaram e foram morar noutras cidades. Lucy comprou a casa dos irmãos e ficou morando lá, sozinha. Talvez agora já esteja casada.

– Antes de dar meu veredito, eu gostaria de saber como você conseguiu este “caso”?

– Foi no ano passado. Eu estava em Londres e conheci o Inspetor Damman. Você sabe que minhas conversas sempre desembocam em crimes. E com um inspetor da Scotland Yard eu não ía deixar de escapar a chance de aumentar o meu arquivo. Começamos a falar de crimes insolúveis e ele me contou este. Fiquei interessadíssimo e com base no inquérito eu montei esse dossiê.

– Ótimo! E a sua opinião?

– Minha opinião?

– Sim.

– Bem... é difícil, eu não sei.

– Vou lhe ajudar. Roy?

– Ele me pareceu sincero, mas poderia ter cometido o crime caso estivesse blefando. Pode ter sido ele inclusive que matou a própria mãe e o motivo, então, seria o dinheiro. Aliás, dinheiro é sempre bem vindo.

– Ronan?

– Ele foi completamente omisso. Falou, falou, mas no fundo não disse nada interessante. Somente gostaria de saber o que ele estava fazendo na biblioteca?

– Não seja indiscreto. Ele estava, provavelmente, escrevendo para uma namorada ou a negócios. A carta “vingança” já tinha sido escrita muito antes.

– Ora, Euris. Você e suas teorias!

– Tudo bem, passemos ao Dennis.

– Não sei não. Porque ele fez questão de acusar a senhorita Willard e logo depois elogiá-la? Toda contradição é suspeita. Quer saber de uma coisa? Se eu tivesse que apostar em alguém, apostaria nele.

– Ok. Susan?

– Embora você tenha demonstrado que ela teria possibilidades “matemáticas” de ter cometido o crime, eu a excluo totalmente. Você tem que ver o lado sentimental da coisa. As suas declarações foram as mais sentimentais. Não acredito que ela fosse uma atriz para fazer uma encenação daquelas. Não, ela não foi!

– Lucy?

– Se ela fosse uma atriz, a encenação seria muito mais fácil do que a de Susan. O motivo, então, seria o dinheiro. Ela devia saber de alguma forma que o Sr. Catsmeat deixaria tudo para ela, aí então... Aliás, não seria tão difícil para ela encenar no depoimento. Ela seria uma garota falsa, com múltiplas personalidades. Capaz de dar ao Sr. Catsmeat uma gratidão que não possuía e mais tarde acusá-lo de um crime que era tido como acidente e, finalmente, assassiná-lo.

– Você daria um bom advogado.

– Obrigado.

– Senhorita Willard?

– Não imagino como ela poderia ter feito isso e nem qual seriam os motivos. Ela não herdaria nada, não tinha nada a ver com a Sra. Abigail. Poderia ter posto a droga durante o jantar, mas porquê? Porquê?

– Não sei se você teve essa impressão, mas a mim deu a entender que ela gostava do Sr. Catsmeat.

– Pode ser. Ela mesma disse que ele era bonito e atraente.

– Então. Talvez ela quisesse que ele se casasse com ela, mas ele não quis. Ignorava-a. Ela, então, sentindo-se humilhada, resolveu vingar-se.

– E a carta?

– A carta seria para despistar.

– Mas alguém poderia ser condenado. Acha que ela teria coragem?

– Se alguém fosse condenado ela estaria completamente salva.

– Plausível. Mas você não encontraria provas suficientes para incriminá-la.

– Eu já lhe disse. O meu trabalho é descobrir a verdade. Provas são com os “Sherolocks”. Eu apenas analiso os fatos e dou-lhes soluções. Apenas isso.

– Então?

– Como você pôde constatar por si mesmo, revendo todos os envolvidos, esse caso não apresenta uma solução matemática. Neste caso o crime não é uma ciência exata, como crê o nosso estimável Sherlock Holmes, que defenderia sua tese afirmando que este caso seria um sistema compatível indeterminado. Várias soluções.

– Não foge do assunto.

