Quem procura, acha...

(O forte morre nas mãos do mais fraco)

Trabalhávamos na construção da Rodovia dos Imigrantes nos anos 70. Era um ano como qualquer outro, um bom ano para se trabalhar.

A obra era no meio da selva. Não parecia, mas estávamos tão próximos da civilização e ao mesmo tempo tão longe dela - o paradoxo era devido à dificuldade de acesso e visualização. O acampamento no final do planalto, bem próximo à descida da Serra do Mar, era tão isolado quanto não poderia deixar de ser. Seu acesso pela estrada de terra aberta na mata estava sendo alargada para ser a própria rodovia no traçado original do seu projeto.

Ficávamos acampados durante quinze dias e vínhamos para casa, portanto, duas vezes por mês. A cidade mais próxima era pouco mais que um vilarejo e havia ali uma república onde pernoitávamos de domingo para segunda. Tínhamos que sair bem cedo para chegar ao acampamento duas horas depois, tomar o café e sair para o trabalho que iniciava às 07:00 hs. Não sem antes “derrubar” na chapeira, a chapinha – uma plaquinha de metal, redonda, cujo número identificava o funcionário. Era na verdade o nosso cartão de ponto.

Isso tudo, no entanto, quando o tempo estava bom. Porque quando chovia a viagem se transformava numa verdadeira aventura e não raro chegávamos ao acampamento no final do expediente – lá pelas seis horas da tarde. Ganhávamos o dia empurrando caminhão e nos divertindo como criança em dia de chuva. Nessas ocasiões, tomávamos nosso café numa padaria ao lado da república. E tínhamos que levar um lanche sobressalente, pois sabíamos que passaríamos o dia sem almoço e amassando barro como numa olaria.

Num desses dias estávamos naquele local, como de costume, e testemunhamos um fato que nunca mais sairá de nossas lembranças. Foi um acontecimento de certa forma até corriqueiro em certos ambientes, mas com um final inusitado e trágico. Foi uma cena forte e uma lição de vida que jamais poderá ser esquecida.

Nosso grupo estava num dos extremos do balcão. Todos em pé – umas dez pessoas em volta de três banquinhos fixos. No centro do balcão, sentado, um cara meio estranho com uma cicatriz no rosto e uma tatuagem mal feita no braço. Mais tarde saberíamos o significado dela. Era madrugada, não estava calor, mas ele estava em mangas de camisa – uma peça longa de brim que escondia um volume na cintura. Por isso, talvez, já tomava uma “branquinha”.

Alguns do grupo até ironizavam disfarçadamente. O rapaz que atendia no balcão nos alertou discretamente sobre o perigo: – “Fiquem longe dele e cuidado com o que falam” nos disse “se ele perceber, vai provocá-los. Se isso acontecer, ignorem. Façam de conta que não é com vocês e se mandem, senão a coisa fica feia. Esse cara não é flor que se cheire – nem de longe...”

Ele olhou para o nosso lado, parecia saber do que falávamos. Mas não teve nenhuma reação – apenas olhou. Mas era um olhar frio, compenetrado, autoritário e ao mesmo tempo ausente. O rapaz nos serviu e se afastou para o outro extremo do balcão onde outro grupo aguardava, contando piadas e rindo alto.

Nesse meio tempo, aproxima-se do balcão um rapaz aparentando uns dezesseis anos e pede pão doce com margarina e leite quente. Percebíamos, pelo seu jaleco brando com resquícios de farinha, que se tratava de um dos funcionários da padaria.

Assim que o copo de leite foi colocado sobre o balcão, o homem da cicatriz olha para o rapaz e diz:

– Você vai beber isso?

– Sim.

– Não vai não...

Despejou o leite na pia, pegou outro copo e ordenou que se colocasse pinga. O atendente fez isso rapidamente. O da cicatriz pegou o meio copo de pinga, virou-se para o rapaz e disse:

– Isso que é bebida de homem. Beba!

– Eu não bebo pinga...

– Não bebia, agora vai beber...

– Não vou beber isso não...

– Ah! Vai sim...

Sacou o revólver que trazia na cintura e começou a esfregar a mira no seu rosto pálido, deixando riscos vermelhos.

