Ratoeira

O dia nasceu quente com o sol brilhando todo o seu poder. Um pequeno fio de luz entra pela fresta da cortina do meu quarto quebrando a escuridão. Estou deitado olhando para o teto, fico assim por muito tempo, contemplando a brancura do teto, agora muito mais branco com a claridade da manhã. Sou retirado de meu devaneio pelo despertador do pequeno rádio-relógio vermelho tocando uma música bem esquisitinha de uma nova banda de rock adolescente. Viro-me de lado e com a mão direita desligo aquela peça de museu que me acompanha há 25 anos, relíquia que era de minha mãe, que levei comigo quando sai de casa para morar só, na verdade, fiquei pouco tempo só, logo em seguida me casei. É sempre muito difícil eu me livrar de coisas, objetos, pessoas, amores, enfim, sou difícil de me desapegar, construo sentimentos indeléveis e tenho comido o pão que o diabo amassou depois que me separei, tem sido muito sofrido. Minha filha Sofia, inclusive, anda bastante preocupada comigo, e vive me aconselhando a procurar um psicólogo, ela disse que tem medo de que eu entre em depressão e possa cometer alguma bobagem. Essa inquietude de minha filha, ou melhor, esse excesso de zelo, é bastante exagerado, para não dizer descabido, nunca faria besteira alguma, ao menos comigo mesmo. O que eu queria fazer eu fiz. Dei um jeito no playboy metido a gênio que minha ex-mulher estava tendo um caso, mas o problema não era ele, o pior de tudo mesmo é essa sensação de estar amputado, de que alguma coisa foi arrancada, deixando um imenso vazio, que é duro de suportar, entretanto, sei que isso vai passar, é só questão de tempo. Quanto à possibilidade de reatar com minha ex, a chance é zero, nunca a perdoarei pela traição. A confiança foi totalmente destruída, é como a velha frase do cristal que se quebrou, puta que pariu como estou romântico, a bem da verdade, como estou piegas. Embora, não descartaria encontros casuais, futuramente, para uma rápida e selvagem trepada, sem compromissos ou tentativas de reconciliação, isso é pagina virada e por enquanto vou curtindo minha dor e concentrando-me no trabalho. Sou um matador de aluguel, disfarçado de representante de vendas de uma grande marca de eletrodomésticos. Meu codinome é Rat Trap, e posso ser contatado pela internet em um inocente blog que fala sobre interpretações de sonhos. Os clientes nunca me viram, já eu, conheço todos eles, e só aceito o serviço depois de uma boa xeretada na vida do contratante. Os clientes interessados têm que deixar uma pergunta no blog sobre o que significa sonhar com ratos mortos, para não haver nenhuma confusão, os clientes sabem que só entro em contato quando o interessado deixar por quinze dias seguidos a mesma pergunta, sem uma letra a mais ou a menos, sendo que na décima quinta vez ele tem que digitar além da pergunta o seu endereço virtual, e aí sim começo a conversar com o sujeito, ou mesmo, com a sujeita, vocês ficariam impressionados com a quantidade de mulheres que já me contrataram nesses quase 20 anos de profissão. A próxima missão que estou para cumprir, está me deixando muito entristecido, e antes de aceitar refleti muito, como a grana era muito boa, era uma proposta irrecusável, acabei aceitando, estou mesmo envelhecendo e virando um sentimental. Não vejo à hora de fazer o último serviço e poder me aposentar, porém, ainda faltam alguns anos para o sonhado descanso A razão para minha incerteza de aceitar ou não o “trampo” é que meu novo alvo é um jogador de futebol, e como sou um amante crônico da nobre arte futebolística, fiquei balançado. O dito jogador é brasileiro e está de férias aqui no Brasil. Ele joga na Espanha num clube de médio porte. Tendo feito uma temporada arrasadora, com 38 gols só no campeonato da liga espanhola, despertou o interesse dos grandes clubes daquele país e do resto do mundo, e claro, os daqui do Brasil. Para conhecê-lo melhor peguei alguns vídeos pela internet de suas jogadas e dos seus gols. O garoto é bom de bola mesmo. É um segundo atacante, não tão rápido, mas, de drible fácil, que também pode atuar pelo meio-de-campo. Com um futebol bonito de ser ver, objetivo e incrivelmente inteligente, também é um bom “garçom”, “serviu” muitas vezes seus companheiros deixando-os na cara do gol. É realmente um jogador raro, clássico, daqueles que há muito não vemos no futebol jogado de hoje em dia. É uma pena que ele tenha de morrer. Seu nome é Antônio Castro de Jesus, tem 24 anos, 1, 81 cm de altura, negro, cabelos crespos com trancinhas rastafári, e foi apelidado por seu pai, professor de História do ensino médio e ferrenho representante do movimento afro-brasileiro, de Shaka, nome de um famoso rei Zulu. Esse nome era o que ele levava as costas das camisas que usava nos jogos. Ainda pouco conhecido da maioria dos torcedores brasileiros, Shaka encontrava-se hospedado em um confortável hotel da orla de Recife sem chamar muita atenção, ao não ser pelas frequentes festinhas que realizava na sua suíte regado a muito álcool e muitas mulheres e uma indefectível e assustadoramente grande corrente de ouro que ostentava pendurada em seu pescoço. Através de algumas investigações descobri que o mandante do assassinato é um poderoso empresário do futebol que se sentiu traído e prejudicado financeiramente, quando Shaka quebrou o contrato e assinou com outro empresário. O novo empresário de Shaka agora é o seu pai. Isso ocorreu a mais de dois anos, porém, o próspero empresário continuava irritadíssimo com o garoto, de quem cuidava desde que o moleque tinha 11 anos e jogava na divisão de base do Náutico, então, resolveu vingar-se e encomendou sua morte. Metade do valor já está depositada na minha conta, e hoje mesmo seguirei viagem para o Recife. Levantei-me da cama e fui para sala de jantar, lá encontrei a mesa do café posta e um bilhete de minha filha. Acho que eu já disse antes, se não, digo agora, estou morando com minha filha e meu genro desde que flagrei minha ex.

