A viagem de trem.

Eram 17h05m quando Lui chegou à Estação Ferroviária.

- Droga! O maldito congestionamento me atrasou e agora, por causa de cinco minutos, terei que esperar três horas.

Instintivamente apalpou a altura do coração e resmungou - Ao menos não está chovendo.

Na Estação não havia livrarias. Na Banca de Revistas encontrou o que precisava: um Guia de Viagens.

O único bar da Ferroviária estava lotado - Vou esperar até esvaziar um pouco. Ao que parece muita gente perdeu o trem ou, depois do trabalho, se reúne ali pra jogar conversa fora.

Lui achou um banco vazio junto ao local de embarque. Dali podia ver o céu - Parece que vai chover. Isso não significa que chova em "Ed". São 8 horas de viagem: 500 km. De qualquer maneira, trouxe capa, guarda chuva...

Tirou do bolso o celular e se distraiu procurando por chamadas perdidas, mensagens, mas nada havia. Quando o telefone tocou de repente, quase o atirou longe de puro susto. E Lui pensou: que droga, eu não preciso ficar assim tão nervoso.

- Alô. Fiquei preso num congestionamento e perdi o trem das 17h00h. Agora só às 20h. Estou à toa, fazer o quê? Tá, tá... não se preocupe. Até amanhã.

Desligou e praguejou - Maldita coleira eletrônica: que saco! Se ele não confia em mim, por que me contratou?

Engoliu em seco - Afinal, ele é o patrão. Mas, quem afinal é este cara?

Não sabia se admirava ou invejava o tal Dr. Sion: o homem poderoso que rastreia de norte a sul os políticos e os substitui conforme suas conveniências. Ficar do seu lado é garantia de boa vida. Sorriu ao pensar que um dia poderia fazer pequenas entregas de avião, ter motorista particular e, quem sabe, até um iate como Gru, o homem de confiança de Sion?

- Só estou no terceiro trabalho externo, mas sonhar não custa nada.

Tornou a observar o bar. Pareceu-lhe que havia ainda mais pessoas.

Consultou a hora no celular. Caminhou despreocupadamente para o bar. Retirou da mochila duas garrafas térmicas de 500 ml e mandou enchê-las com café forte. Comprou também 20 balas de laranja. Era o que usava quando desejava manter-se acordado.

Outra vez, Lui sentiu necessidade de lavar as mãos e foi ao sanitário.

Aproveitou para descarregar a bexiga. Era a quinta vez que fazia aquele ritual, desde que chegara à Estação - Todo mundo fica ansioso antes de viajar. Nada demais. - disse pra si mesmo, à guisa de consolo.

O terceiro vagão lhe pareceu confiável: a lotação era constituída de tipos inofensivos: pessoas idosas, crianças, mulheres e dois homens com menos de 40 anos. O que estava sentado perto do sanitário só podia ser torcedor fanático, pelas caras e bocas que fazia enquanto lia a seção de esportes do Jornal. Usava uma camisa de um time de futebol famoso.

Outro, sentado à sua frente, parecia no mundo da lua - Se não estiver drogado, está cansadão.

Lui se sentou no meio do vagão, em um assento que dava para o corredor.

O trem já havia anunciado a partida quando outro rapaz entra no vagão e se senta no único banco na vertical, dois à frente de Lui. Este, a própria imagem do CDF, trazia uma pasta de onde retirou um livro grosso com avidez de viciado começou a sua leitura.

O celular tocando de novo:

- Perfeito. Sim senhor. Está bem. Espero que não atrase. Boa noite. Pode deixar.

Desligou o telefone e ficou pensando - Das duas uma: ou o sargentão não tem o que fazer ou é um carrapato messsmo. Que saco!

