O Percussionista

Colaborou: Scheillinha Marçal.

Fazia duas semanas que eu havia me desligado da banda. Da banda em que tocava desde os dezessete anos. Acabara de completar quarenta e três & sentia que já não estava mais com aquele pique inicial, toda aquela criatividade, a energia necessária e atômica do ser, toda aquela excitação, ventando fogo pelas narinas. Pudera. Anos e anos de ensaios, estúdios, gravações, mixagens, produções, discos, festas de lançamento, bajulação da imprensa especializada, cento e cinqüenta ou duzentas apresentações por ano, quartos de hotéis, vans, ônibus de turnê e esse babado todo.

Tínhamos saído de Curitiba e conquistado Los Angeles & Nova York o que para mim já estava de bom tamanho. Teria vencido? Meus empresários – Edson & Solange – não paravam de afirmar que sim. Que meu patrimônio e os investimentos que tinha feito com o meu dinheiro eu nunca mais teria que trabalhar. Com nada. Apenas expirar e inspirar e foi o que eu decidi fazer. Resolvido o problema de quem seria o cantor que me substituiria à altura, voltei para meu apartamento térreo de 120 metros quadrados, de fundos para a rua, discreto, onde eu seria um anônimo morador em um bairro aprazível coalhado por bares bacanas e pequenas espeluncas etílicas o que pareceu muito interessante para mim.

Naquela manhã acordei entre nove e dez horas. Havia chovido na noite anterior. Pra variar... E a temperatura tinha caído uns bons oito ou nove graus em pleno verão. Levantei-me e fiz a toalete. Tinha que botar alguma coisa sólida no bucho, afinal a dieta de líquidos não é tão eficaz mesmo quando estes possuem alto teor alcoólico, e fui até a panificadora da esquina e cheguei pedindo um sanduíche de rosbife, três cervejas mexicanas e mais dois maços daquele mata ratos de filtro amarelo que eu insisto em colocar para dentro do meu peito. Enquanto era atendido, reparei num jornal popular dependurado na parede lateral e que em sua primeira página estampava em letras garrafais vermelhas a seguinte chamada:

“PERCUSSIONISTA DE BANDA DE ROCK LOCAL BRUTALMENTE DEGOLADO EM SUA CAMA”

E o texto seguia mais ou menos assim: “foi encontrado ontem degolado em sua cama, pela Polícia Militar que foi acionada por vizinhos, o corpo sem vida do percussionista da banda de rock acústico “The Maltichiques”. O músico, de 44 anos, estava com a cabeça separada do corpo e os milicianos crêem que essa foi seccionada com um instrumento de corte muito afiado ou uma faca de açougueiro. Arma do crime não foi encontrada...”

E blábláblá. E por aí continuava. Paguei minha conta e resolvi levar um exemplar da “Tribuna” para ler em casa com calma. Parecia um crime bárbaro mesmo! “De volta a minha cidade”, era o que pensava quando eu voltava para o meu apê. Já sentado em minha cadeira favorita ao lado da janela da área de serviço pus-me a comer o sanduíche e a ler toda a história. Não vou ser literal e nem fazer citações aqui, porém em resumo posso dizer que o tal percussionista dos Maltchiques se chamava Mario (ou Marião ) de Carvalho e que fora degolado em sua cama como já foi dito e que a matéria continuava dizendo que era um cara querido pela sua vizinhança, atencioso e gentil e havia também depoimentos dos amigos , parceiros de banda e vizinhos afirmando que ele era uma grande e talentosa pessoa. Segundo a cantora do grupo senhorita Tânia Okamura ele “era como um pai para nós, um irmão mais velho, um grande amigo e companheiro, um bom poeta, um bom profissional que nunca atrasava show e ensaio e nunca se embebedava de cair e um excelente caráter. Se alguém cogitar que essa horrível tragédia era um acerto de drogas é porque realmente não o conhecia. Nós quatro vamos pressionar as autoridades para que esse caso seja solucionado o mais rápido possível e que o culpado por essa atrocidade seja preso e condenado em uma longa pena”. The Maltechiques, eu pensava, onde eu já tinha visto esse nome de banda? No “Laranja Mecânica” do Anthony Burgess, é óbvio. Contudo eu me lembrava que alguém já tinha mencionado isso para mim. E lendo isso no jornal não conseguia associar os nomes e as pessoas. Quando anunciei minha saída da banda, já em consenso com os meus amigos, lembro-me que estava um rebuliço na gravadora de quem seria a “bola da vez”. No nosso meio, meu caro, “rei morto é rei posto”. Quando terminei de ler e de comer o meu telefone celular toca e no quarto e eu levanto para atender. Era o Breno, o meu baterista. Sua voz do outro lado da linha era pura tristeza e agonia. Agora eu estava me lembrando vagamente do tal Marião, a vítima. Breno me contou apressadamente que estivemos juntos e conversarmos e inclusive tocamos umas músicas juntos na festa de aniversário de uma amiga em comum. Talvez sim. Talvez não. Não era hora de discutir. Meu melhor amigo precisava do meu ombro. Tinha perdido alguém que lhe era querido e da pior forma possível. Ele também tinha perguntas a fazer: “por que”? “por quem”? Tudo que eu podia lhe oferecer naquele instante era apenas uns tragos e uns baseados na minha casa para tentar minimizar-lhe a dor e o vazio. Ele aceitou e disse que estava a caminho. Chegou em quinze minutos e seu semblante irradia a dor que o seu coração trazia...

