Noites escaldantes em dias de inverno

Maldito aquecimento global, eu penso, enquanto me levanto para ajeitar o ventilador barato, que comprei no crediário. Meus poros expelem suor na mesma velocidade que o ultimo inquilino me pôs pra fora. Que se dane aquele sovina desgraçado.

A barra da camisa social está completamente encharcada, de tanto secar o suor que insiste em escorrer pela minha testa. O tecido de algodão gruda em minhas costas, tal qual uma tatuagem brinde em um saco de salgadinhos de queijo. Penso nos malditos romanos que adoravam uma sauna escaldante e amaldiçoo, com todas as minhas forças, aqueles pedófilos frigidos e pederastas.

A porta do escritório de oito metros quadrados permanece completamente aberta, na esperança de enganar uma brisa curiosa e solidária, que pudesse estar vagando no corredor do sexto andar. Com a minha sorte, era mais provável que fagulhas incandescentes e gases suspeitos aproveitassem a brecha proposital.

No entanto, para contrariar meu pessimismo, surge um furacão de vestido azul e pernas grossas. A temperatura da sala aumenta, mas não por causa da porta que ele fecha atrás de si. Meu pescoço infla de maneira automática e sou obrigado a afrouxar o nó da gravata vermelha.

A bela silhueta se desloca em minha direção, com a classe de uma lady londrina e com as curvas de uma rainha de bateria. Assobio por dentro, imitando um galanteador de meia-tigela. Seu rosto é fino e delicado, mas, o semblante é firme. Os cabelos escuros e cacheados, presos com desdém em um rabo-de-cavalo frouxo. Ela é muito perfeita, provavelmente, uma alucinação. Deve ser o calor cobrando seu preço

Coço, de modo pensativo, a barba de três dias que habita meu pescoço, arranco um pelo inconveniente do meu queixo, que insiste em crescer na contramão, e olho de relance para o rádio-relógio velho que dorme em minha mesa. Sete horas, da noite mais quente do inverno. O expediente já acabou faz uma hora. Mas, prefiro ficar quieto e escutar o que ela tem a dizer.

Antes que a mulher de vestido azul fale alguma coisa, encaro a cadeira a minha frente e a convido pra sentar. Aperto o interruptor cheio de fios, que parece querer escapar da parede, e as luzes fluorescentes do teto piscam alguns segundos antes de acender. Meus olhos se contraem, como o esfíncter de um presidiário, quando a claridade nocauteia violentamente a penumbra que tanto gosto. Imediatamente, a enxaqueca, que incomodou o dia inteiro, retorna com sagacidade e explode no meio do meu cérebro. Cretina implacável.

Com dois incríveis olhos verdes, ela me fita sem dizer nada. Não há nada que eu possa interpretar pelo seu semblante. Entretanto, não consigo deixar de notar a maquiagem carregada, que tenta sem sucesso esconder o hematoma embaixo de seu olho esquerdo. Só um míope daltônico deixaria passar.

Tentando parecer calmo, mas sem conseguir disfarçar o meu cenho franzido, herança maldita do velho tolo, acendo um cigarro light e trago com vontade o meu remédio para estresse. A fumaça entra em meu pulmão e a sensação é a mesma que a de um caça niqueis quando engole moedas. Preparo-me para uma segunda dose, mas, subitamente, ela avança sobre mim e arranca o cigarro dos meus lábios. A brasa se esvai quando ela mergulha meu melhor amigo em um copo plástico de café, jogado sobre a mesa.

Penso na simetria de seu rosto e cogito presentear-lhe com um adorno roxo para seu olho direito. Essas manchas não surgem sem motivo. Antes de protestar pela a indelicadeza, ela se adianta e pergunta:

- Você é o detetive.

- Sim e também sou fumante – digo, enquanto acendo outro cigarro – e para deixar bem claro, essa é a minha sala, portanto, minhas regras.

Ela tenta apanhar novamente meu cigarro, mas dessa vez consigo evitar agarrando sua mão. Sinto sua pele fina e lisa por baixo dos meus dedos nodosos e ásperos, e por um momento esqueço-me de tudo.

- Não se atreva – falo, afrouxando minha mão sobre seu punho macio, Preciso recobrar a consciência, afinal, sou um profissional. Solto uma baforada em direção ao seu rosto para mostrar quem é que manda. A fumaça viaja na forma de um círculo cinza e uma tosse rouca sai por entre seus lábios carnudos.

Ela me encara com os olhos furiosos e ameaça se levantar. Não posso mais bancar a pose de macho alfa, por isso, faço um sinal com a palma da mão estendida. Apago o braseiro na língua e guardo a guimba na gaveta. Compro de propósito seu blefe e, assim, deixo que pense que está no comando.

Desse jeito, tudo será mais fácil.