Razão para matar

RAZÃO PARA MATAR


Miguel Carqueija



Ariel Sarmento sorveu um gole de licor de framboesa e observou como que distraidamente o homem de barba negra e espesso bigode igualmente negro, duas mesas além. O homem de bigode estava com dois amigos mais jovens, e os três comemoravam qualquer coisa alegremente.
Ariel parecia uma fada de cabelos brilhantes e meio desgrenhados na franja, tinha um rostinho atrevido que dificilmente seria levado a sério no mundo tenebroso em que se movia. Ela se esforçou por bater algumas fotos digitais com seu celular, prejudicadas pela interposição de outras pessoas, mas que poderiam ter utilidade. Naquele momento ela pensava na quantia oferecida por Virgínio Hamilton, que acionara a Porta de Cristal para incriminar o homem de bigode. Ariel precisava conhecer os hábitos daquele farmacêutico, mas o caso parecia tão atípico que a jovem não atinava com a justificativa para o alto valor oferecido, superior à própria tabela da Porta de Cristal.
Nesse momento os seus ouvidos aguçados captaram uma estranha frase pronunciada em voz meio alta — efeito da bebida alcoólica — por Turíbio Vasconcelos, o farmacêutico:
— O astronauta não voltará! Ele não voltará!
“Frase estranha... bem estranha” pensou ela. Foi quando avistou, pela vidraça, aquele rapaz de rosto bem escanhoado que atravessara a rua em passo rápido e firme, encapotado apesar do calor... e percebeu que os colegas de Turíbio, com ares alarmados, pareciam suplicar-lhe que ficasse calado... e o garçom se aproximando com uma travessa de “pizza”... Ariel ia desviar o olhar para não chamar atenção quando percebeu que o rapaz acabara de entrar, e o seu semblante fechado e o seu olhar injetado espantaram a garota; e ele fuzilou o olhar na direção de Turíbio e se encaminhou direto para ele, ignorando a garçonete uniformizada que tentara abordá-lo; e Turíbio enxergou-o com atraso e buscou se erguer com pânico em seu olhar; e os outros também se levantaram; e Ariel, horrorizada, percebeu o que ia acontecer...
Ariel se ergueu por sua vez e os dois tiros saíram quase ao mesmo tempo. Um, da arma do rapaz, fez esguichar o sangue do crânio de Turíbio. O outro, da pistola de Ariel, fez voar longe o revólver do atirador.
Estabeleceu-se o pânico no local. Gritos, mesas derrubadas, tulipas de vinho estilhaçadas pelo chão; o atirador remeteu um olhar penetrante contra Ariel e bateu em retirada. Instintivamente Ariel pulou da mesa e saiu no encalço daquele homem, sem nem pagar a conta, anotando de passagem que os dois amigos do farmacêutico buscavam socorrê-lo. Ao sair à calçada, porém, esbarrou com um policial fardado que casualmente passava por ali e tentou retê-la; Ariel com uma reação brusca acertou-lhe a fronte com o cano da pistola e prosseguiu na perseguição, enquanto o guarda se abaixava estonteado.
O assassino corria em grandes pulos, chegando a dar encontrões nas pessoas; não pudera atravessar a rua por causa do trânsito. Enfim, aproveitou o sinal vermelho na esquina e disparou para o outro lado onde, já deduzira a pequena, deveria ter deixado um auto à sua espera. Um apito já soara; o PM devia estar furioso.
Correndo como uma doida, Ariel se aproximou da frente do restaurante de onde saíra... só que pelo outro lado da rua. O guarda fizera parar o trânsito e, arma em punho, já apontava... ela deu um mergulho para trás do carro azulão que o autor do atentado abria naquele momento... ele a agarrou pelo braço e a puxou de qualquer jeito, o primeiro tiro se fez ouvir, uma detonação para cima, de advertência. O rapaz pegou o volante e Ariel, horrorizada, percebeu que outros policiais já vinham lá atrás, acorrendo para auxiliar o colega... e então a moça teve o peito comprimido contra o estofamento enquanto o carro saía de qualquer maneira.
— Cuidado! — gritou ela, tentando não largar a arma.
— Cuidado para que? Não foi você quem me seguiu? Quem é você afinal?