– Não estou fugindo. Como não há meios exatos de se descobrir o assassino com certeza, a gente tem que jogar com a psicologia. Fazer uma análise psicológica de todos os depoimentos. Tentar perceber as emoções de cada um. É claro que se eu estivesse presente no momento dos interrogatórios poderia ver a fisionomia de cada um e tirar conclusões muito mais convincentes. Mas neste caso as coisas não estão muito difíceis. Não posso afirmar com certeza que as minhas deduções são cem por cento verdadeiras. Talvez alguma coisa não tenha acontecido como vou dizer. A lei das probabilidades diz que qualquer evento, por mais improvável que seja, jamais será impossível. Qualquer solução que se apresente poderá ser verdadeira. Não há como provar que ela seja verdadeira, assim como não há como provar a sua falsidade. Poderá ser aceita ou não. Mas deve ser levada em conta a maior ou menor probabilidade.

– Realmente, todos poderiam ter cometido o assassinato.

– Ou ninguém.

– O quê? O que você quer dizer com isso?

– Eu quero dizer que não houve um assassinato. Houve um suicídio!

* * *

CONCLUSÃO DE EURÍPEDES

– Você está louco! Como pode imaginar uma coisa dessas?

– Eu não estou imaginando nada. Trata-se de uma dedução lógica.

– Vamos, comece a me explicar então.

– Primeiramente eu parti da hipótese de a carta ser real, isto é, o criminoso ter agido exatamente da maneira descrita na carta. Alguém que escreve uma coisa daquelas deveria estar com muito ódio. O desejo de vingança era enorme e ele tinha que matá-lo de qualquer forma. Pensando assim, seria natural que o fizesse de uma maneira mais brutal. Um facada, um tiro, um golpe na cabeça, etc. O vingador gostaria de ver a morte estampada na cara da vítima. Não vejo muito sabor de vingança em ficar longe do homem que pode morrer a qualquer momento e até não morrer. Não, psicologicamente não seria um crime por vingança.

– O segundo seria o dinheiro.

– Exatamente. Todos, então, teriam motivos e meios. O Sr. Catsmeat poderia eliminar toda fortuna, então eles perderiam a herança. Mas haveria outras maneiras de se evitar isso. Além do mais, ficou evidenciado que ninguém tinha problemas financeiros. Acho que não chegariam ao extremo.

– Mas isso não anula...

– Sim, não anula. Mas analisando o comportamento do Sr. Catsmeat, pude chegar a seguinte conclusão:

“O Sr. Catsmeat casou-se exclusivamente pelo dinheiro. Quando viu que tinha a possibilidade de ficar rico sozinho, não hesitou em empurrar a mulher da janela. Porém, quando percebeu o que tinha feito não se conformou. Arrependeu-se totalmente. Viu que tinha agora uma séria responsabilidade. Cinco filhos para criar. Apegou-se em Lucy e foi vivendo a vida atormentado pela culpa.

Aquilo nunca lhe saiu da cabeça, por isso ele nunca se aventurou com outras mulheres. A sua vida era exclusivamente ele e Lucy. Mas aos poucos ele foi percebendo a sua situação, começou a se entregar aos vícios. Mas não adiantou. Por mais que ele tentasse, jamais seria querido por seus enteados. No fundo ele achava que era odiado, completamente repudiado. Beber não adiantaria. Ele precisava fazer alguma coisa que lhe redimisse de vez. Confessar sua culpa? Não, isso somente o deixaria mais odiado. Só lhe restava a morte.

Escreveu a carta. Talvez bem antes. Esperando uma oportunidade ideal. A carta é atemporal, encaixa-se em qualquer época. Necessitava apenas da situação. Antes do jantar ele frisou bem para que ninguém saísse e depois proferiu aquelas palavras como uma despedida.

Na hora do mate gelado, ele pensou muito até decidir-se, visto que tomou vários copos. Depois subiu para o seu quarto, onde largou a caixinha de veronal no corredor – deve ter passado um lenço para eliminar quaisquer vestígios. Aí deitou-se após colocar o envelope às autoridades e esperou tranquilamente a morte chegar.”

– Mas porque a carta?

– Ele acreditava que, confessando, sua alma seria aliviada e imaginava que todos os enteados o detestavam. Então resolveu se transformar num deles e escrever a tal carta de vingança.

– E ele não temeria que Lucy pudesse ser condenada?

– A essas alturas Lucy não significava mais nada para ele. Desprendeu-se dela totalmente e preocupava-se exclusivamente com sua consciência.

– Então porque a herança?