“Painho, eu e o Gérard tivemos que sair mais cedo hoje, como o Sr pode observar não o esperamos paro o café. Só voltaremos à noite, então me ligue para avisar quando chegar em Belô.

Beijos de sua filha querida.”

Guardei o bilhete no bolso do pijama e cai dentro de um cuscuz com carne cozida e tomei uma xícara de café com leite. Satisfeito, acendi um cigarro e fui para o notebook acertar os últimos detalhes do assassinato. Uma hora depois estava pronto para viagem, liguei para um serviço de taxi e esperei. Quinze minutos mais tarde o interfone toca avisando da chegada do carro. O taxi deixa-me no centro da cidade em frente a uma garagem alugada onde estão guardados meus brinquedinhos e meu carro. Arrumo todo equipamento necessário, guardo no carro e sigo viagem. Da cidade onde moro até Recife são pouco mais de 500 Km, precisamente 503 Km, o que dá aproximadamente umas 7 horas de viagem, principalmente devido aos inúmeros siga/pare que encontramos na estrada em decorrência da duplicação que estão fazendo da BR 101. Nada que possa me irritar, gosto muito de dirigir, é uma verdadeira terapia para mim. Para despistar disse para minha filha que iria para Belo Horizonte, e que iria de avião, essas mentiras que tenho que contar para minha família é o que mais me desagrada na minha profissão, não consigo me acostumar. Depois de quase quatro horas dirigindo parei em um restaurante, fiz uma leve refeição e aproveitei para mandar alguns torpedos pelo celular, mandei um para minha filha e outro para o contratante e usei meu notebook para alguns contatos, o resto da viagem foi tranquila, sem nenhum contratempo, cheguei à capital pernambucana precisamente às 18h03min, com o percurso feito em 6 horas e alguns minutos. O meu relógio de pulso marcava 19h15min quando abri a porta do meu quarto de hotel no décimo segundo andar. O hotel que me hospedei fica em frente ao de Shaka, ele está hospedado no décimo primeiro andar, reservei o quarto um andar acima para ter uma boa visão da suíte sem chamar muita atenção, pretendo acertá-lo com um tiro de uns 600 metros de distância. Pelo tempo em que houve a desavença com seu primeiro empresário, pouca ou mesmo nenhuma suspeita irá recair sobre meu contratante, caso aconteça de respingar alguma suspeita sobre ele, o problema é dele, ele é rico e deve ter bons advogados. “Ema, ema, ema cada um com seus problemas”. Hoje a noite é o dia perfeito para realizar meu objetivo, começa hoje o Recifolia, carnaval fora de época que faz muito sucesso. A Avenida Boa Viagem está apinhada de gente, e vários trios elétricos encontram-se no local esperando a hora de puxar milhares de pessoas para a folia, afinal, atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Infelizmente, Shaka não irá atrás de trio algum. Fiquei sabendo que Shaka organizou um “esquenta” em sua suíte para poucos convidados, a reunião está marcada para as 20h30min. Antes de entrar no banheiro afim de me refrescar com um bom banho, meu telefone bipa informando que recebi uma mensagem, vou até o celular e olho a mensagem, um largo sorriso se abre em meu rosto e vou tomar banho muito mais animado e contente.

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Na suíte do hotel muitas pessoas dançam e conversam animadamente ao som de frevos e axés. Há pelo menos 30 pessoas dentro do espaçoso cômodo, sendo a maioria belas mulheres. Todos estão devidamente uniformizados com o abadá do bloco Maluco Beleza. A animação é generalizada, a exceção é um homem vestido muito formalmente para uma festa de prévia carnavalesca. O homem é João Francisco Albuquerque de Valença, o ex-empresário de Shaka. Ele segura um copo de uísque e parece que procura por Shaka, ele o encontra dançando com uma lindíssima loira, que faz cara de poucos amigos quando o homem de terno e gravata se afasta levando o rei Zulu com ele. Eles vão até a sacada do quarto acompanhados de seu Nilo, pai de Shaka e iniciam uma conversa.

