Prato Frio

Tudo começou, ou melhor, tudo começou a terminar num dia de terça-feira à noite por volta das dezenove horas. Aquele era para ser um dia especial, eu tinha pedido as contas de meu emprego de fachada, e estava a poucas horas de minhas férias eternas. Passaria o resto dos meus dias vivendo em anos sabáticos. Na verdade, quando digo emprego de fachada, quero dizer que não era meu principal ofício, eu comparecia, fingia que trabalhava e recebia meu salário, entretanto, só fazia isso para disfarçar o meu verdadeiro trampo, tá ligado?

Larguei a bagaça que eu fazia num escritório de contabilidade, que meu pai me obrigava a ir, por que iria me aposentar do meu real ganha pão, do que me dava grana, grana graúda. É sim, meu amigo, aposentar-me-ia aos vinte e três anos. Coisa para poucos. Por conta disso, entrei num acordo com o meu patrão, do trabalho de fachada, sem que meu pai soubesse, e ele me reembolsou pelos cinco anos de trabalho. Tudo muito rápido e informal. Não recebi o que me era de direito, no entanto, nem pensei em acionar a justiça trabalhista. Eu tenho alergia à justiça, a não ser se for aquela com as próprias mãos. Não, não é de punheta que tô falando, seu doente de mente suja. Tô falando da justiça feita com sangue. A esta eu tenho verdadeira devoção. Sou um justiceiro, eu despacho toda a escória imunda para a terra dos pés juntos. Infelizmente, a justiça que foi feita nesta estória, foi feita com meu sangue. Depois de pegar a grana fui pra casa esperar minha carona para meu verdadeiro trabalho.

O Chevette azul 79, de faróis redondos, do Tibério, buzinou em frente a minha casa e eu saí.

- E aí, tudo em cima? Perguntei.

- Claro que sim, meu velho. Todos os instrumentos no porta-malas do carango.

Tibério era nosso motorista. O antigo Chevrolet era muito bem conservado de lataria. Mais o melhor mesmo era o motor, com carburador 3e de Opala, cabeçote com otimização de fluxo de gases, giclês recalibrados, com o câmbio e a relação do diferencial mexidos. O carro voava.

Dirigimos-nos para o bar do Acarajé, para encontrar os outros parceiros.

O bar estava lotado para uma terça-feira. Fomos para nossa mesa de sempre, lá no fundão, encostada ao banheiro. Os outros caras já estavam lá. O Bruninho e o Leopoldo sentados à mesa, e o Gerson no banheiro, como sempre. Esse cara, o Gerson, tinha um nariz de bronze do caralho, uma “napa” avantajada que cheirava cocaína feito um aspirador de pó dos mais potentes. Era quem arquitetava nossos projetos, era o nosso cérebro. O Bruninho era o brutamonte, o que lutava vale-tudo, um enorme rinoceronte sem qualquer tipo de células inteligentes em sua massa encefálica. O Leopoldo era o homem do tempo, ele cronometrava a ação do início ao fim. E eu, o Percevejo. Louco, metido a escritor, engraçadinho por natureza, e um assassino frio. Eu ficava comprometido com a escolha dos lugares que iríamos visitar, devido, principalmente, a minha simpatia e insuspeita beleza. Nosso grupo, nossa quadrilha, assaltava festinhas particulares de milionários. Então ficava assim: Eu descobria com alguma puta de luxo um lugar onde iria rolar uma orgia, dizia a Gerson, ele estudava o lugar e planejava tudo. O Leopoldo calculava quanto tempo levaríamos para entrar e sair. E o Bruninho era o cara da linha de frente, era ele que combatia seguranças e arrombava as portas. O Tibério, como já foi dito antes, nos tirava do local com seu chevettão envenenado. Ficamos conhecidos na mídia como “Os Pinguins”, por que assaltávamos vestidos de fraque.

Devo informar que todos nós também éramos milionários, ou melhor, filhos de abastadas famílias. Gente com grana e poder. Não tô falando de pessoas com salários altos, ou gente de classe média alta. Tô falando de gente que anda com rolex de trinta mil pilas no pulso, que gastava cinco, seis mil pratas por farra. Gente grande, meu brother, gente muito grande. Nós roubávamos esses grã-finos, e ao contrário do mané chamado Robin Hood, não distribuíamos a bolada com os mais necessitados, dividíamos entre nós mesmos. E só para esclarecer, eu odeio pobre, acho todos eles feios e mal educados. Eu mato esses miseráveis.

Somos o que pode ser chamado de rebeldes sem causa. Saca? Tínhamos tudo que queríamos, sempre querendo mais, melhor ainda se fosse sem esforço. Como não gostávamos de estudar, muito menos de trabalhar pesado, nossos pais cortaram as regalias e a fonte minguou. Por isso partimos para conseguir nosso merecido dinheiro assaltando almofadinhas. Nada muito estranho para nosso país, muito menos nessas camadas sociais em que nascemos. Na nata, no topo social, o roubo não é indecente, longe disso, ele é uma condição sine qua non para chegar ao cume. Claro que a maioria roubava na massiota e sem violência. Todavia, para nós, o essencial e imprescindível, era justamente a violência. Queríamos chamar atenção, como bons meninos mimados que nunca deixamos de ser.