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Da longa e amarga conversa que eu tive com o Breno pude depreender que o tal Marião de Carvalho era uma nobre alma. Dava aulas de percussão para um grupo de crianças autistas a um preço bem abaixo da tabela, distribuía erva para os mais chegados, pagava cerveja, nunca tinha tocado em droga pesada porque lia muito e tinha medo de se viciar, sempre dizia”por favor, “ e “obrigado”, nunca teve conta em bar nenhum e todas as portas se abriam quando ele chegava a qualquer lugar, era realmente amigo e conselheiro de quem pedisse e nos fins de ano telefonava para todos os seu entes queridos. Parece, aliás, que o Breno mencionou uma história obscura do cara ter sido criado em um orfanato porque nunca soube quem eram seus pais. Aos treze anos , quando até então não tinha sido adotado por ninguém, caiu no mundo e começou a trabalhar como pau para toda obra e ganhar seu sustento. Dormia onde dava e comia pouco. Uma noite viu alguém batucando em alguma coisa e ficou encantado. Tinha decidido o que queria ser pelo resto da vida. E foi. Até que aos quarenta e quatro anos alguém tinha lhe sangrado a garganta como um porco ou um carneiro, ou um frango. Triste, realmente muito triste. A grande consternação do Breno ( e do resto da banda e ele tinha telefonado para os quatro restantes antes de me ligar ) é que a polícia estaria numa linha de investigação muito simplória. Simplesmente, iriam colocar a conta no “tráfico” e dizer apenas que o cara “tava devendo umas pedras” e por isso fora eliminado. Só que não tinha sido encontrado vestígio de nada suspeito em sua casa. Era o que a vocalista Tânia Okamura tinha lhe dito. E conhecendo bem as instituições aqui da cidade isso não me causava nenhum espanto. O que eu poderia fazer por eles? Não era polícia. Muito menos delegado, promotor ou juiz de direito. Não tinha acesso ao Ministério Público. Não entendia nada desses babados legais e jurisdicionais e ainda por cima achava que isso era colóquio pastoso para acalentar bovinos nos braços de Morfeu. “Conversa mole pra boi dormir”, se era isso que você estava querendo ouvir. A polícia nunca gostou de pegar no pesado, afinal. E quando a Civil e a Federal ameaçavam se coçar era apenas para achacar peixe graúdo. Afinal, o Marião de Carvalho era arraia miúda e se que sabe não tinha parentes próximos ou distantes apenas seus amigos e membros da banda. O que era pior é que isso aconteceu quando eles estavam sendo preparados para explodir em território nacional (como tinha acontecido conosco em outros tempos) e virar a nova coqueluche (essa doeu e ainda por cima assumi minha idade, outra vez) da juventude comedora de alpiste que habita esse pobre país tropical. Tudo estava sendo adiado, todavia o conjunto tinha fincado o pé e dito que não iria se separar ou se extinguir em homenagem ao amigo e companheiro morto. Só queriam um tempo para tentar arrumar a casa e prosseguir. Fosse como fosse. “Os Mosqueteiros”, então? Muito romântico... Eu me perguntava somente até quando toda essa “ideologia” duraria. Por um ou dois anos e depois toda essa amizade e altruísmo seria soterrada por toda a podridão que vem juntos com a fama e com a grana? Muito provavelmente sim. Aconteceu conosco. Acontece com todos. Quando um bando de puxa sacos fica 24 horas por dia dizendo que você é genial, você acredita. E começa a falar e agir como um gênio. Você não precisa comprar nem os seus próprios cigarros porque tem uma pessoa paga para a gravadora para fazer isso para você. O sucesso inebria, meus queridos. Da noite para o dia você faz tudo o que sempre quis fazer. Você é “o cara”. Você é a melhor coisa desde a invenção da luz elétrica, da calça legging e do LSD. Bebida da boa. Fartos banquetes. Drogas em profusão. Mulheres de todos os tipos e tamanhos. E você pode se detonar o dia inteiro desde que faça as duas horas de apresentação. Pode ser maluco e excêntrico e quanto mais for melhor. Você pode ser o quão selvagem e desregrado quiser e as pessoas ao seu redor vão ficar cada vez mais embasbacadas e enlevadas pelas sandices que você faz e fala. Parece que sempre tem alguém com um bloquinho tomando notas dos absurdos que você arrota para eles. Era isso que estava reservado para os The Maltchiques. E na pior hora possível. Eles tinha que lamber suas feridas, anestesiar a dor da ausência, enterrar o sentimento de perda e para deixar a situação mais caótica encontrar outro percussionista e ensaiar com esse todo o repertório e ficar azeitado para os empresários sugarem seu sangue e sua essência. Porque essa é a grande ilusão. Você fica rico. Seus empresários multimilionários. E as pessoas ao redor de você, desde os “saca trapos” ( roadies, se você preferir, seu pernóstico ) até figurinistas e maquiadores também fazem um bom dinheiro às suas custas. Demorou a eu perceber isso e quando percebi a história se transformou em motivo para deixar a arte um pouco de lado e começar a me interessar por número e contratos. E isso iria acontecer àqueles jovens rapazes cheios de vida e de idéias. E agora com a tarefa extra de escolher um novo percussionista.