_Fiquei muito espantando e também feliz pelo convite, não esperava depois de tantos anos. Diz Dr. Valença, com um sorriso cínico na cara.

_ Na verdade a ideia foi de meu pai, contudo, há muito tempo eu queria desfazer esse mal estar que ficou entre nós, nos conhecemos há tanto tempo, você cuidou de mim por tanto tempo, não vejo por que virarmos inimigos. Respondeu Shaka.

Seu Nilo acompanha tudo atentamente com uma expressão muito tensa, parece com medo do desenrolar da conversa, e a todo instante olha seu relógio, em um cacoete típico de quem está nervoso.

_Pois é, tanto tempo cuidando de você e de sua carreira e vocês me apunhalam pelas costas, não é mesmo?

_Não mesmo, eu simplesmente arranjei outro empresário e paguei toda a multa que existia pela quebra de contrato, não fiquei devendo nada a você.

_Ficou devendo consideração. Disse Dr. Valença entre dentes.

_Que consideração você queria que eu tivesse com alguém que levava 70% do que eu ganhava, eu fazia tudo, eu que jogava, eu treinava, eu fazia os gols, era eu que acordava cedo para ter que fazer aquelas propagandas ridículas de cerveja e tudo mais, enquanto você ficava em seu escritório só contando o dinheiro, eu não aguentava mais aquele abuso.

_Está tudo bem, não se preocupe mais com isso, vamos beber e nos divertir. E ergueu o copo para brindar.

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Alguns minutos antes da conversa acontecer na sacada do quarto de hotel que Shaka está hospedado, eu estou arrumando meus instrumentos de trabalho na varanda do meu quarto. Todas as luzes foram apagadas e trabalho iluminado apenas pela luz da lua nova que se estampa no céu, e uma vela acesa em cima da mesa de centro. A falta de luz não é problema, já montei tantas vezes esse rifle que faria de olhos fechados sem nenhum problema. O rifle é um M40 A3, que tem um alcance de 913 metros, como estou apenas a 550 metros do meu alvo, não ocorrerá surpresa alguma. O rifle é por ação de ferrolho, isso que dizer que não é automática ou semi-automático, depois de cada tiro tenho que armá-la novamente, porém, só preciso mesmo de um tiro, nunca precisei de mais de um. O cano é flutuante e tem uma mira telescópica Shmidt & Bender 3-12X50. O calibre da bala é 7,62 X 51 mm, com pólvora sem fumaça e sem chama e tem um supressor de som acoplado. Uma belezinha de fuzil, que me acompanha a muitos anos, desde que sai do exército, e me dediquei totalmente a arte do assassinato. Em pouco tempo a arma é montada e agora estou deitado no chão da varanda, encoberto por umas cadeiras de ferro que decoram o local, observando a conversa pelo telescópio do rifle, com meu alvo bem na mira, vejo quando Dr. Valença levanta o copo, foi minha deixa. O disparo saiu com pouquíssimo ruído e nenhuma fumaça ou chama, impossível de se identificar da onde veio o tiro, alguns instantes depois o corpanzil de Shaka está no chão e tenta desesperadamente conter o sangramento que sai da cabeça de Dr. Valença, que morreu imediatamente , o tiro foi perfeito, de craque, se fosse no futebol seria um verdadeiro golaço. Como disse antes, Shaka não foi atrás de trio elétrico algum, teve que comparecer a delegacia para prestar esclarecimentos. A morte repercutiu por algumas semanas e os jornais anunciavam as suspeitas em cima do jovem jogador, porém, sem muita dificuldade a polícia encontrou muitas sujeiras do empresário, muitos negócios escusos e dívidas de quantias muito grandes de dinheiro com pessoas não muito gentis. Em pouco tempo todas as suspeitas contra Shaka desapareceram e não se falou mais no assunto. Agora preciso explicar a mudança de alvo. Quando parei no restaurante para almoçar, durante a viagem para Recife, ainda estava muito incomodado com o serviço que me contrataram para fazer, por isso quebrei todo o protocolo que sempre segui a risca e entrei em contato com Seu Nilo, pai e empresário de Shaka, que no começo achou graça e não acreditou no que eu estava contando, então, mandei pela internet um áudio da minha conversa com Dr. Valença, ele escutou e pediu um tempo para pensar no assunto. Para sua sorte ele respondeu antes do hora que eu programei para fazer o tiro, como ele não sabia como eu iria realizar o assassinato e não sabia onde eu me encontrava, Shaka não morreu por pouco, caso ele não ligasse o primeiro plano continuaria de pé. No torpedo que ele mandou, dizia que o negócio estava sendo aceito e que o novo alvo estaria no hotel hoje, e mandou o endereço e o número do quarto onde eles estavam, como se eu não soubesse. Estou aliviado e acho que fiz o certo, estou mesmo ficando sentimental, o que pode prejudicar sobremaneira futuros serviços, entretanto, continuo infalível, é um tiro e um cadáver. E se você precisar dos meus serviços algum dia é só me contatar. Meu codinome é Rat Trap, e mato ratos.

jacosta
Enviado por jacosta em 14/12/2011
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