JUSTIÇA EM SOL MAIOR

JUSTIÇA EM SOL MAIOR

A sessão secreta da Câmara dos Deputados que julgaria o processo de cassação do Deputado Belmiro Figueira começou atrasada. O Deputado Belmiro estava sendo processado por desvio de verbas que alimentaram sua campanha de reeleição ao cargo de Deputado Federal que ocupava há dezesseis anos.

Impávido e sem receios, o Deputado Belmiro, aguardava calmamente o início dos trabalhos. Desde o dia anterior já tinha garantida sua absolvição.

A questão que prendia os “nobres” deputados da Comissão de Ética não tratava do mérito do processo, mas como se daria a absolvição.

Todos os membros da Comissão tinham em seus currículos infrações da mesma natureza. Aceitar a denúncia e condenar o Deputado Belmiro era um tiro nas próprias pernas. Poderia abrir precedentes que no futuro os colocaria no mesmo banco dos réus.

A questão que prendia os deputados era sobre a quantidade de votos que dariam para a absolvição. Se a decisão de absolver fosse unânime, poderia colocar a opinião pública em estado de alerta. Temia-se que uma absolvição com nenhum voto contrário acendesse a revolta, fazendo com que a sociedade se mobilizasse em futuros processos. E qualquer um poderia estar ali no banco dos réus e sofrer as conseqüências. Se a decisão fosse apertada, por um voto contrário à cassação, o clamor do público seria mais intenso que uma absolvição total, já que a decisão dividida traria a certeza da culpa e da impunidade.

Decidiu-se que a situação exigia três votos pela condenação. A questão que se discutia era quem votaria contra.

Alguns deputados invocaram para si esse enorme “sacrifício”. A intenção de cada um era firmar posição frente ao eleitorado, cada um do seu Estado, como deputado combativo e eticamente comprometido com a lisura do papel de congressista. Outros receavam trazer para si a ira do partido da situação que comandava a coligação que estava no poder, da qual o deputado fazia parte e era figura importante. Com a ira do planalto, temiam perder prestígio pela suposta "traição".

Decidiram pela forma mais democrática: o sorteio. Mais tarde explicariam ao Planalto a solução adotada, para que os deputados sorteados não perdessem suas emendas de verbas. Pelo contrário, deveriam ser premiados com as emendas que poderiam garantir-lhes novas fontes de recursos. O governo ficaria bem na fita por ter favorecido os deputados que votaram pela cassação. A opinião pública, certamente apoiaria. Afinal, havia tão poucos deputados confiáveis que era justo que aqueles que votassem pela condenação fossem premiados por isso.

O Deputado Belmiro Figueira foi então absolvido com apenas três votos favoráveis à cassação.

A imprensa cercou o deputado pedindo explicações sobre sua absolvição.

Ouviu o blá-blá-blá de sempre: que tinha sido alvo de denúncia espúria de adversários políticos, que era guardião dos elevados valores éticos e morais que sempre pautaram sua vida pública, que sua idônea atuação parlamentar havia despertado o desejo de vingança de alguns dos seus pares, e outras pérolas do gênero.

O caso repercutiu nos jornais da noite, até mesmo no jornal da emissora chapa-branca, que sempre apoiou qualquer governo de plantão. A notícia tinha que ser dada, afinal, outros veículos a divulgariam, e ela não poderia deixar de fazê-lo. A emissora tinha o “dever cívico” de reparti-la com o público. Mas, os editores do jornal da noite, como sempre, davam um jeitinho para que a notícia não fosse corretamente interpretada pelo público e o público não tivesse agilidade para elaborá-la em sua mente. Talvez, no jornal da madrugada, quando o eleitor trabalhador já estivesse dormindo, pudessem trazer algum conteúdo através do irônico comentarista da edição da meia-noite.

E foi assim que a notícia foi ao ar para o grande público:

“O Conselho de Ética da Câmara dos Deputados absolveu o Deputado Belmiro Figueira do processo de cassação por desvios de verba pública, neste início de noite. Três deputados votaram a favor da cassação”.

De Brasília, a correspondente local faria uma entrevista breve com o deputado absolvido, que repetiria o mesmo bordão de inocência, perseguição política, vitória da verdade, etc. Em seguida, o apresentador do Jornal abriria o seu mais simpático sorriso e anunciaria com orgulho:

“A Rainha Marta fez um gol de placa e colocou o Brasil nas quartas de final do torneio de Omã”.

O gol seria repetido por todos os ângulos. Marta, suada na beira do campo, daria a entrevista ao repórter do jornal com a placa de acrílico com os patrocinadores da Seleção Canarinho ao fundo.