— Eu falei cuidado, merda! — endireitando-se, ela viu como num pesadelo o carro avançando pela calçada, afugentando pessoas e pombas, tirando um fino de outro carro e de um ciclista... até que o motorista conseguiu pegar uma rua transversal menos movimentada e pisou no acelerador.
— Quem é você, afinal? Exijo que me diga! — exclamou ele, de fisionomia alterada.
— Seu carro é a prova de balas? Deveria estar todo furado!
— Você me deve uma arma.
— Você é doido! Por sua causa a polícia deve estar pensando que eu sou cúmplice do crime!
— Então por que você me seguiu?
— Está brincando? Quem mandou você matar aquele homem?
— Você está armada. Por que não me prende e me entrega à polícia?
Ariel engasgou. E se fizesse isso? Mas e a sua missão? E a Porta de Cristal? Que iria dizer? Não poderia, em hipótese alguma, comprometer a Agência. Isto seria impensável.
Ela fitou por alguns instantes a sua Lux B-121, e, tomando uma decisão, guardou-a no grande bolso de zíper do casaco.
— Temos de escapar — disse simplesmente.
Ele prosseguiu com a corrida, dirigindo-se para o subúrbio; já havia alcançado a Avenida Brasil e, confiante na deficiente estrutura da polícia carioca, certamente já estava seguro de fugir. Nesse momento o celular de Ariel tocou com o tema musical da Pantera Cor-de-Rosa. Ela buscou o aparelho, sob o olhar vigilante do outro:
— Oi — falou simplesmente. Havia reconhecido o número da Rita.
— Onde você está? Pode falar agora?
— Não deveria, mas te adianto que as coisas não estão indo muito bem.
— Por que não? Onde está o Turíbio?
— Salvo engano ele está morto.
— Morto, você diz? Como assim?
— Mataram ele. E quem o matou está do meu lado.
— Hein?
— Eu tentei alcançar o rapaz que disparou nele no restaurante e agora me encontro dentro do seu carro.
— Ele te seqüestrou?
— Até agora não.
— O que você pretende fazer?
— Seja o que for, não vou dizer aqui. Olha, estamos perto da Fundação Osvaldo Cruz...
O rapaz parou bruscamente o carro e segurou-lhe o pulso com brutalidade.
— Pare essa ligação!
— Te ligo depois — falou Ariel e, desligando o aparelho, encarou seu oponente:
— Também não gosto de conversar ao telefone nessa situação, porém...
CRÁS!!!
O auto sacudiu de tal modo que Ariel foi cuspida para fora, já que a porta dianteira direita abriu. Uma vez no asfalto ela engoliu um palavrão e espiou a causa do choque: uma kombi de passageiros que acabava de bater na traseira do Legato do atirador.
Saltou um sujeito enorme e furioso, o motorista da kombi que vinha lotada, e pôs-se a gritar. O outro, indiferente ao prejuízo que o seu veículo sofreu, pôs o motor em movimento. Ariel correu e se jogou para dentro no momento em que o transporte avançava debaixo dos maiores palavrões.
— Por que entrou de novo, seu carrapicho?
Ariel gritou de susto, tamanha a barbeiragem que o fugitivo fez para escapar depressa. Comprimiu-se de peito contra o estofamento e, por fim, voltou-se para o rapaz:
— Para onde nós estamos indo afinal?
— Isso não é da sua conta — e nesse ponto ele deu uma guinada tão grande numa esquina que Ariel bateu com a cabeça no painel do carro, apagando subitamente.


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Quando acordou, sentiu um frio úmido na testa. Abriu os olhos e viu uma garota negra e bonita, que lhe passava um algodão molhado no galo. Por um momento ela apenas pensou que não seria o procedimento adequado, e sim aplicar gelo. Então procurou se mover e não conseguiu.
— Calma, você está amarrada — disse a garota.
Ariel olhou em volta. Estava num quarto mambembe, de paredes manchadas e esburacadas; as janelas se encontravam fechadas e a luz, é claro, acesa. O sujeito da arma não se encontrava.
— Quem foi que me amarrou? — perguntou, experimentando a corda que prendia os seus pulsos nas costas da cadeira.
— Fui eu. Não se assuste, é simples medida de precaução.
— O que deseja de mim?
— Vou te dar uma água e a gente conversa.