Sad but true...

Pode parecer mórbido, e acredito que seja, o fato de eu ter em empenhado em acompanhar o “Caso do Percussionista Degolado” ( como a imprensa marrom denominou ) pelos jornais e pela TV local. Todo dia eu comprava para ver se saia alguma nota e ligar no informativo televisivo do meio dia para encontrar outras informações. Tudo dizia a mesma coisa. Que as investigações continuavam na estaca zero, em suma. Decidi também dar um telefonema de condolências para aquelas moças e rapazes espertos que agora estavam desarvorados e comecei com a Tânia Okamura. O Breno tinha conseguido os números para mim e seria de bom tom um músico veterano e aposentado e ainda por cima curitibano nato fazer a gentileza de uma palavra de conforto. O velho jargão de “eu sei pelo que você está passando”, e toda essa cantilena estúpida. Então quando completei a ligação em apresentei e senti seu tom de voz ficar animado e até um pouquinho contente. “Ajude-nos, Billy, os homens estão fazendo pouco caso do nosso amigo. Estão dizendo que foi acerto de conta mesmo! Só quem não o conhecia poderia ser tão sórdido e leviano”, ele me falava agora num tom pesaroso. O que eu poderia fazer, porra? Mas, falei que o que fosse necessário eu estaria à disposição de todos e afetuosamente me despedi daquela linda voz e disparei ligações para os outros. Todos me suplicaram auxilio. Quase achei que estavam me pedindo dinheiro, porém desencanei. Os anos na estrada te deixam desconfiado e arisco. Continuei minha busca por informações que já estava até com um verbete no internet. E ao que parece todas convergiam para o mesmo lugar comum.

No Brasil, se você é músico independente, não passa de um leproso, um cão sarnento, um pária maldito que deve ser execrado e humilhado pelo simples fato de empunhar um instrumento. E isso não vai mudar. A não ser que você fique cheio da gaita. Se não pode se acostumar a ser chamado de “vagabundo” e “maconheiro” e “degenerado”. Não temos sindicato. A Arrecadação é implacável e exploradora. Diretos autorais? Vai sonhando. As “majors” nunca estiveram interessadas em música, arte, amor, paz na terra. Apenas no faturamento mensal. Uma corporação como qualquer outra. E é por isso que nessa terra nada é duradouro e não se forma uma cultura nacional sólida. Não existe interesse financeiro nenhum em promover educação e decência. Só dinheiro. Nada além. E ainda tinha um músico assassinado na parada. E sabe o que a gravadora dos meninos resolveu aprontar? Fizeram umas mixagens em algumas trilhas gravadas com o Marião de Carvalho, estamparam uma foto de todos eles sorridentes e simpáticos na capa e lançaram o disco só para aproveitar o tumulto da mídia. Puta sacanagem, ao meu modo de ver e de sentir. Posso estar sendo duro demais. Deixa a molecada faturar algum. Quem sabe lhes serve de alento?