O comentarista de esportes era chamado a intervir e, com a imagem do gol sendo repetido em câmera lenta, descreveria com círculos eletrônicos, a quantidade de defensoras adversárias que a rainha havia posto para trás, antes de fazer o “belo gol”. O distinto público seria levado às lágrimas com orgulho da compatriota.

As notícias do próximo bloco seriam anunciadas e entraria o intervalo comercial, como sempre, com o patrocínio das empresas do governo, uma de petróleo, outra de poupança, outra de entrega de correspondências, outra de um banco centenário e, eventualmente, de uma ou duas empresas privadas, afinal, ninguém é de ferro. Uma emissora, mesmo chapa-branca, precisa de dim-dim para garantir a mordomia de astros e divas dos folhetins, além dos cachês altíssimos dos diretores de sexualidade alternativa bem definida.

O Deputado Belmiro Figueira não foi direto para casa. Passou antes na casa da assessora que, em comemoração pela vitória, havia preparado uma festa íntima em seu luxuoso apartamento, bancado pelo deputado e, seguramente, por parte do dinheiro “justamente” desviado.

Dali foi direto para casa, já tarde da noite.

O chofer parou na garagem da imensa mansão do parlamentar. Despediu-se e recolheu-se à edícula nos fundos da casa, onde dormiam os empregados. A mulher e os filhos do deputado não estavam à sua espera. Dois estudavam no exterior graças às bolsas de estudos conquistadas com os fundos para a educação parlamentar. O pequeno dormia com a mãe no luxuoso quarto do casal. Há muito o deputado e a mulher habitavam quartos separados.

Nas trevas, o Justiceiro aguardava. E foi nas trevas que o “nobre” deputado sentiu o fio de nylon envolvendo seu pescoço até a morte.

A notícia repercutiu na imprensa. Foi um crime passional ou um crime político? A Polícia Federal foi chamada, mas o assassino não deixara pistas. A viúva não quis dar entrevista, devido à dor da enorme perda. Apenas garantiu que o legado político do marido não seria abandonado. Belmirinho, o filho mais velho, já estava a caminho para o enterro e, certamente, para as articulações políticas que o conduziriam a ocupar o lugar do pai nas próximas eleições.

A lista de suspeitos restringia-se à pessoas próximas à família já que não havia sinais de arrombamento na casa. O chofer foi preso para averiguações porque, alegou o delegado com ar de inteligência, tinha sido o último a ver o deputado com vida. As técnicas investigativas da polícia brasileira estão dentre as melhores do mundo, por isso a sociedade se satisfez com a prisão. Achado o suspeito e lidos os seus direitos, certamente confessaria o delito espontaneamente, mais tarde, após refletir solitariamente em sua cela. Advogados da OAB se prontificaram a fazer a defesa do chofer. Deram entrevistas na tevê. Conquistaram mais clientes por causa da maior exposição na mídia. O chofer foi libertado uma semana depois, graças ao habeas-corpus impetrado pelos brilhantes advogados. Estava mais magro, com algumas feridas no rosto obtidas em queda acidental na cela escura. Até hoje responde a processo. Perdeu o emprego. Teve a vida vasculhada. E o caso caiu no esquecimento.

O prefeito Fernando Cruz da cidade de Xereréca do Sul também tinha sua vida financeira alimentada com desvios de verbas públicas. Parte da merenda escolar era entregue pelo fornecedor no galpão da prefeitura de Xereréca do Sul. Outra parte, devidamente escorada por nota fiscal eletrônica, isto é, isenta de desvios de impostos, era entregue virtualmente. Seguia a nota fiscal, mas o produto não era entregue. A verba pública já empenhada era paga ao fornecedor na data do vencimento da fatura, que repassava a parte do prefeito, após o empresário separar o dinheiro para pagamento dos impostos e uma parte para si.

O Justiceiro aguardava nas trevas quando o prefeito Fernando Cruz estacionou seu veículo importado na garagem do sítio que mantinha nos arredores da cidade. A execução foi rápida: um tiro na nuca com a pistola 7.65 que o Justiceiro carregava. No isolamento do sítio, o ruído do tiro só foi ouvido pelos pássaros que dormiam nas árvores ao redor da propriedade.

Os jornais locais estamparam o crime. Jornais da capital emitiram pequenas notas a respeito.

Naquele ano, oito outros prefeitos morreram misteriosamente. Todos eles estavam envolvidos em desvios de verbas. O Jornal da noite deu destaque na notícia, comentando os casos anteriores.