Ela encheu uma caneca com uma jarra que estava sobre a escrivaninha. Embora sedenta, Ariel tentou recusar:
— Não, eu não quero.
— Pode beber. Não tem nada de mais aqui.
E sorveu um gole para provar o que dizia.
Ariel, então, concordou em beber um pouco, levando em conta a gentileza de sua captora. A outra então sentou numa cadeira em frente à prisioneira:
— Você tem todo o tempo do mundo para explicar quem é e porque invadiu aquele carro.
— Está brincando, é claro — e Ariel sorriu. — Seu namorado matou um homem e fugiu em seguida. Você é quem tem que me explicar o que está acontecendo. Aliás onde é que ele está?
— Eu o aconselhei a ir embora. O mar não está pra peixe...
— Por que ele matou o Turíbio?
— Isso não é da tua conta, mocinha. Não percebe? É você quem está presa.
— E daí? Não se dá conta de quanto esse rapaz atrapalhou a minha vida, a minha investigação?
— Por que você foi atrás dele?
— Isso me prejudicou também, devo estar sendo tomada por cúmplice... mas eu fui atrás dele no impulso. Afinal o que ele fez foi estúpido, estapafúrdio. E ele é tão doido que sofreu uma batida na Avenida Brasil e nem ficou para defender os seus direitos...
Subitamente a tela de parede se acendeu e surgiu, com moldura negra, o rapaz da arma e do carro.
— Til, ainda não resolveu?
— Pois é, Bob. Estou tentando saber a verdade dela...
— É melhor cloroformizá-la e jogá-la em qualquer lugar. Ela não vai saber onde esteve...
— Isso é que não! — uma nova voz irrompeu na sala e Ariel soltou um suspiro de alívio.
“Rita, Rita... em boa hora, e com sua pistola Vênus... que bom!”
— Quem é você? — gritou o rapaz que atendia por Bob, indignado.
Rita ignorou-o solenemente e, já bem próxima, fez um gesto incisivo com sua arma para a garota do apartamento:
— Desamarre a minha amiga.
— Escute, vamos conversar...
— Te dou um minuto e, se esse palhaço do televídeo atrapalhar eu disparo na tela!
A garota chamada Til não teve outro jeito e, em poucos minutos, encontrava-se manietada na cadeira em lugar de Ariel.
— O que vão fazer com ela, suas intrometidas? Eu vou pegar vocês duas!
— Ora, cale a boca, Bob — disse Til, irritada. — Desliguem esse aparelho, meninas. Vou contar tudo, afinal ele é que é o culpado.
Apesar dos berros do sujeito Ariel silenciou o telefone visual e voltou-se para a prisioneira:
— Ele está longe ou perto?
— Não conseguirá chegar em meia hora, eu acho...
— Bem, querida, a situação se inverteu. Lembra de ter dito que eu teria de falar, porque eu é que estava presa? Por essa lógica, você agora tem que falar e explicar tudo.
Til baixou os olhos, meio encabulada:
— Me desculpem... o que a gente faz por um homem...
— Seu namorado? — indagou Rita.
— Meu marido. Aquele homem a quem ele matou... é um crápula da pior espécie, merecia morrer.
— Isso é questionável. Se nós sairmos por aí matando todo mundo que é mau...
— Mas vocês não matam?
— Nós? — perguntou Ariel, admirada.
— Vocês, da Porta de Cristal.
As duas estremeceram, visivelmente perturbadas:
— Por que acha que somos da Porta de Cristal? — questionou Rita.
— Porque a Porta de Cristal é uma lenda urbana, mas nós sabemos que existe. E que utiliza mulheres para o trabalho de campo...
— Agora chega — observou Ariel. — Nós não daremos chance a que o seu marido venha socorrê-la. Por que vocês mataram o Turíbio? Fale logo, ou nós a entregaremos à chefia para que decidam o que fazer.
— Eu vou falar. Não tenho nenhum empenho especial em... ei, o que vai fazer?
— Não se assuste — disse Rita, sorrindo. — Não vamos te matar, a Porta de Cristal não mata. Apenas, a minha pistola é dessas modelos que batem fotos, e precisamos fotografá-la para os nossos arquivos...
— Meu Deus, não faça isso! Tenho muito medo dessa invenção! E se você me matar em vez de me fotografar?
Rita retirou rapidamente as balas.
