Prelúdio de um verão esquecido

Dois meses antes do ataque a Ulisses.

Não era mais que um dia comum, onde Gumercinda e Tereza estavam encerrando o expediente. Nada de anormal, além das fichas de vários assassinatos, devidamente investigados e outros tantos em andamento, exceção feita somente ao caso do “assassino da chuva” que chegara naquela semana para sua investigação. Um convite inusitado para um caso bastante obscuro e com poucas informações. Tal qual uma moleca de oito anos, Gumercinda estava muito empolgada em resolvê-lo, afinal não haveria de ser o primeiro que resolveria com tamanha obscuridade...

- Tereza, me faz um favor?

- O que você deseja Gumercinda?

- Desliga a luz e fecha o escritório. Estou saindo agora. Não quero dar chance à chuva me alcançar.

- Iria chover hoje? Não fazia a menor ideia...

- Você não assiste o jornal?

- Ontem e hoje não...

- Então se prepare pra chuva! Hehe

- Com certeza senhora... Até amanhã e boa noite.

- Até amanhã

Assim, Gumercinda se despediu de Tereza. Guardou os documentos dos arquivos na gaveta e fechou a sua sala. Estava cansada. A única coisa que pensava era em descansar, pois os próximos dias seriam bem pesados. Descia as escadas e refletia sobre os casos do dia. A maioria deles, bem rotineiros (assaltos, latrocínios e homicídios). Não era errado afirmar que a sua mente só pensava naquele assassino da chuva. Afinal, quem seria? O que queria? E por que sumiu por longos dez anos?

Tantas perguntas sem respostas. Melhor assim. Um caso que vem todo respondido não passa de um rápido e enfadonho processo. Quando, enfim chegara ao térreo e girara a maçaneta, seus pensamentos foram cortados pela súbita aparição da realidade: chovia muito forte e os carros passavam tão velozes que pareciam romper com a barreira do som. Sua primeira sensação foi de raiva, uma vez que esquecera o seu guarda-chuva em casa. Não à toa preferiu esperar por dez minutos, esperançosa de que aquela chuva cessasse. Aconteceu justamente o contrário: ficou ainda mais forte. Atacada por um misto de ansiedade com pressa, decidiu se enfiar no meio da chuva. Queria chegar a sua casa o mais cedo possível, e como desistira de pegar ônibus precisava atravessar o bosque até o ponto de táxi. Mal sabia ela que isso mudaria em muito à sua vida...

No meio dos pingos d’água que tocavam o orvalho molhado do parque, havia saltos que pulavam cortando a escuridão. Tal qual uma dança eles se dirigiam rapidamente ao encontro de Gumercinda, que nada desconfiava. Em um espaço de três minutos, quando Gumercinda chegara ao meio do parque, os passos se encontraram com ela. Os passos não, a lâmina que se erguia de baixo pra cima fazendo luz em meio aos vários pingos d’água. Em um reflexo, Gumercinda deixou todos os documentos que carregava cair no chão, enquanto caía pra trás para evitar o encontro fatal com aquela lâmina. Caiu, aproximadamente um metro pra trás, bastante assustada. Contudo, toda a sua experiência como delegada havia lhe ensinado a não demonstrar medo perante psicopatas, assassinos e bandidos. Adquirindo a compostura, com um tom de voz calmo e bastante curioso, começou a fazer indagações aquele homem mascarado que, se mantinha parado a sua frente:

- Não vai me matar?

- ...

- Realmente, não vai me matar?

- ...

- Você é um ser estranho... Me atravessa no meio de uma tempestade e nem consegue me matar? Que tipo de assassino é você?

O homem mascarado ergue a espada e aponta para o rosto de Gumercinda.

- De fato é uma bela espada. Deve estar honrado em possuí-la..

Titubeante e levemente confuso, o homem permanece em silêncio por 20 longos minutos. Passado esse tempo, começa a conversar.

- Não está com medo?

- Medo? Eu? Na minha profissão, vivemos na crista do perigo. Já tive armas apontadas para mim antes e já levei três tiros no peito. Medo é algo que, se eu tive, foi num passado distante...

- Interessante... E qual seria a sua profissão?

- Sou uma policial e detetive em boa parte do tempo. Você que é o famoso assassino da chuva?

- Está tão óbvio assim? E quem me deu esse nome?

- É o que aparece descrito aqui no seu arquivo. Supostamente, eu deveria te investigar e prender. Você é procurado por vários homicídios...

- Mas que piada... Não vejo mais sentido nessa conversa. Acho que vou te matar agora...