A polícia, como de costume, não tinha pistas que levassem aos supostos assassinos. Outros inocentes foram identificados como suspeitos. Alguns foram presos, outros não. Não havia provas suficientes. Advogados se prontificaram para fazer da defesa dos inocentes. Ganharam novos clientes.

O Justiceiro lia o jornal naquela manhã com um ar de satisfação: sorrateiramente havia executado nove deputados e um senador nos últimos três anos. Todos de forma rápida: um foi afogado quando se banhava na banheira parlamentar, outro levou um tiro acidental quando limpava a própria arma, outro em acidente de carro, outro eletrocutado quando mexia no equipamento da piscina. Só um foi envenenado. A cozinheira estava presa, mas já tinha um advogado a representá-la.

A onda de crimes alertou a população e os parlamentares. Muitos deles contrataram segurança particular, dia e noite, vinte e quatro horas. Isso não impediu que o Justiceiro executasse dois juízes eleitorais que absolveram outros parlamentares.

O pescoço do presidente da Câmara ardia com a loção pós-barba quando um espasmo levou-o ao chão com fortes dores no peito. Sua morte foi considerada natural. O presidente sofrera fulminante infarto. O velório foi disputado. Os candidatos ao cargo vago compareceram, deram entrevista, exaltaram as qualidades do colega e, perguntados se seriam candidatos ao cargo vago, responderam não ser aquele o momento de se pensar no assunto. Um mês depois, um novo presidente havia sido empossado. Era filiado a um dos partidos da coligação do governo. As rodas do poder não param. Rei morto, rei posto, diz o ditado.

Mas a onda de crimes não parou por aí. Quatro Senadores e mais três deputados morreram em circunstâncias suspeitas. O pânico nas duas casas parlamentares se instalou. Intensificou-se a campanha pelo desarmamento. A polícia de vários estados ocupou pacificamente favelas e comunidades pobres. O chefe da segurança pública do Distrito Federal foi exonerado. A ordem tinha que ser restabelecida e a população acalmada. O caseiro de um Senador foi preso e teve a vida devastada. Descobriram um depósito de mil reais na sua conta de poupança, um dia antes da morte do patrão. Mesmo alegando que se tratava de dinheiro de um servicinho particular que fizera no tempo livre, não conseguiu provar a origem do dinheiro. Quem o contratou e pagou alegou desconhecê-lo.

O Deputado Alfeu Donizete recebeu com aflição a denúncia por corrupção. Mas, confiava nos seus pares. Sabia que seria absolvido. Porém, temia que fosse escolhido como bode expiatório, para acalmar a população. Ouviu do presidente do seu partido a promessa de que seria empossado em cargo de confiança, caso fosse cassado. Longe dos holofotes teria mais liberdade para coordenar o caixa dois da campanha do partido para o próximo pleito parlamentar.

Mas o que mais o afligia era o e-mail anônimo que recebera dias antes. O e-mail foi rastreado pelos especialistas em informática da polícia. A polícia ainda não tinha chegado a qualquer resultado. O rastreamento mostrou que o e-mail teve origem em provedor do exterior. O e-mail era curto e, laconicamente, dizia: “Eu sei o que você fez na campanha passada. Seus dias estão contados”.

Quanto mais se aproximava o dia do julgamento do Deputado Alfeu Donizete na comissão de ética, mais sua aflição aumentava. Coisas estranhas começaram a acontecer. Pneus dos veículos furavam inexplicavelmente, deixando seus seguranças tensos ao lado do veículo. O parlamentar travava as portas blindadas do automóvel enquanto o chofer se esforçava para providenciar a troca em meio ao temporal. Goteiras inexplicáveis surgiam do teto do gabinete, pingando sobre sua escrivaninha parlamentar e molhando seus preciosos papéis contendo números, nomes abreviados e valores indecifráveis ligados à construtoras idôneas. Urubus pousavam no quintal da mansão em que vivia. Isso era um mau sinal. Urubu dava azar, mau agouro. O avião que o levaria ao seu estado natal teve problemas na turbina e teve que retornar ao aeroporto. Um dos filhos quebrou a perna em uma estranha queda de bicicleta no calçadão da praia. A empregada foi assassinada pelo marido bêbado que a surrou antes de matá-la.