Dois dias depois um delegado da divisão de homicídios iria dar uma longa entrevista na televisão sobre o caso. Eu estava atento e tomava minha primeira garrafa de cerveja do dia e fumava meu enésimo cigarro enquanto aguardava pela entrevista. Assisti à noticias irrelevantes como aquelas em que os suicidas em potencial armados com seus carros potentes e muita birita na cuca provocam verdadeiras tragédias gregas em nossas estradas. Bocejei. Ou como a receita de galinha caipira com polenta. Náusea. Depois de receber a tortura comum administrada pelas grandes redes ao “cidadão de vez” veio a atração principal. O delegado era uma testa. Nada mais que uma testa. Não conseguiria descrevê-lo de modo algum, pois ele era apenas uma testa falante. Quem conduziria a inquirição seria os dois ancôras . Um deles eu já tinha encontrado pessoalmente num lançamento que tínhamos feito num shopping e que sempre me pareceu um negro arrogante, cheio de si e na verdade sem nenhum sinal de inteligência ou de cordialidade. Apenas mais um mimado, cheio de vontades infantis e consumistas que não levam ninguém a lugar nenhum. A menina era outra beleza vazia dessas que enchem os olhos e as capas das revistas destinadas a gente banal de desinteressantes. Inicia-se a entrevista. “The show must go on”? E se todos os “artistas”, “jornalistas” e os auto-intitulados “formadores de opinião” fizessem uma greve por apenas uma semana e ficassem de boca fechada e parassem de nos entupir de informação inútil e sem sentido eu tenho a inapelável certeza de que encontraríamos outros assuntos muito mais edificantes para debatermos em nossas rodinhas de fumo e nas mesas e balcões de todo o país. Sim senhor.

Os entrevistadores eram de um preconceito explícito e aberrante enquanto que o entrevistado seguia a mesma linha de raciocínio. Em uma altura qualquer comentaram a ascensão eminente dos “The Maltchiques” e da gravadora estar apoiando os resultados e as conclusões da investigação para que o público “fosse realmente informados dos fatos ocorridos”. Uma pulguinha imaginária pulou atrás do lóbulo posterior da minha orelha esquerda. Decidi ligar para o Edson, meu fiel escudeiro, investidor e empresário. Atendeu prontamente no segundo toque sempre falando como deduzia que os “jovens descolados” falavam:

- E aí, filho de um corno, quando me liga há essa hora é porque está precisando de dinheiro ou de conselhos, caretão! Fez troça sobre a grana mas sobre o conselho estava prenhe de razão.

- Fico com o segundo, gatão. Foi o que lhe respondi & continuei num ritmo de speed metal – Uma gravadora grande pode interferir em uma questão de policia e justiça? Santa ingenuidade, Billy. Eu dizia para mim mesmo.

O Edson, escolado e escaldado no assunto, esclareceu que “evidente” e “mas é lógico” & ainda me veio com o temível “com certeza”. E passou a explicar ( e explicitar ) didaticamente que eles são “os grandes tubarões brancos” & que apenas se importam com seus interesses imediatos e com seu faturamento mensal. Que as pessoas poderiam ser incensadas & idolatradas em um dia e se algo ocorresse diversamente de seus planejamentos as mesmas pessoas simplesmente seriam extirpadas do meio e deixadas para morrer numa sarjeta. Simples assim. Agradeci pelas informações e desliguei. Um calafrio passou pela minha espinha dorsal. Em seguida, fiz uma chamada para a Tânia Okamura para dividir com ela a conversinha que tive alguns segundos atrás com meu querido e estimado empresário.

Naquele fim de tarde resolvi beber um pouco no bar que tinha elegido como o meu favorito do bairro. Nada de mais. Balcão de aço, mesas com tampo de mármore e cadeiras de palhinha, banquetas altas ( tamboretes ), bebidas à preço vil, os frequentadores até que eram uma fauna interessante e de quando em quando umas gatinhas novinhas, gostosinhas e cheirosíssimas prontas para uma noitada de sexo animal depois de umas ampolas geladas, um tragada no haxixe e um bom vinho argentino. Logo que adentrei ao recinto dou de cara os irmãos Douglas e Gustavo Yornes, guitarrista e contrabaixista dos “Maltchiques” respectivamente. Havia falado apenas duas vezes via éter com os dois e eles me pareceram uns rapazes puros, educados, bem intencionados e que estavam realmente assombrados com o turbilhão de fatos que haviam se abatidos sobre eles todos naquele momento solene e importante de suas existências. A baterista do conjunto, a Nana Li, eu ainda não conhecia. Reconhecerem-me e sorriram efusivamente para mim & ofereceram-se para me pagar uma garrafa de cerveja. Recusei educadamente e pedi a minha cerveja e uma dose arregada de Bourbon que matei em uma golada rápida e precisa, como era a minha especialidade. Tentei levar o assunto para o campo das amenidades e futilidades, como qual era a banda da vez para eles, contudo minha cabeça não parava de tentar perscrutar os seus mais sombrios pensamentos & sentimentos.