– O testamento deve ter sido redigido antes. Talvez logo após a morte da Sra. Abigail.

– Não dá para acreditar!

– E porque não?

– Para mim é apenas uma solução. Como outra qualquer.

– De forma alguma. Ela está em harmonia com todos os depoimentos.

– É...

– Perceba que todos mencionaram que o Sr. Catsmeat estava mudado nos últimos tempos. Tudo isso é conclusivo.

– Mas e a carta?

– Maldita carta! Você não percebe que a inexistência da carta fatalmente levaria todos a pensar na hipótese de suicídio? Você mesmo disse que o Inspetor evidenciou alguns pontos da carta para evitar que pensassem em suicídio? Foi tudo muito bem planejado. Ele não queria ser lembrado como um covarde. Alguém que fugiu da vida pelo sentimento de culpa. Preferiu ser “assassinado” do que assumir a covardia. Quer mais alguma coisa?

– Não. Mas não pense que me convenceu.

– Tudo bem, não era esse o meu objetivo. Sabia que não convenceria ninguém. Como pode ver, não há provas conclusivas para a minha hipótese, mas creio que ela é mais aceitável do que qualquer outra.

– Aceitável. Somente isso que ela é.

– Eu seria capaz de apostar mil por um a favor dela.

– Você teria muitas chances de perder.

– Pelo contrário. Alguns detalhes da minha hipótese podem estar equivocados, mas o principal tenho certeza que acertei: “Quem”: Dave Catsmeat; “como”: suicídio por ingestão de Veronal; e “porquê”: sentimento de culpa.

– Está bem. Você venceu, não discutiremos mais o assunto.

– Convenceu-se?

– Tá, tá. Não vamos falar nesse assunto. Estou cansado. Sabe que horas são?

– Não.

– Três horas da madrugada. Eu já não aguento mais de sono.

– Você está me mandando embora?

– Não, você pode ficar, mas eu vou dormir.

– Eu vou. Pode ficar sossegado.

– Boa noite Euris.

– Boa noite para você também. Sonhe com a Sra. Abigail que deve ter sido uma mulher e tanto, apesar do nome. Ela deve ter tido vários homens.

Aquilo me acendeu uma chama na cabeça. Comecei a ter alguns pensamentos, mas logo o sono foi maior e só me lembro de ter acordado no dia seguinte às onze horas, isto porque o carteiro tocava firme a campainha.

B I I I I I I I I I I I I I I I I I I M

* * *

EPÍLOGO

Biiiiiiiiiiiiiiiim. Acordei de repente. Levei um susto e fui ver quem era. Era o carteiro. Trazia várias cartas, mas uma delas me chamou atenção. O carimbo era de Londres e o envelope era da Scotland Yard. Abri rapidamente. Era do Inspetor Damman. Li com atenção e fiquei de certa forma surpreso.

“Caro Amigo

Aconteceu um fato interessante que acho que você vai gostar de ter no seu arquivo. Quando Lucy comprou a casa dos irmãos ela resolveu remobiliá-lo. O colchão do Sr. Catsmeat estava num estado lastimável, com o pano inteiramente rasgado. O comerciante que o adquiriu resolveu trucidá-lo e eis que encontrou entre as espumas um manuscrito que o Sr. Catsmeat fez antes de morrer. Ficou comprovado que a letra era dele mesmo. Nós da Scotland Yard ficamos altamente surpresos. Aqui vai o manuscrito:

“Estou escrevendo esta carta antes de morrer. Espero que a senhora morte tenha paciência e deixe eu terminar de escrever meu relato.

Eu sempre tive a intenção de ficar rico e famoso, mas vim de uma família pobre. Mesmo assim, com muito esforço consegui me formar médico. Esperava abrir uma clínica e enriquecer, mas as coisas eram difíceis e eu não conseguia prosperar. Foi quando eu conheci Juliana. Juliana logo me compreendeu e compartilhou da idéia de que, pobres, não poderíamos nos casar. Eu estava me esforçando, me esforçando..., mas um dia, Juliana me apresentou um plano.

– Querido, tenho uma idéia de como ficarmos ricos. Eu trabalho na casa de um casal muito rico. Ele está com câncer e deve morrer a qualquer momento. Ela é muito entregada. Você deve aproximar-se dela e, quando o marido morrer, você se casa com ela. Então, você dá um fim nela e seremos felizes para sempre juntos.

