A Morte do Cobrador

Sou um homem grande, minhas mãos são grandes e meus pulsos são fortes, muito fortes. Sou dentista. Tenho treze anos de formado. Trabalho em uma prefeitura aqui do meu Estado. Sou odontólogo do PSF. Em decorrência disso, infelizmente, faço regularmente exodontias. Essa prática é o que torna as minhas mãos fortes. Já fiz muito mais extrações dentárias do que faço hoje em dia, felizmente, nos últimos anos, a educação em saúde bucal tem melhorado bastante. O desinteresse em cuidar dos dentes e o “interesse” de extraí-los têm diminuído, mesmo assim, ainda faço muitas extrações. Hoje em dia as pessoas dão mais valor aos seus dentes do que há trinta anos. Meu nome é Roberto Carvalho Filho e o que importa dessa estória não é a odontologia, e sim a vingança que vou contar, a minha desforra pessoal. Depois de muitos anos vinguei a morte de meu pai. Ele foi morto covardemente, em seu consultório, por um fulano que se autodenominava “O Cobrador”. Meu pai, doutor Carvalho, morreu em 1979 na Cidade do Rio de Janeiro, eu tinha apenas seis anos quando o bandido tirou sua vida. Lembro-me muito pouco dele. Ele foi para o Rio para fazer um curso de especialização e nunca mais voltou. Eu tinha esperanças que ele voltasse, entretanto, esse homicida tratou de matá-las junto com meu pai.

Em 2009 pedi uma licença de um ano do trabalho e mudei-me para a cidade maravilhosa. A lembrança do meu pai tinha adormecido em mim, mas ainda vivia, e o gostinho da vingança estava tão frio quanto tinha de estar. Consegui emprego numa clínica popular em Bangu, numa Rua que fazia esquina com a Avenida Brasil. Essa era a mesma Rua em que meu pai foi morto. Eu queria estar perto dos lugares em que ele esteve. Eu trabalhava das nove da manhã a uma da tarde. Todas as tardes, logo após sair da clínica, eu vagava pelo Rio de Janeiro atrás do infame que me levou a possibilidade de ter a figura paterna em minha criação. Vasculhando sites de jornais antigos e fuçando manchetes policiais do século passado pela internet, descobri que o maníaco tinha sido preso em 1980, depois de uma tentativa frustrada de explodir o estádio do maracanã num dia de Fla-Flu. Como os explosivos falharam, ele tentou matar o máximo de pessoas possíveis com sua Magnum e seu facão. Sua mulher e cúmplice, Ana, foi baleada e morta no confronto com a polícia. Ana era uma granfina, nascida em família rica e de tradição, que se juntou ao meliante, inclusive, virando sua mentora intelectual. Dizem que foi ela que transformou o reles assassino comum em um terrorista conhecido e temido nos anos 80. Não é de hoje que as “patricinhas” correm atrás de vagabundo. João Evangelista, “O Cobrador”, também foi baleado, contudo, sobreviveu. Foi preso, julgado e condenado a vinte e cinco anos de prisão. Cumpriu quinze anos e foi posto em liberdade sob sursis em 1996. Li que ele foi morar no alto da colina, no bairro de Santa Tereza, numa casa que herdara de Ana. Procurei por ele por quase seis meses, até que o identifiquei, num botequim ao lado de sua casa, bebericando uma caninha.

Passei uma semana observando-o de perto. Sua aparência não condizia com a fúria assassina narrada pelos periódicos antigos. Ele era um mulato mirrado, magro como um cão faminto. Sua voz era suave e pausada. Pelos meus cálculos ele deveria estar com sessenta e um anos. Seus braços eram cheios de cicatrizes e seus olhos transpareciam inocência. Cheguei a desconfiar, por um momento, que não fosse ele quem eu procurava. Ele mantinha a rotina de sempre; só saia de casa lá pelas três da tarde, se encaminhava para o bar e ficava por ali bebendo até a madrugada, quando voltava cambaleante para o sobrado. Numa sexta-feira, antes dele sair para o bar, bati palmas na porta de sua casa. Ele apareceu com sua cara de fuinha e sua boca murcha e perguntou:

- O que você quer? Não quero comprar nada.

- Não estou vendendo nada não senhor. Vim da parte de doutor Carvalho.