-Quer produzir nosso próximo disco, Billy? Perguntou o Douglas Yornes à queima roupa.

Tentei enrolar com aquela lenga lenga de “nossa, puxa, seria uma honra, mas patati patatá” enquanto eu ouvia a minha voz interior e sacava que estava tentando me livrar daquilo e sendo o grandessíssimo filho da puta que sou resolvi dizer com a maior sinceridade que teria de consultar meus empresários , o que era pura verdade, pois ainda estava sob contrato. Eles tocaram com suas mãos os meus ombros & me lançaram um sorriso de contentamento. Acabei achando esse irmãos uns caras encantadores. Não botavam banca e eram humildes de sinceros. Era uma “banda família” no sentido amplo da palavra. Eram amigos desde o começo da adolescência mesmo o Márião sendo o mais velho e incorporado ao esquema quando eles quiseram inovar e se distanciar do que todos os outros estavam fazendo. Gostei deles e resolvi incentivá-los e protegê-los daquela indústria que estava mais que disposta em chupar suas carótidas e deixá-los feito sapo seco em beira de estrada. Ficamos conversando até a tarde virar fim de noite e eu estar pra lá de bêbado. Despedimo-nos, comigo já bem trôpego, e voltei para meu apartamento com a idéia fixa de fazer alguma coisa realmente relevante para eles.

Quando acordei liguei para um velho camarada meu que fazia artes gráficas para minha banda e por acaso era um hacker bem solicitado. Ivan, era seu nome. Anubis, seu codinome virtual. No seu currículo, além de umas capas bem transadas de meus discos, estava o memorável dia em que ele e sua trupe, a soldo de um poderoso empresário, parou todas as máquinas de todas as repartições públicas do estado e deixou todos os funcionários três dias em polvorosa. Era bom no que fazia porque fazia o que amava. Perguntei para ele se poderia me conseguir informações quentes sobre o “Caso do Percussionista Degolado” e ele amavelmente me informou que por acaso, só de farra e desfrute, tinha invadido o sistema da Delegacia e que tinha todo o material em um arquivo em seu computador pessoal. Perguntei se poderia dar uma olhada nessa coisa toda e seu preço. “Ora, o de sempre Billy, uma garrafa de tarja preta, você sabe”. Magnânimo, esse meu amigo. Avisei-lhe que passaria em sua casa em no máximo uma hora e pontualmente eu estava lá com o seu pagamento. Doido para ver esses documentos. Eu tinha certeza absoluta que alguém por alguma razão sórdida estava escondendo a verdade. E também por obra do acaso, Ivan estava com um amigo advogado em sua residência. Eles tinham imprimido o material e estavam olhando para ele do ponto de vista jurídico. Segundo o doutorzinho, aquilo não passava de uma comédia de erros: uma senhora rica e única herdeira de um grande latifundiário, que se dizia que se ele saísse da região dos Campos Gerais quando chegasse ao Amazonas ainda estaria em sua propriedade, enamorou-se pedida e desbragadamente de um forasteiro que tinha ido tentar a sorte por aquelas bandas e contra tudo e contra todos decidiu viver o seu intenso romance. Dessa união nasceu aquele filho que por acaso era o Mário de Carvalho, do tal percussionista dos “The Maltchiques”. Prontamente esse filho foi colocado “na roda dos enjeitados” de um orfanato local e recebeu o seu nome lá. O pai foi escorraçado da cidade como um cão sarnento do inferno para não amanhecer com a boca cheia de formigas. Como não foi adotado teve que se virar sozinho o que fez muito bem e sem nunca saber de sua origem. Há cerca de um ano atrás a mãe biológica da vítima se viu acometida de um câncer qualquer e como não tinha herdeiros resolveu encontrar seu filho de quarenta e quatro anos. A única pista que ela tinha que talvez Mário estivesse em Curitiba. Como conhecia um investigador de polícia aqui na cidade fez-lhe a proposta de que por uma pequena fortuna ele encontrasse o filho. Ele aceitou e começou a extorquir-lhe mais e mais dinheiro, com a desculpa esfarrapada de que estava quase chegando lá. Nada mais inverídico. O meganha não tinha pista nenhuma e foi para o tal orfanato onde conseguiu o nome que o cara usava. Ficou moleza. Os “The Maltchiques” estavam consolidando sua fama na cidade e todos os fins de semana tinham apresentação marcada. Uma noite foi a um show e no intervalo para os músicos beberem sua agüinha ( que passarinho não bebe...) bateu um papinho com o Mário que nem imaginava que estava no olho do furação dessa treta toda. Ah, esqueci de mencionar o fato de que o legitimo herdeiro daquela dinheirama toda estivesse morto, automaticamente, a fortuna ficaria em poder do nosso nobre investigador. O advogado amigo de Ivan levantara essa lebre por conta própria. Contou-me que era seu hobbie meter a mão nessas cumbucas. Eu tenho e faço amigos bem estranhos, não acham? Voltando ao assunto porque hoje me delonguei demais. Com o documento da mãe biológica do Marião de Carvalho – o percussionista – o “samango” bolou o plano perfeito. Ou quase. Decidiu dar cabo do cara e da forma mais brutal imaginável. Invadiu sua casa numa noite em que a vítima abusara do álcool e desmaiara em sua cama e cortou-lhe a goela de um lado ao outro sem nenhuma chance de defesa. Agora era só aguardar que a velha senhora definhasse com o tumor e colocar a mão na bolada. Só que ele não contava com a astúcia da vizinhança que vira o Mário chegar a casa cambaleante, mas nunca mais o viram sair e acionaram a Polícia Militar que deparou-se com a tétrica cena. E deu no que deu...

