Mórbido Conto

Dezoito de outubro, oito e dez da manhã, domingo, Rua Fernando Moreira nas proximidades da Prudente de Moraes. Rua do Rio. Rua dos Chorões. O “Valetão”.

Está me entendendo? Tudo entendido? Copiou o endereço?

Corpo de um rapaz encontrado morto dentro do esgoto. Aproximadamente de quinze a dezoito anos. Trajando calça jeans, tênis preto de marca, camisa listrada. Um corte de cabelo modernoso. Marcas na agressão na face. Olhos roxos. Boca inchada e com dentes quebrados. Ainda não temos o laudo pericial. O fotografo está aqui fazendo o seu trabalho junto com a equipe, câmbio. Prá variar o local do crime está um inferno, cheio de voyeurs e vampiros loucos para especular sobre a desgraça alheia. Que dúvida. E os urubus sempre são os primeiros a chegar. Não sei quem é o filho da puta que avisa prá essa maldita imprensa que tem presunto fresco na área. Fazem de tudo para vender jornal. Merda! Não deixam os profissionais trabalharem e paz e depois ficam de cobrança, ora veja! E aí o doutor delegado caí no meu pêlo. Quer pegar no pé. É como eu sempre digo: “quem trabalha direito, só se fode...” Não tem erro. Tem que arrumar suspeito rápido porque senão é bosta de jornal jogando na cara dia após dia. E esses repórteres então? Toda vez que eu vejo repórter fazendo fervo em cena de crime eu tenho vontade descer a bordoada, meu amigo. Baixar o pau, mesmo. Bons tempos dos milicos. Você não tinha liberdade de fazer como você queria. Era tudo Lei de Segurança Nacional, mas dava prá pegar jornalista e fazer a velha “operação malote” neles. Sabe como é.

52 anos e já quase em época de se aposentar ainda tenho que esquentar a cabeça com esse tipo de situação. Em pleno domingão. Gelado. Mas domingo. Curitiba é assim mesmo. Com o tempo a gente acostuma. Programa é ir à feira comer pastel e quando tem cadáver é que o povo fica ouriçado. Ninguém tem costume de conversar com desconhecidos aqui na cidade, mas quando tem toda essa nojeira o povo bate papo como se fossem amigos de dez anos. Quando recolherem o piá no saco preto e tocar para o IML, dispersa esse movimento e se você encontrar o cara que estava animadamente falando contigo, ele não vai nem lhe dar bom dia. E nem você. Você está anotando tudo direitinho? Mas o ano que vem eu me aposento e largo essa vida de tira honesto. Vou abrir um bar para os granfas e só ficar servindo uísque caro, vinho do Porto, quibebes e quetais. Chega dessa vida de plantão. De ficar limpando a sujeira que vagabundo faz. Chega de mexer nos “de cujus”, como dizem os doutores. Doutores? De cu é rola, caralho! Trinta anos de plantão, investigação e de testemunhar em júri quando você finalmente pega o salafra. Só esquentando a cabeça. Copiou o endereço direitinho? Conversei com uma madame que diz conhecer a vítima. Parece que ele fugiu de casa. Craque. Pedra, meu irmão, entendeu o recado? Ou quer que desenhe? Andava dormindo pelos bancos das praças da região e a dona acha que ele se exaltou e alguém deu um corretivo. E que corretivo! Deixa a perícia trabalhar, e depois disso entro em cena. Abordo um cabeludo de seus trinta para quarenta anos. Cabelo castanho começando a branquear, barba indo pelo mesmo caminho. Tatuagens nos braços. Todo de preto. Óculos Ray Ban na cara. Conheço o tipo como ninguém. Está na cara que puxa fumo e gosta de roque. Já tive essa fase quando era mais novo e entrei para a polícia. Mas o figura tem cara de gente boa. Disse-me que é isso que acontece com quem insiste nesse vício maldito. Até contou que já tinha visto o garoto fazendo agito, muito louco, pelo bairro. Mora por ali desde que nasceu. Mas como todo maluco velho não se leva por sujeira. Tem um rosto afável quando tira os óculos. Olhos castanhos de zumbi. Deve ter acabado de queimar um puta baseado antes de sair de casa. Ficou chocado ao ver toda aquela cena, confessou. Esses malucos maneiros, loucos mansos que fingem que esse mundo cão é uma jóia para não enlouquecer e entrar no esquema. Me conta que é um tal de “web designer”. Não faço a mínima idéia do que é isso. Ligo o computador na delegacia só prá escrever os relatórios que o superior pede. Fazer o quê? Sou de outra geração, preferia que continuasse como sempre foi, mas o tempo não perdoa ninguém. O certo é que mataram o moleque a paulada. Isso foi o que a perita contou quando subiu do valetão. Essa tem estômago. Serviçinho escroto esse de abrir os mortos. Mas ela deve gostar. O que fazer? Parece também que foi esganadura. Enforcamento e paulada comeram soltos. Opa, alguém da minha equipe levantou algum dado importante. Ih, boa coisa não deve ser. Duas histórias diferentes. A famosa contradição. Lá vamos nós.