– Dói? Então bebe! Senão, logo você não vai sentir mais dor nenhuma.

Agia com a maior naturalidade, como se não houvesse mais ninguém ali, além dos dois. E havia pelo menos mais umas quinze pessoas. Com certeza todos sentiam pena do rapaz, mas ninguém se atrevia a intervir. No máximo, torciam intimamente que ele tomasse logo aquela pinga e se mandasse dali.

E o agressor, consciente do pleno domínio da situação, sequer olhava ao redor. Simplesmente brincava com o rapaz, como um gato faz com um rato quando não está com fome e o tem encurralado.

E o rapaz bebeu. Bebeu tudo de um só gole e saiu.

– Tá vendo? Não doeu nada. Pena que nem sentiu o gosto...

Enquanto o rapaz sumia na porta de saída, ele continuava a pensar em voz alta: – Pronto! Batizei mais um. Esse agora virou homem; acabou de desmamar...

Depois ficou sério, pensando sabe-se lá o que. O silêncio no local era constrangedor e todos se preparavam de uma forma ou de outra para sair também. Não havia mais clima para piadas ou conversas banais.

O que acontecera ali era muito sério e todos deviam se sentir meio acovardados e, de certa forma, responsáveis pela humilhação sofrida pelo rapaz. De qualquer forma, o assunto estava encerrado e o melhor para todos era abandonar aquele ambiente de culpa e cuidar cada um da sua vida.

Não demora muito, porém, e o rapaz volta. Pisando duro. Pára ao lado do seu agressor, que ignorava completamente a sua presença, fez menção de pegar o pão que havia deixado num pires sobre o balcão, mas muda de idéia. Num gesto rápido, tira algo que trazia sob o jaleco, e atinge o homem na barriga. Todo mundo ouviu o grito abafado e percebeu quando ele deu uma cutucada para cima.

Parecia alguém habituado a matar um porco. E era mais ou menos isso que ele fazia ali. O outro ainda pousou as mãos sobre seus ombros. Apenas pousou, afrouxou e caiu. O rapaz também lhe caiu em cima dando-lhe tantas facadas quanto podia. E chorava! Chorava e repetia frases desconexas. Chorava de raiva e desespero e esfaqueava sem parar.

A aglomeração foi instantânea e a confusão generalizada. Alguns saíram em desabalada carreira, outros ficaram petrificados e ninguém sabia exatamente o que fazer. Nisso a polícia, que passava na rua e percebeu o tumulto, entra e tem o maior trabalho para tirar o rapaz de cima do outro. Este fica em pé, com as pernas abertas. De repente, seus olhos começam a girar e ele se estatela no chão. Um dos policiais o levanta novamente, enquanto outros dois observam com atenção o defunto fresco. – Esse já foi tarde. – diz um deles.

O outro concordou com a cabeça, mas não se manifestou verbalmente. Tirou um caderninho do bolso, olhou para o relógio, anotou algo, dirigiu-se ao caixa perguntando o que havia acontecido ali. Quis saber, depois, quem era o rapaz. Era de uma cidade maior, vizinha, e trabalhava com eles há pouco tempo. Era uma boa pessoa – lhe informaram.

Vira-se então para as poucas pessoas que ainda permaneciam no local e pergunta num tom visivelmente irônico: – Alguém aqui viu alguma coisa? Todos compreenderam, mas na dúvida ficaram em silêncio. – Muito bem! Já que ninguém viu nada, aquele ali morreu de graça e achou o que sempre procurou. Quanto a você – dirigindo-se ao rapaz – recupere-se, suma dessa cidade por um bom tempo e, para todos os efeitos, você nunca esteve aqui até a data de hoje.

Saímos dali rapidamente, pois estávamos vivos e precisávamos trabalhar. Aquele era realmente um bom ano para isso. Mas não era, certamente, um bom ano... para se morrer! Mas estávamos todos solidários com o rapaz e já não tínhamos, graças a ele, nenhum sentimento de culpa. Éramos cúmplices, e isso nos redimia...

Lourenço Oliveira
Enviado por Lourenço Oliveira em 21/01/2011
Reeditado em 21/01/2011
Código do texto: T2743495
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