Quando o advogado terminou a história eu estava estupefato! Como o ser humano é sórdido, vil & ganancioso. Puta merda! Se houver próxima encarnação quero voltar uma ratazana de esgoto. Ivan abriu a garrafa que eu tinha levado e serviu generosas doses com pedras de gelo de água de coco.

- Mas, babe. O que podemos fazer com essas informações que vocês descolaram? Vamos melar esse processo ou não? Eu queria saber.

O advogado tomou a palavra:

-Infelizmente nada podemos fazer, Billy. Afinal esses documentos apareceram de uma invasão de sistema, lembra? E o restante eu descobri acionando meus contatos de confiança de sempre. Em juízo , de nada valem. E ainda vamos ter que nos explicar como estamos em poder de toda essa documentação, sacou?

- Ele tem razão, Billy. Disse o Ivan. Nada vai ser feito. Esse crime é “queima de arquivo”. Olha isso.

E me mostrou o último documento que encerrava o caso e dizia que tinha mesmo sido “acerto de contas por motivo de dívida de droga e que os culpados já estavam devidamente encarcerados e à espera da sentença oficial”. Merda. Merda. Merda. O percussionista tinha batalhado desde o momento que saiu do útero e estava prestes a ter sua vida mudada pela banda que tanto tinha se empenhado ou por uma herança deixada por sua mãe talvez para compensar os anos de abandono. E foi morto só, degolado, sem qualquer chance. A vida é irônica, não concorda? Matei meu trago de uma vez só e servi-me de outro para aproveitar o gelo. Senti uma lágrima furtiva descer de um dos meus olhos. Ligaria para a Tânia Okamura, para os Irmãos Yornes e para a Nana Li para lhes contar a verdade? Para lhes dizer tudo que eu tinha levantado? Para acabar de vez com essa pantomima estúpida e cheia de avareza? Bebi mais um gole e acendi uma bagana de erva que tinha levado comigo. Inspirei. Expirei. Suspirei. Merda. Não poderia dizer nada do que sabia sob pena de virar alvo também. Resolvi curtir a minha aposentadoria e produzir os discos dos garotos. Tentar auxiliá-los da melhor forma possível para que eles não caíssem nas ciladas que eu cai durante minha carreira. Dedicaríamos nosso trabalho ao Mário de Carvalho. O Márião. “O Percussionista Degolado”. Decidi enterrar a verdade. Não é isso que tudo mundo faz todos os dias?

Tenho certeza que sim...

Curitiba, 29 de dezembro de 2011, 19 graus Celsius – Verão.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 28/12/2011
Código do texto: T3410477
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