- Não conheço nenhum doutor Carvalho. Disse isso e foi fechando a porta. Eu retruquei:

- Acho que é do interesse do senhor o que venho dizer. Doutor Carvalho é parente distante de dona Ana. Ele olhou-me intrigado, então eu continuei:

- Estou aqui por conta de uma herança deixada pelo meu cliente para dona Ana. Como ela está morta, o herdeiro legal é o senhor João Evangelista. João Evangelista é o senhor não é?

- Sou eu sim. Falou e foi saindo para abrir o portão da casa mostrando seu sorriso desdentado. – Fique a vontade, pode entrar.

Entramos e ele me mostrou uma cadeira para eu sentar enquanto foi sentar na outra cadeira em frente, do outro lado da mesa. Em cima da mesa repousava um livro do Rubem Fonseca chamado “Feliz Ano Novo” e muitos outros livros, a maioria deles de poesia. Gostava de poesia, gostava de ler, era culto, o puto. Eu não sentei. Continuei em pé e tirei, de dentro da pasta que carregava comigo, minha Magnum com silenciador e apontei para sua testa. Ele esbugalhou os olhos; suas pupilas dilataram de excitação e vi com detalhes suas íris negras. Ele falou assustado:

- Que porra é essa, meu filho? Baixa essa arma. Eu não baixei.

- Não me acha parecido com alguém que você matou? Minha mãe dizia que eu sou muito parecido com meu pai. O mesmo tamanhão, os mesmos olhos vivos e os mesmos cabelos revoltos de poeta romântico. - Hein seu filho da puta? Eu não lembro alguém? Hein? Fala seu escroto, fala logo, antes de eu estourar seus culhões seu filho da puta! Derrubei a mesa com um chute, espalhando todos os seus livros de poesia no chão. Toda a raiva que eu retraí e acumulei, desde a morte do meu pai até aquele dia, saiu de dentro de mim como um furacão, e minhas palavras foram vomitadas com ódio e fel.

- Meu filho, eu matei tantas pessoas no passado, como poderei me lembrar de alguém? Eu já paguei pelo os crimes que cometi. Não devo mais nada na justiça. Eu sorri, gargalhei alto, ele achava que não devia nada, o puto.

- Você deve a mim. Você me deve a vida de meu pai. E eu vim cobrar. Cobrar as brincadeiras entre pai e filho que eu não tive. Os jogos de futebol que eu assisti sozinho. Os conselhos paternos que eu não pude ouvir.

- Quem era seu pai, meu filho?

- NÃO ME CHAME DE FILHO! Gritei, e acertei a coronha do revólver em sua testa. Uma grande ferida se fez e o sangue escorreu. Isso me deixou mais calmo. – Você não se lembra de um dentista que você matou num consultório no bairro de Bangu em 1979, seu puto. Ele era meu pai. Ele parecia não lembrar, balançou a cabeça negativamente várias vezes.

- Eu não me lembro de ter matado nenhum dentista.

- Não se lembra de ter dado um tiro na perna de um, seu covarde de merda. Ele rapidamente arregalou os olhos e eu pude ver o brilho de sua lembrança.

- Ah, o doutor “paraíba”, o nordestino grandalhão? Mas eu não o matei, eu dei um tiro em seu joelho e fui embora, você está enganado.

- Meu pai ficou duas horas sangrando, deitado no chão do consultório. Seu tiro acertou na artéria femoral e quando ele foi achado já não tinha mais jeito. Ele sangrou até sua vida esvair, choque hipovolêmico, foi esse o laudo da sua morte. E é exatamente deste jeito que você vai morrer. Atirei em sua coxa direita, perto da virilha. Ele se curvou dando um uivo de dor e levou as mãos ao local. O sangue correu forte. Atirei em sua outra perna, na esquerda. O projétil atingiu quase o mesmo ponto da perna direita. Mais sangue e mais gemidos. Depois de algum tempo, ele desfez a fisionomia dolorosa e ficou olhando para minha cara. Parecia satisfeito. Feliz. Parecia ter encontrado sua verdadeira redenção. Todavia, eu não senti o prazer que buscava. O prazer inefável que eu achava que iria sentir não aconteceu. O que senti foi o contrário disso. Já estava saindo da casa e resolvi voltar. Voltei e dei dois tiros na cara dele, do “Cobrador”. Não pude aguentar a expressão de felicidade que seu rosto emanava. Nesta hora me senti um pouco melhor.