Um malaco de seus vinte e tantos anos. Louco, alucinado, mal-ajambrado. Balbuciando palavras. Mais doido que o Lobão. Feito o maconheiro gente boa que abordei anteriormente saquei na hora o embalo. Pedra de craque derretida na lata. Esse pessoal parece bobo. Não percebe que tira não cai em qualquer conto do vigário. Querem enganar quem passa a vida lidando com tudo que tipo de meliante sem-vergonha que existe. Espremo o malaco e ele abre o jogo:

A vítima fazia programa com homens (homens?) para sustentar o vício. Um dia tinha família só que preferiu a rua. Pequenos furtos e como era cagão resolveu que fazer michê. Mais tranqüilo. Tinha meia dúzia que clientes fixos da alta roda que pagavam muito bem. E o otário ia para as bocadas fumar pedra até não ter mais nada e voltava para vida. Fazia dois anos que tinha entrado nessa. Se conhecerem por aí. Irmãos de infortúnio, pois sim...

O seu cliente preferencial era um deputado federal, casado, pais de duas filhas gostosas formadas e pós graduadas na gringa e que não saiam da coluna social, a mulherzinha dama de sociedade, fazia caridade para lavar imposto de renda das falcatruas do marido político e veado enrustido. Uma ocasião foram juntos fazer um programa e o bacana pagou mil reais para cada um. Só que segundo essa testemunha o deputado curtia umas transas estranhas. Tipo sadomasoquismo se é que você me entende. Asfixia, chicote, algemas, couro, vela, porrada, essa viagem. Dava e comia. Batia e apanhava. Na noite anterior o programa deveria ter sido espinhoso e deu no que deu. O político desovou o presunto na valeta. Dei voz de prisão na hora para o cara. Tá louco, meu! Vou ficar queimando o filme da minha delegacia e do meu chefe com Secretário de Segurança Pública só prá investigar deputado federal tarado que curte umas doideiras com menininho de rua? A imprensa salivava pelo furo que eu tinha acabado de dar para eles. E os populares que queriam linchar o otário- que eu já meti algema - e foram contidos pela Polícia Militar que nessas situações presta prá alguma coisa. Os jornais venderiam aos tubos em edição extra, eu tinha encontrado um laranja para segurar bronca alheia e livrar a cara da equipe, depois de um bom pau-de-arara o moleque iria assinar qualquer coisa que eu escrevesse. O povão ficou satisfeito em ver que a polícia funcionava e fazia seu trabalho direitinho, era só apertar no lugar certo que os bandidos e assassinos abrem o coração para a gente. Vou eu, perto do fim de carreira dar uma de herói e ficar investigando velho pervertido lá de Brasília, cheio de jagunços e de dinheiro para contratar advogado corrupto e ainda me fazer responder sindicância? Trinta anos de casa?

Caso encerrado, meu irmão.

Anotou? Câmbio final.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 12/02/2010
Código do texto: T2083651
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