- Sério? Justo agora que te achei interessante...

- E por que diz isso?

- O simples fato de você estar parado na minha frente no meio de uma chuva intensa já me diz isso. É alguma tradição esse tipo de ataque?

- ...

- Tudo bem, tudo bem. Entendo que não queira falar. Mas pode me deixar ir embora? Com toda essa chuva, creio que vou ficar doente...

- Não vai me prender?

- Pra quê? Você tem toda a vantagem nesse terreno. Mesmo que chamasse por reforços, não conseguiriam te alcançar, facilitando a sua fuga. Apenas continuaria com a sua sina de matar por matar...

Nesse instante, o homem mascarado coloca a sua espada de volta na bainha. E, aparentando estar surpreso, continua a conversa.

- Realmente, tu és uma mulher interessante. Ok farei como você pede. Te deixarei partir hoje com uma condição.

- Qual?

- Se está tão entediada com o seu trabalho, torne-se minha discípula.

- O quê? Ficou louco?

- Até que enfim, uma reação normal...

- Uma reação que teria me deixado morta.

- Com toda a certeza.

- Como vou saber que isso não é uma armadilha, afinal por que confiaria numa policial que acabou de conhecer?

- Você tem olhos mortos.

- Hã? O que quer dizer com isso?

- Segunda-feira, rua das árvores, 352, às 18h. Apareça lá e consiga todas as respostas.

- Não tem medo de que leve um exército pra te prender?

- Prefiro deixar ao acaso...

Do mesmo como surgiu, o homem mascarado sumiu no meio da tempestade. Gumercinda, intrigada, juntou seus documentos, dirigindo-se ao ponto de táxi. Ainda estava tentando compreender o que havia acabado de acontecer. Estaria ficando louca? Teria sido tudo um sonho acordado?

O caminho de volta foi muito mais rápido do que a ida. A cabeça estava presa nos devaneios que presenciara na escuridão, afinal quem era o homem mascarado? Por que não a matou? Tantos mistérios que a sua mente cultivava mais perguntas do que respostas. Um longo banho quente não acalmou a sua alma. Ao contrário, tornou-a ainda mais ativa, especialmente pelas interpretações que ia formulando. Passou a ler o caso. De fato, muitas informações batiam com as impressões que tivera do assassino. Um homem frio, calculista e disposto a encontrar desafios e expressões em suas vítimas. O que a deixara mais marcada fora a provocação dele: “Você tem olhos mortos”. Como um eco, repetiu essa frase 20 vezes na sua cabeça. E a cada vez, ficava mais perturbada, provocada, ansiosa. Tinha uma semana para decidir o que fazer. E agora?

Passada uma semana, Gumercinda decidiu seguir seus instintos. Foi sozinha ao ponto de encontro proposto pelo homem mascarado. Esperou por 15 minutos até que alguém veio em sua direção para conversar. Para a sua surpresa era o homem mascarado, que, sem demora a convidou a entrar em sua humilde morada.

- Por gentileza.

- Como sabia que eu vinha?

- Eu apenas senti...

- Sério, assim tão “simples”?

- Sim. Pensou na minha proposta?

- Sim, aceito ser sua discípula. Contudo, tenho uma condição.

- Qual?

- Gostaria de ver seu rosto.

- Ainda não.

- Por quê?

- Preciso ver se você é digna de confiança.

- Hmm. Justo, justo. Ok, aceito os seus termos.

- Ótimo, se provares ter um espírito forte, te mostrarei quem sou.

E assim o foi. Gumercinda ficou treinando três vezes por semana. Não tinha tanta habilidade com a espada, mas era sensacional com armas de fogo. Vendo o seu progresso, após um mês, o homem mascarado decidiu retirar a máscara e mostrar quem era.

- Vo... você é...

- Sim, sou aquele que todas as evidências já apontaram.

- Mas... Como conseguiu sobreviver após aquilo? Era apenas uma criança...

- Mesmo criança, eu também era (e sou) um animal. Bastava ser agressivo para sobreviver nessa selva que a gente chama de cidade...

- Entendi...

- Agora, Gumercinda, tenho uma proposta pra você.

- Qual?

- Pretendo tomar Andrízia e reconstruí-la por completo. Já comecei alguns ataques, e um deles está planejado para daqui a um mês. Topa ser a minha atiradora?

- Às suas ordens... Mestre.

Andarilho das Sombras

Rousseau e o Andarilho
Enviado por Rousseau e o Andarilho em 27/03/2014
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