— O acionamento da função de fotografar é independente do gatilho, mas tudo bem. Quer sorrir?
— Você está de gozação com a minha cara? Eu estou toda amarrada!
— Mas não te amordacei, querida, portanto você pode sorrir... olhe o passarinho!
Til acabou sorrindo.
— Que absurdo... vocês são muito engraçadas.
— Agora fala — ordenou Ariel.
Til baixou os olhos, entediada.
— Aquele homem cometeu contra mim a maior injúria que se faz a uma mulher... engravidou-me e, como eu reclamasse uma atitude da sua parte, mandou-me fazer o aborto.
— E você fez? — perguntou Rita, em tom muito sério.
— Não. Eu me recusei. Ele então me convidou para um passeio de carro para conversarmos e eu fui, ingenuamente. Ele simplesmente me atirou do carro em movimento, e eu perdi a criança. Ele fez isso para se livrar de responsabilidades, livrar-se da paternidade.
— Mas você disse que é casada...
— Casei-me no mês passado. Meu marido é médico, socorreu-me quando me levaram a um hospital, soube de toda a história e gostou de mim.
— Ele resolveu vingá-la? — quis saber Ariel, admirada.
— Isso mesmo. Eu não queria, mas... deixei que ele me convencesse. Turíbio era abjeto, mas já agora... preferia que não houvéssemos dado esse passo.
— Então você é cúmplice do assassinato.
— Não, pelo amor de Deus, não. Apenas fiquei ciente e quando ele trouxe você desmaiada, sugeri mantê-la presa para dar tempo a ele de sumir com o carro amassado.
— Você foi conivente — disse Rita.
— O que vocês farão? Vão me entregar à polícia depois de tudo o que eu passei?
As duas agentes da Porta de Cristal se entreolharam:
— Vamos embora — disse Ariel. — O assassino fugiu, nós não temos como avaliar a veracidade do que ela diz e corremos o risco de arruinar uma pessoa inocente se a envolvermos com assassinato. Esse é o tipo do caso em que nós não temos elementos para julgar, ainda mais que uma criança no ventre terá sido sacrificada, o que é monstruoso.
— Isso eu posso provar. O laudo hospitalar sobre o aborto causado por acidente... — e aqui ela se interrompeu, assustada.
Rita sorriu:
— Desculpe... eu não devia rir... mas se a documentação hospitalar está aqui o nome do seu marido também, não é? Aliás... será facílimo levantar dados sobre ele.
Til pôs-se a chorar convulsivamente e Ariel abraçou-a:
— Não se assuste em demasia com a gente. Por ora, só queremos a verdade!
Dez minutos depois a dupla da Porta de Cristal já sabia tudo o que queria — e foi quando Adalberto, o marido, ligou de novo. E elas desligaram o aparelho e todos os demais, pois não queriam falar com ele. Depois de uma rápida confabulação com Rita, Ariel dirigiu-se à prisioneira:
— A Porta de Cristal não irá nos cobrir se denunciarmos vocês. Não temos como avaliar moralmente esta situação. O homem que morreu estava envolvido em fraudes farmacológicas que poderiam provocar até a morte nos usuários e é isso que nós vínhamos investigando. Como vocês atropelaram o nosso trabalho, nós vamos simplesmente embora e vocês que se virem com a polícia.
— Mas vocês vão me deixar amarrada?
— Vamos soltá-la, Til. Apenas, tomaremos a liberdade de cloroformizá-la. Quando você acordar estará deitada confortavelmente na cama, e solta.
— Não sei como lhes agradecer... vocês foram de uma gentileza sem par.
— Assim é a Porta de Cristal — comentou Rita, sorridente. — Não somos enxofre, somos cristal, o símbolo da pureza.
— Espero tornar a encontrá-las. Levem todas as minhas direções, meninas. E se um dia a Porta de Cristal vier a precisar de uma nova agente, por favor me chamem. Acho que eu gostaria dessa vida.
Deixando Til desacordada e estendida na cama, as duas espiãs se foram e, já no carro de Rita, Ariel pôs na boca um bombom com recheio de nozes e comentou:
— Sabe, Rita, sempre que termino um caso da Porta de Cristal fico com uma sensação de irrealidade. E você?
— Eu sinto a mesma coisa, maninha. Exatamente a mesma coisa.



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