O último projeto foi bem rentável, contudo, eu barbarizei. Parecia possuído e mandei para o inferno quatro vermes; duas putas e dois travecos. Estraçalhei seus crânios medíocres com tiros. Claro que eu não matava os figurões, a maioria eu conhecia, eram amigos de meu pai, ou mesmo meus amigos. Eu matava a ralé, as vagabundas, os subalternos, os pretos e os efeminados. Esses desprezíveis eu não poupava. Minha insanidade ficou evidente, e, por isso, nos reunimos e decidimos realizar nossa despedida do crime, e para isso encerraríamos o ciclo com chave de ouro. Iríamos invadir um cassino clandestino, que nos renderia, por baixo, cinco milhões de reais. Um milhão para cada, e com o que já tínhamos guardado seria só alegria.

Saímos do Acarajé e fomos para o local do nosso projeto, uma pizzaria que estava em eterna reforma. Liguei para minha cúmplice, uma acompanhante de luxo, chamada Laura. Dois minutos depois ela chegou. Tibério estacionou o carro nos fundos do estabelecimento, esperando nosso retorno. Eu e os outros seguimos Laura para dentro do Restaurante. Durante o percurso para o cassino, passando pela cozinha e despensa da pizzaria, que se encontravam vazios, fomos vestindo nossas casacas e escondendo nossos rostos com meias-calças pretas. Os fatos que se sucederam depois de nossa entrada foram rápidos e cruéis.

Bruninho, o rinoceronte descerebrado, desferiu uma coronhada, com sua doze, no segurança que guardava a porta, fazendo-o tombar desacordado. Arrebentou com um poderoso pontapé a porta de madeira e anunciou o assalto dando um tiro no teto.

- Todo mundo no chão, seus “féla”. Pro chão! Agora, porra! E outro estrondo zuniu na sala, esburacando o teto.

Gerson entrou logo em seguida, apontando sua “metranca” MP5 para os sete espantados jogadores, que tiraram seus olhos da roleta, esbugalhando-os na nossa direção antes de se jogarem embaixo da mesa onde a bolinha rodava. Neste momento dois homens saíram de uma outra sala atirando com revólveres. Gerson fuzilou a ambos. Eles vinham da sala do cofre. Era lá que estava o nosso tesouro. Eu fui o terceiro a entrar, mas, antes, meti um balaço, com minha pistola ponto 40 com silenciador, na cabeça do macaco de terno que estava estendido no chão. O sangue escorreu manchando minhas botas.

- Filho da puta. Gritei e chutei o focinho sem vida do animal.

Leopoldo ficou na porta berrando:

- Oito minutos, temos oito minutos.

Passei por Gerson e fui até os ricaços. Retirei tudo de valor que eles possuíam. Dinheiro, relógios, pulseiras, cordões e anéis. Tudo para dentro da sacola. Laura nos disse que só tinham três meganhas que tomavam conta do lugar. Os donos do negócio só apareciam pela manhã para contar e recolher o dinheiro.

Baixei a arma, e relaxei. Todos nós relaxamos, pelas contas ainda tínhamos cinco minutos, era tempo suficiente. Fui andando para a sala do dinheiro, confiante e sorridente. Foi aí que nós dançamos.

Assim que invadimos o cassino, três homens fortemente armados, escondidos na cozinha, nos acompanharam sem que percebêssemos, e mais dois saíram de dentro da sala do caixa assim que baixei a arma. Ficamos encurralados.

Levantei rapidamente as armas, sempre andava com duas pistolas, e apontei para as figuras que seguravam revólveres. Gerson, Bruninho e Leopoldo foram pegos tão de surpresa quanto eu. Olhei de relance para trás, e os vi com as mãos na cabeça, sendo ameaçados por fuzis.

Laura correu para os sujeitos que estavam a minha frente e beijou lascivamente um deles. “Puta descarada, me traiu”, pensei. Num gesto desesperado de ira e insanidade, disparei minhas pistolas contra os homens. Senti-me como um pistoleiro de filme de faroeste. Empunhando as armas, atirando, andando para cima deles e gritando:

- Morram seus putos! Consegui matar a vaca, mais fui alvejado por muitos tiros e caí inconsciente. Meus amigos foram assassinados com tiros na cabeça. Inclusive Tibério, dentro do seu tão estimado Chevette.

Bem, dizem que vaso ruim não quebra, não é mesmo? Foi o que aconteceu comigo. Não morri. Despertei uma semana depois numa cama de hospital cercada por policiais. Fui preso, julgado e condenado pelos crimes dos Pinguins. O lance do cassino não foi a julgamento. Pelo que descobri durante o processo, nossos corpos foram achados numa outra cena de crime, e não lá na pizzaria. Os caras planejaram tudo muito bem. Não sei até hoje quem foram os fuleiros que me pegaram na crocodilagem. Mas, estou muito perto de descobrir. Tenho muito tempo aqui dentro ainda. E aqui na prisão, informação é o que não falta, todo mundo se conhece, e mais dias menos dias um passarinho pia os nomes dos sacanas. Só aí começarei a elaborar meu plano de vingança. Meu prato frio será degustado na hora certa. Meu maior problema agora é arrumar um jeito de dar fim a dois crioulos imensos, que me olham cheios de paixão.