– Um dia, Juliana, você me apresenta essa mulher.

Abigail Pherson não era exatamente como Juliana dizia, mas eu consegui conquistá-la. Ela amava o marido, mas não se conformava em perdê-lo. Eu, aos poucos fui confortando Abigail e quando notei já estávamos na cama. Foi aí que ela ficou grávida de Lucy. Fruto de um verdadeiro amor, Lucy era minha filha. No ano seguinte o Sr. Pherson morreu. Abigail já estava preparada e em menos de três anos estávamos casados. Eu já tinha me esquecido totalmente de Juliana. Apaixonei-me completamente por Abigail.

Juliana então, começou a me fazer ameaças, e eu tentei convencê-la de que não queria mais nada com ela. Eu amava abigail e não iria deixá-la de forma alguma, quanto mais matá-la. Juliana pareceu se conformar, pelo menos até... até a morte de Abigail. Não sei se foi realmente um acidente. Sou capaz de apostar que Juliana teve algo a ver. Lembro-me claramente dela falando:

– Finalmente, querido. Você fez um ótimo trabalho.

– Você está louca? Eu não fiz nada!

– Sim, sim, claro. Ninguém saberá de nada.

Eu não podia fazer nada, pois, de certa forma, estava tão envolvido quanto ela. Ela insistiu para que nos casássemos, mas eu não quis. Mesmo assim não podia evitar que ela me possuísse. Eu era um escravo dela. Lucy e seus irmãos nunca desconfiaram de nada. Agíamos com a máxima discrição, mas aquilo era uma farsa. Precisava acabar com aquilo.

Um dia eu chamei Juliana e lhe disse:

– Eu não aguento mais! Vamos acabar com isso de uma vez por todas! Deixe-me Juliana, vá embora, eu não quero mais você!

– Os seus enteados gostariam de saber que foi você quem matou a mãe deles;

– Eu não matei ninguém! Foi você, sua maldita!

– Não seja tolo, querido, quem iria acreditar que eu pudesse matar a patroa? Não teria motivos.

Eu gritei muito. Tive a nítida impressão que a casa inteira ouviu minha voz. Comecei a ficar temeroso, com receio que alguém pudesse imaginar coisas. Meus enteados começaram a me evitar. A própria Lucy passou a me rejeitar. Juliana sempre me olhava com escárnio. Passei a sentir ódio de mim mesmo. Comecei a achar que teria sido eu mesmo quem matou Abigail. Passei a ter pesadelos, vendo-me empurrá-la pela janela. Um sentimento de culpa passou n nascer dentro de mim. Tentei fugir à realidade bebendo, mas os pesadelos só pioraram e cada vez eu me sentia mais rejeitado. Resolvi me matar. Não queria um simples suicídio. Resolvi criar um enigma. Escrevi uma carta onde sugeria que tivesse sido assassinado por um de meus enteados. Eles não correriam risco de ser condenados pois eu escolheria um momento exato, onde seria impossível incriminar alguém. Este dia aconteceu. Na hora do jantar eu proferi as últimas palavras aos meus enteados e depois, no chá, tomei os sedativos. Minha cabeça começou a doer e eu subi para cá e comecei a escrever esta outra carta. Sinto que a minha morte está próxima. Estou tonto, preciso terminar... Só desejo que o sentimento de culpa se aposse de Juliana que venha cometer o suicídio também. Adeus mundo cruel!”

Srta. Juliana Willard era a governanta da casa. Nós tentamos encontrá-la, mas descobrimos que ela havia cometido suicídio também. A cabeça dentro do forno, com o gás aberto. Bem, creio que um dos seus casos insolúveis tenha sido encontrada a solução.”

Joguei a carta em cima da mesa e comecei a refletir. – Incrível! Extraordinário! Não é possível crer que tenha sido uma mera coincidência. Mesmo assim uma dúvida persistia. Quem teria matado a Sra. Abigail? Teria sido mesmo Juliana?

– Eu não quero mais saber de crimes por um bom tempo. Esse já me desgastou totalmente. E não vou falar nada para o Eurípedes, pois se ele souber desta carta vai me caçoar a vida inteira – falei comigo mesmo.

Fiz as malas e fui para o Canadá. Lá eu estaria longe do Eurípedes.

Essa doença pega!

* * *