O parafuso

Eram nove horas da manhã quando o elevador parou no décimo andar e Evelyn o tomou. Veio vazio. Ou quase - por pouco a moça não pisou num parafuso que estava solto no meio do elevador. Por instinto afastou-o para um canto. Depois, pensou em apanhá-lo: poderia ser-lhe útil, mas acabou por desistir. Ajeitou o vestido rodado, olhou-se discretamente no espelho, por onde viu entrar a vizinha do nono, a mulher do olhar distante que invariavelmente cheira a perfume vencido e que só a cumprimenta quando Evelyn está com o marido.

Por instantes Evelyn se arrependeu por ter afastado o tal parafuso: Esta dona bem que ela poderia ter pisado nele e despencado desse salto que tanto inferniza Bebel que mora no oitavo...

Ao retornar do supermercado Evelyn utilizou o elevador de serviço. Só à tarde lembrou-se do parafuso que deixou de apanhar no elevador e parecia caber certinho no puxador do seu guarda-roupa. Incrível como nem ela nem o marido se lembravam de comprar.

Não teve dúvidas. Acionou o elevador social torcendo para que viesse vazio, mas não veio. Lá estava o homem elegante do décimo primeiro, com aquele olhar sedutor que a perturbava sem que ela soubesse a razão. Trazia uma valise que a moça imaginou ser um lap top.

_ Boa tarde, Evelyn. Você está bem?

_ "Boa tarde, Dr. Olavo. Tudo bem, obrigada e você? Evelyn até já sabe o que ouvirá como resposta...

_ Melhor agora. Luminosa manhã!

O "luminosa manhã" era proposital. Certamente ele sabia o efeito daquelas palavras...

Disfarçadamente a moça procurou com o olhar o parafuso que estava no mesmo lugar que havia deixado pela manhã; apertou o botão do sexto andar.

Quando o elevador parou a moça disse apenas

_ Até! E eu fico aqui. Sorriu mal escondendo o nervosismo.

_ Tenha uma boa tarde e até breve. Disse o Dr.Olavo.

Evelyn caminhou na direção do apartamento de Bebel e assim que o elevador desceu, ela retornou. Contou até cinqüenta e tornou a chamá-lo.

Por sorte o elevador veio vazio e ela apanhou o parafuso que coube certinho na maçaneta do guarda-roupa do seu quarto.

A moça se pegou pensando no Dr. Olavo, o vizinho de cima: no seu olhar triste e sedutor. Nunca vi ninguém no seu apartamento. É gentil com todos, mas, nunca o vi conversar com ninguém. Qual será a sua profissão? Em cinco anos que mora aqui, os únicos ruídos vindo daquele apartamento parecem ser de filmes ou televisão.

Evelyn lembrou-se de ter visto em filmes, pessoas usando um copo para ouvir através das paredes. Mas é impossível encostar um copo no teto. Sorriu ao pensar que escadas servem inclusive para alcançar o teto. O telefone interrompeu os seus pensamentos e ela se esqueceu por completo do assunto.

Quinze dias depois Renato, marido de Evelyn, chegou contando que a velhinha do trinta e dois estava sendo levada ao Pronto Socorro. Pisou num parafuso solto no elevador, que lhe perfurou o sapato. _ Foi sangue pra todo lado. Por sorte o danado se quebrou e o susto foi só pelo sangue, pois o parafuso nem chegou a entrar muito no pé da velhinha. Mas, como jorrou muito sangue e a senhorinha é diabética, acharam melhor levá-la ao PS.

Evelyn ficou pensando nos estranhos parafusos soltos no elevador.

Enquanto Renato tomava banho, ela interfonou para a portaria perguntando pela faxineira: _ Seu Xisto, a dona Odete está aí? Ah, só segunda-feira? Por favor, o senhor sabe me informar o telefone da casa dela? Está bem, muito obrigada. É que eu quero saber se ela achou um guarda-chuva que esqueci no elevador. Obrigada, Sr Xisto e boa noite.

Dona Odete naturalmente não achou nenhum guarda-chuva verde, mas acabou falando sobre parafusos espalhado pelo prédio...

Evelyn retirou cuidadosamente o parafuso que havia colocado no seu armário guarda-roupas, colocou-o num saquinho de veludo azul usado para bijuterias.

Custou a convencer Renato a acompanhá-la à casa de um amigo técnico em balística.

O casal acordou na manhã seguinte com os ruídos que vinha do andar de cima.

Pela janela viram quando Dr. Olavo, algemado foi levado preso no carro preto fosco da Polícia Federal.

No noticiário da televisão Evelyn e Renato viram parte do arsenal de espionagem sofisticado encontrado no apartamento do falso Dr. Olavo. Eram centenas de filmes e fotos, 27 monitores que recebiam imagens das câmeras minúsculas em vários formatos, inclusive parafusos, que o acusado espalhava no prédio e outros locais. Foram apreendidos também binóculos de alto alcance diurno e noturno...

Anita D Cambuim
Enviado por Anita D Cambuim em 30/01/2010
Código do texto: T2059069
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.