Lui aproveitou a parada do trem e tomou mais um gole de café, direto no gargalo da garrafa térmica, como vinha fazendo a cada vinte minutos. Depois, fez um movimento como quem acomoda as costas e os ombros. E pôde sentir o envelope grudado no seu peito, dentro do qual levava a "surpresinha" para o jovem Prefeito que se achava o Robin Wood do pedaço.

Retirou o Guia de Viagens da mochila e reestudou o mapa de ED, a cidade que visitaria na manhã seguinte. Já havia decorado o trajeto que faria até encontrar-se com o tal Sr. Prefeito, que tinha a mesma idade dele: 36 anos.

Lembrou-se da frase do Dr. Sion: "Essa missãozinha é como tirar pirulito de criança". Suspirou e olhou pela janela: mato de um lado e do outro, uma elevação aqui, outra acolá... Que monotonia! - Levarei assunto pra essa gente.

Às 23 horas, crianças e velhos ressonavam. O rapaz cansado parecia petrificado e o do livro, continuava submerso na sua leitura, enquanto o do jornal olhava pela janela, comendo sanduíche e bebendo Cola.

Lui se levantou para esticar as pernas. Caminhou um pouco de lá e pra cá... Então, se encostou no canto no final do vagão e se espreguiçou.

A porta do sanitário estava fechada e em um disco na maçaneta podia-se ler: Ocupado. Mesmo assim, uma moça de cerca de 40 anos tentou abri-la. Ao perceber que estava ocupado, ficou um pouco sem graça e ficou ali esperando.

Quando o seu olhar cruzou com o de Lui, a moça lhe perguntou com delicadeza:

- Moço, você vai usar o sanitário?

- Não, eu só estou esticando as pernas.

- Ah! - disse ela. Sorriu, ajeitou a saia e os cabelos.

A porta se abriu e a moça entrou. Lui pode ouvir o breve ruído de água escorrendo na pia... mas, logo a moça saiu. Lui pensou - Só foi arrumar a calcinha...

Ela lhe deu as costas e caminhou até o seu lugar: três bancos atrás do que Lui havia ocupado. Seguiu-a com o olhar deliciado.

- Ao caminhar, uma mulher mostra todos os seus encantos. Como eu não reparei nela antes? Que contornos!

Lui resolveu se sentar ali mesmo na frente do leitor de jornal, que a esta hora cochilava.

Passava de meia noite. Os movimentos e ruídos monótonos, a escassa luminosidade, foram atraindo o sono de Lui que, apesar de já haver consumido metade da segunda garrafa de café, estava sonolento.

Lamentou não ter comprado água gelada na última estação. Poderia beber e lavar o rosto...

O ruído monótono, as sombras que passam, o balanço... E nada de chegar à outra parada.

Lui tornou a levantar-se para não cochilar.

Quando destampou por inteiro a segunda garrafa térmica para beber os últimos goles, o trem freou e Lui, desequilibrando-se, recebeu um jato de café direito no peito: ensopou a camisa e, naturalmente, o envelope que ele trazia ali fixado com o pó mortal destinado ao Prefeito de ED.

Lui ficou nervoso e deixou escapar um - Merda! - enquanto pensava - Eu não poderia molhar isso. Mas, agora é tarde. Droga!

Imediatamente, no peito da camisa verde escuro de Lui formou-se enorme mancha amarelo gema. Ele nem viu quando dois homens saltaram sobre ele e o imobilizaram: o "cansadão" e o leitor de jornal. Lui ainda tentou lutar, mas a moça do andar gracioso lhe apontou com uma das mãos um revólver e, com a outra, o distintivo de Delegado Federal. Foi o cansadão que o algemou com as mãos para trás.

O "do jornal" retirou o celular do bolso de Lui e mandou mensagem de rastreamento para a Central, enquanto o revistava por inteiro.

O Dr. Sion, a voz sem rosto, nunca foi molestado: é peixe grande demais.

Anita D Cambuim
Enviado por Anita D Cambuim em 04/02/2010
Código do texto: T2068082
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