A sessão da comissão de ética estava por começar. O Deputado Alfeu Donizete estava no gabinete aguardando a sessão. Os advogados ensaiavam com ele os argumentos que deveria usar em sua defesa. A linda e curvilínea secretária morena serviu o café com as torradas, que o deputado gostava tanto. Porém, ultimamente, fazia questão que o segurança provasse a comida antes. Nada suspeito. Tudo corria dentro da normalidade. Até receber novo e-mail. Nele a frase assustadora: “Eu sei o que você fez na campanha passada...”. Não leu o resto do e-mail: o terror já havia transformado seu corpo em uma massa gordurosa de pânico. A gravata lhe apertava o pescoço. Tremores nas pernas, suores e uma dor de cabeça enorme se sucederam à leitura do texto.

Dirigiu-se à sala da comissão para a sessão secreta. Na sala a discussão era a mesma: quantos votos favoráveis à condenação e quanto à absolvição. O Deputado Alfeu Donizete sentiu uma dormência no braço esquerdo e uma perturbação estomacal.

Aos gritos interrompeu a reunião:

“Eu sou culpado, eu sou culpado, mereço ser cassado. Pelo amor de Deus, me cassem logo e acabem com essa tortura”.

Os colegas tentaram acalmá-lo. A absolvição já estava acertada. Não deveria temer. Mesmo com a ausência do deputado, que saíra às pressas da sala, com fortes cólicas intestinais, foi absolvido à revelia.

Recolheu-se ao gabinete onde recebeu a notícia da absolvição certa e esperada. Esperou até que todos saíssem para tomar coragem e levantar–se da cadeira para sair do recinto. Alguns gabinetes ainda tinham movimento de gente. Saiu pelos fundos até a garagem. O novo chofer abriu-lhe a porta. Estranhou aquele rosto: parecia-lhe familiar, só não se lembrava de onde. Mas, concluiu, com o uniforme todos os choferes se parecem, especialmente os mulatos como aquele.

Sentou-se no banco de trás junto aos dois seguranças.

Na saída, não pode evitar a equipe de reportagem que freneticamente tentava obter algumas palavras do deputado absolvido. Só soube pronunciar palavras incompreensíveis.

Uma repórter afirmou ter entendido que o deputado pedia desculpas pelos crimes cometidos. Outros repórteres não confirmaram a confissão do deputado, por isso a notícia não foi ao ar no Jornal daquela noite. Por falta de confirmação. Pelo bem da verdade jornalística a informação deveria ser checada com outras fontes.

O Justiceiro lia os jornais na manhã seguinte. A notícia estampava a morte do Deputado Alfeu Donizete por infarto. Calmamente o Justiceiro consumiu o resto das torradas que havia preparado para si naquela manhã. As torradas eram semelhantes àquelas que o Deputado Alfeu Donizete havia comido na tarde anterior.

O Justiceiro sorriu da ironia. Estava a mais de quinhentos quilômetros de Brasília na tarde anterior. Mas a própria natureza, desta vez, havia colaborado com sua missão. No canto do jornal, em uma pequena nota, leu a notícia de suspeita de desvio de verbas atribuídas ao Senador Jonas Cavalcanti. Pegou a pasta executiva que estava no sofá da casa. Dentro havia vários dossiês de outros parlamentares envolvidos com corrupção.

Calmamente dirigiu-se ao quarto para acordar a morena que dormia. No criado mudo leu o crachá de secretária parlamentar da moça, onde estava impresso seu cargo funcional: Gabinete do Deputado Alfeu Donizete.

Decidiu deixá-la dormir mais um pouco. O funeral do Deputado Alfeu Donizete exigiria que ela estivesse bem descansada para enfrentar todo o ritual que o momento exigia.

Calçou os sapatos e dirigiu-se ao seu gabinete. Como relator da comissão de ética, os próximos dias seriam conturbados, pois importantes figuras parlamentares teriam seus processos analisados. Havia muita pressa para que os casos fossem julgados com celeridade, pois o ano eleitoral se aproximava e todos queriam ter a ficha limpa. Além disso, os meses que se seguiriam serviriam para o eleitor esquecer os escândalos.

Ordenou ao motorista que tocasse para o gabinete. O veículo arrancou suavemente. A brisa quente do calor de Brasília prometia um dia daqueles. O sol brilhava mais radiante naquela manhã. Teve tempo de acenar para o jardineiro. Os pássaros ainda cantavam nas árvores que delimitavam a propriedade. Exceto os urubus, que planavam sobre o descampado em frente à casa. O Justiceiro colocou os óculos escuros e tentou adormecer no veículo funcional.

Dormiu o sono dos justos enquanto o sol maior resplandecia no planalto central.

Setembro, 29. 2011.

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 29/09/2011
Reeditado em 08/10/2011
Código do texto: T3247976
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